A travessia do rio, romance do escritor Caryl Phillips recentemente publicado no Brasil, não é o primeiro livro do autor editado em português. Há alguns anos, a mesma Record editou o aclamado Uma margem distante, obra que conquistou o CommonWealth Writers Prize, importante prêmio em língua inglesa. Em certa medida, este romance que finalmente foi editado em português é uma espécie de vaticínio do livro que seria digno de prêmio anos depois. Em outras palavras, é bem possível reparar em Phillips não somente a urgência de publicar, mas a existência de um projeto literário de um autor lidando com o tema que lhe é mais recorrente, quase como se fosse verdadeira flor de obsessão: o deslocamento. Se em Uma margem distante a questão que o autor problematiza é o não-pertencimento do personagem principal no coração da Europa, em A travessia do rio o que está em jogo é a trajetória de uma família severamente marcada pelo ocaso da escravidão. Tão pertinente quanto a temática, é interessante atentar para a forma utilizada pelo autor para conceber a história, que bem poderia mesmo ser mais um texto em que o ressentimento supera a imaginação ou o talento literário.
Felizmente, esse não parece ser o caso de Phillips. Isso porque suas histórias ultrapassam o teor sisudo, passível de servir como referência ao debate em fóruns jurídicos internacionais, para alcançar o estatuto de obra literária. Nesse sentido, a história da escravidão adquire contornos romanescos graças à imaginação narrativa do autor, que concede voz aos múltiplos narradores que trazem suas histórias cheias de som e fúria aos leitores. De forma inversa às notícias padronizadas pela camisa-de-força de certo texto jornalístico, desta vez não há como ficar insensível aos trechos que trazem os detalhes que os documentos muitas vezes escondem. Embora possa mesmo soar como lugar-comum, trata-se de uma espécie de humanização de histórias que, na maioria dos casos, existe apenas como dados aleatoriamente registrados nos arquivos oficiais.
E, como se lê no livro, não há nada de aleatório, tampouco de oficial, no trecho que abre o livro:
Uma tolice desesperada. A colheita fracassou. Vendi meus filhos. Me lembro bem. Levei-os (dois meninos e uma menina) por longos caminhos, até chegarmos ao ponto em que os lodaçais são repletos de gaivotas e caranguejos (…) Ficamos olhando por um tempo. E então nos aproximamos. Um sujeito calado se aproximou. Apenas três crianças. Eu as despachei nesse ponto, onde o afluente se divide e parte em todas as direções a caminho do mar. Manchei minhas mãos com mercadorias frias, em troca de corpos quentes.
A partir desse preâmbulo grave é que conhecemos as histórias de Nash, Travis e Martha, protagonistas acidentais dessa primeira travessia, conforme relato de seu pai.
As três histórias acontecem em momentos distintos. A de Nash Williams ocorre no século 19, remontando à presença dos colonizadores no continente africano. Por um desses sortilégios do acaso, Nash regressa às suas origens, mas, no papel de estrangeiro, não consegue reconhecer aquela que já foi sua casa. A certa altura da história de Nash, é possível perceber o tamanho de seu dilema, o seu não-pertencimento que assume um caráter filial de origem. Numa carta, ao se reportar ao pai, Nash repassa sua condição: “Cheguei à conclusão de que o senhor me repudiou por algum motivo, cuja origem talvez seja algum tipo de vergonha”. Nota-se, aqui, a presença do autor não apenas ao tratar dessa temática, mas ao escolher como forma de concessão de voz ao protagonista desse relato o gênero carta. Pois é esse formato que torna o texto mais franco e verossímil na percepção do leitor.
Adiante, na trajetória de Martha, percebe-se que outra jornada está em curso. Desta vez, separada do marido e da filha, a protagonista se vê entre as lembranças de sua filha e as reminiscências de quando foi abandonada por seu pai. Neste caso, a percepção mais comum ou mesmo corriqueira seria a de que a história ter-se-ia repetido como farsa, mas o autor não concede esse estatuto ideológico ao texto. Em outras palavras, ainda que seja um relato dos que não tiveram espaço para apresentar suas versões, Caryl Phillips opta por uma narrativa esvaziada do proselitismo religioso, mesmo que a questão-chave de seu texto seja um tema bastante presente nos debates contemporâneos. De volta à história, o trecho que traz a história de Martha é carregado de carga dramática, a ponto de o leitor poder mesmo se perguntar se não está vendo, ali, uma eventual representação dos últimos momentos de um condenado. Do cenário aos diálogos, o aspecto da narrativa é de despedida em tom delirante. Um réquiem, cujo sentido permanece entre o trágico e o lírico.
A Segunda Guerra Mundial é o contexto escolhido para apresentar a história de Travis, um soldado do exército norte-americano que se envolve com uma inglesa, com quem tem um filho, mas sequer chega a conhecê-lo. Novamente, a temática do abandono ganha as páginas do livro mesmo no trecho em que a vitória seria a saída mais natural. O estilo adotado aqui é o de um tipo de diário. Assim, ao lado de Travis, acompanhamos o desenrolar do conflito internacional, só que numa perspectiva bastante particular — sem necessariamente mencionar os grandes relatos que marcaram a grande guerra, seus heróis ou vilões. Em verdade, o conflito de maior relevo é o que acontece internamente, no desengano do protagonista em relação às suas expectativas. Para além disso, nota-se que, mais do quem em outras partes, o autor investe na fragmentação da narrativa. Com tantas idas e vindas, o texto se consolida num mosaico em que os pedaços simbolizam o esfacelamento das memórias do personagem central.
Como se lê em Caryl Phillips, o caráter amargo supera as grandes esperanças, eliminando as boas expectativas do final feliz. A redenção, portanto, não se encontra no desfecho das narrativas, mas, essencialmente, no fato de que seus protagonistas puderam, de maneira exemplar, devassar todo o ressentimento que carregaram durante anos de existência. No caso de A travessia do rio, o recorte histórico é, ao mesmo tempo, largo e simbólico: dá conta de 250 anos da diáspora africana, retomando, no romance, seus impactos permanentes na vida de três personagens.