A trajetória de uma mulher

Em "Jane Eyre", Charlotte Brontë retrata o percurso dramático de uma jovem na Inglaterra vitoriana
Charlotte Bronte, autora de “Jane Eyre”
27/01/2018

É sempre produtivo tomar conhecimento do que uma natureza artística pensa sobre outra. Eis então as impressões que a prosa de Charlotte Brontë, romancista inglesa do século 19, provocou em Virginia Woolf:

Devoramos o romance (…). É tamanha a nossa absorção que, se alguém se mexer na sala, o movimento parece ter ocorrido em Yorkshire. A autora leva-nos pela mão, faz com que vejamos aquilo que ela vê, jamais nos abandona, nem por um instante, tampouco permitindo que dela nos esqueçamos.

O “romance” referido é Jane Eyre. O comentário de Woolf é procedente: Charlotte, assim como a irmã Emily, é detentora de uma prosa magnética. Sua estética, a maneira como conduz a história, a concepção dos personagens, a pintura dos ambientes, enfim, tudo captura a atenção do leitor, fazendo-o avançar por dezenas de páginas, como um caminhante por belas colinas, sem se dar conta do esforço demandado ou da extensão do percurso.

Não à toa o livro foi muito bem acolhido pelo público quando de sua publicação em 1847, não obstante as restrições impostas à atividade literária feminina na época, o que levou Jane Eyre inicialmente a optar pelo pseudônimo Currer Bell.

A despeito dos fortes tons românticos da narrativa (alguns já datados para a sensibilidade moderna), a obra persiste mais forte e expressiva que nunca, em tempos em que muito se tem falado de “empoderamento feminino”.

Nesse aspecto, sua trajetória através dos anos é similar à da protagonista pela rígida e classista sociedade inglesa da época.

Uma sobrevivente
Inicialmente a trama dá a impressão de ser uma reformulação moderna de Cinderela. Jane é uma criança de dez anos que, órfã de pai e mãe, encontra-se sob a tutela de sua rica tia Mrs. Reed, por conta de uma promessa feita a seu marido, tio materno da garota.

Mirrada, passional, “comum” e sem atrativos, Jane sofre injusto e agressivo tratamento de sua “benfeitora” e de seus três mimados filhos; mesmo a criadagem a trata com menoscabo, com exceção relativa da criada Bessie.

A tensão desse conflito chega a um ponto insustentável, e a menina acaba por se tornar interna da Instituição Lowood de ensino, administrada com mão de ferro pelo pastor Brocklehurst. É no ambiente moralmente austero e parco de recursos que Jane terá seu primeiro contato positivo com a religião por meio da figura estoica e humilde da amiga Helen (cujo misticismo puro e sofredor se sobrepõe à religiosidade hipócrita e mesquinha de Brocklehurst). Helen e a bondosa professora Miss Temple são o lenitivo que torna a vida em Lowood tolerável.

Contudo, mesmo nesse ambiente adverso, a jovem faz progressos e em oito anos consegue se tornar professora na Instituição, mas sua natureza inquieta a faz buscar horizontes mais amplos, o que a leva a tornar-se governanta da pequena Adèle, a protegida do rico Mr. Rochester, dono da exuberante propriedade em Thornfield, onde alguns segredos se ocultam nos inúmeros aposentos…

A narrativa é uma crítica sutil às restrições morais e de classe a que a Inglaterra vitoriana do século 19 sujeitava seus cidadãos, mormente as mulheres. Concebida como uma autobiografia (sendo que a voz narrativa é da própria personagem-título), a trajetória de Jane, uma jovem órfã desprovida de um eminente nome, pelas instituições e os círculos da alta estirpe social (mas na condição de serviçal) põe a nu as entranhas repulsivas dos valores vigentes:

“Não me fale em governantas; só a palavra já me deixa nervosa (…). Graças aos Céus, agora estou livre delas!”

Mrs. Dent, então, inclinou-se para a piedosa senhora e sussurrou algo em seu ouvido. Eu imagino, pela resposta que deu, que fora lembrada de que uma representante dessa raça amaldiçoada estava presente.

Tant Pis!… Tanto pior!” (…) “Eu a vi. Sou boa fisionomista: vi no rosto dela todos os defeitos da sua classe.”

Paralelo a esse aspecto, um outro extremamente relevante e presente é o elemento religioso. O contexto social pintado em Jane Eyre retrata um cristianismo deturpado, mais propenso a castrar a vida em plenitude que a acolher os sofredores e prover-lhes assistência.

A heroína da obra, em sua libertadora inquietação, irá alimentar no decorrer de sua jornada uma relação ambígua com a crença, e o romance não poupará críticas aos emissários da palavra de Cristo que lhe surgem pelo caminho.

O pastor Brocklehurst, que deixa as internas de Lowood na penúria (“minha missão é abrandar nessas meninas a tentação da carne”) enquanto vive com esposa e filhas numa luxuosa mansão, é um exemplo ilustrativo. Contudo, a encarnação mais terrível de um censor espiritual é a do jovem St. John Rivers. Ambicioso em seu sonho de ser missionário, mas ao mesmo tempo suscetível aos apelos de eros na figura da jovem rica Miss Oliver, St. John é uma figura paradoxal que proclama a libertação pelo sacrifício de Cristo, mas oprime com força irresistível e voz mansa seu ouvinte; distribui o evangelho da vida em plenitude cristã, porém preconiza com seu exemplo uma vida melancólica, desprovida de alegria:

Meu coração se agitou, minha mente espantou-se com o poder do pregador. Nada era suave. Havia uma estranha amargura e total falta de gentileza consoladora (…) Quando ele terminou, ao invés de me sentir melhor, mais calma e enlevada pelo sermão, experimentei uma profunda tristeza, pois me pareceu (…) que a eloquência que eu estivera ouvindo vinha de uma profundeza onde jaziam túrbidos depósitos de desapontamento — onde se moviam, em perturbadores impulsos, desejos insatisfeitos e aspirações inquietantes.

A figura de St. John Rivers é exuberante em sua composição, bem como a de Mr. Rochester e a da própria personagem-título. Por certo não é gratuita sua presença extensiva na obra, bem como as frequentes citações da Bíblia: é através delas que Charlotte Brontë diagnostica a frigidez espiritual da sociedade da época.

Romantismo particular
Jane Eyre tem fortes tendências românticas, mas segue um caminho singular, pois se encontramos o estreito elo entre espírito e natureza, a força de paixões se sobrepondo ao bom senso, desenlaces inverossímeis de sabor romanesco e o sobrenatural, não nos deparamos, porém, com o idealismo.

Jane nos é pintada como uma figura muito longe dos modelos românticos, desde o Werther e Charlote goetheanos até as heroínas de nosso José Alencar. O mesmo ocorre com o “feio” e cativante Mr. Rochester, que nos fascina com sua aura sarcástico-amarga.

Por vezes a própria narradora se dirige a nós, troçando de nossas expectativas românticas. O livro parece mais preocupado em ressaltar as questões sociais que garantir o triunfo do amor sobre o mundo. Neste, aliás, proliferam figuras de fisionomia carregada, alma amarga e espírito ressentido. A título de exemplo, a morte de Mrs. Reed é das páginas mais implacáveis de toda a literatura.

Mas no fim a voz da autonomia (mas sem tons de “manifesto”) é o eixo espiritual do livro:

Mas as mulheres sentem da mesma forma que os homens (…) sofrem com restrições rígidas, estagnações absolutas, da mesma forma.

Essa edição tem uma tradução competente. O ponto negativo é a revisão que não raro cochila. As notas são elucidativas, dando detalhes importantes sobre este clássico.

Jane Eyre é uma obra capital, e sua valia não vem apenas da crítica de que se reveste, mas também da força estética que emana de suas páginas.

Jane Eyre
Charlotte Brontë
Trad.: Doris Goettems
Landmark
656 págs.
Charlotte Brontë
Nasceu na Inglaterra em 21 de abril de 1816. É a mais velha das irmãs Brontë (Emily, autora de O morro dos ventos uivantes, e Anne, autora de A morada de Wildfell Hall). Iniciou-se na literatura com pequenos contos de inspiração byroniana escritos em conjunto com suas irmãs. Como a sociedade da época tinha resistência quanto à atividade literária feminina, publicou seus livros por meio de pseudônimos. Jane Eyre é seu livro mais bem-sucedido, tendo inclusive alcançado a terceira edição em pouco tempo. Casou-se em 1854 com o assistente de seu pai, Arthur Bell Nicholls. Morreu em 31 de março de 1855, depois da morte das irmãs, e grávida de seu único filho.
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

Rascunho