O jornalista e crítico Samuel Johnson é um personagem querido pelos amantes das letras mundo afora. Talvez por isso, o fato de ter sido um pensador agudo no que se refere à política e aos costumes muitas vezes seja deixado de lado por aqueles que veneram o apego do escritor inglês às palavras. O doutor Johnson, como também é chamado, atrai, portanto, entre seus admiradores, não apenas ideólogos que comungam de sua ideologia, mas, também, leitores interessados em descobrir qual é a chave para tanta imaginação e capacidade de transformar textos em verdadeiros objetos de admiração, tanto pelo arcabouço teórico quanto pelo estilo empregados, características que separam os autores ordinários dos extraordinários, para estabelecermos uma ilustração simbólica. Além de Samuel Johnson, outros escritores também são dotados desse talento artístico para a escrita — e aqui, não se trata necessariamente dos escritores de ficção, tampouco dos romancistas ou, até mesmo, dos poetas, de quem muito se espera, mas cujo resultado nem sempre é satisfatório. É preciso, aliás, escapar dessa dicotomia simplória entre os romancistas e os escritores, uma vez que há pensadores da palavra e da retórica que não assinam romances ou poemas, mas, nem por isso, deixam de empregar literatura em seus textos. Este é o caso do Padre Antônio Vieira, sobre quem a editora José Olympio recentemente lançou um perfil biográfico, assinado pelo estudioso Clóvis Bulcão.
Padre Antônio Vieira: um esboço biográfico apresenta um relato ao mesmo tempo objetivo e aprofundado sobre o personagem que, para certa historiografia, se confunde com as missões dos jesuítas à época do Brasil Colônia. Em termos editoriais, a obra se justifica pela efeméride dos 400 anos, comemorados em 2008, daquele que já foi chamado de Imperador da Língua. O que esta publicação tem de diferente, além da trajetória de Vieira no Brasil? Trata-se, desde o início, de um texto bastante equilibrado e elegante, que não esconde as contradições de Vieira, nem deixa de mostrar sua visão algo messiânica sobre a posição de Portugal no mundo. Num raro exemplo de biografia e ensaio, Clóvis Bulcão é hábil em apresentar um rico painel sobre a vida de Antônio Vieira, o que só foi possível com a ampla pesquisa documental e bibliográfica realizada pelo autor, que, para espanto de alguns, é um acadêmico que consegue escrever com fluência e leveza. Nesse aspecto, o leitor tem em mãos um livro que reporta, investiga, analisa e, por fim, revela quem de fato foi Vieira. O livro já seria grande por isso, mas não se resume nesses pontos.
O universo de Vieira
O motivo é simples, embora os meios para tanto parecem não ter sido. Para trazer um relato à altura de um Padre Antônio Vieira, Clóvis Bulcão não se restringiu apenas às seqüências de sua vida nas cidades em que o personagem morou. Estes, com efeito, foram lugares que serviram como cenário para sua análise de fundo sobre o mundo à época de Vieira, com suas intrigas palacianas, bem como as disputas ultramarinas pelo que atualmente se convencionou classificar de geopolítica e relações internacionais. Nesse sentido, o autor de forma bastante clara mostra ao leitor quais eram as circunstâncias que cercavam o universo do Padre Antônio Vieira. Só que aqui, em vez de especular sobre sua motivação psicológica ou mesmo teorizar sobre seus possíveis traumas de infância, o autor amplia o escopo do ensaio e apresenta o cenário internacional — que mais se assemelha à intriga internacional — para que o leitor compreenda algumas decisões polêmicas de Vieira, como a entrega de Pernambuco aos Holandeses ou sua posição acerca do milenarismo e sua crença num destino especial para Portugal. Essas análises, se não justificam as escolhas, cumprem o papel salutar de explicar as motivações de Vieira, o que definitivamente é um avanço.
O esboço biográfico assinado por Clóvis Bulcão também destoa das demais homenagens feitas ao Padre Vieira porque não repete os lugares-comuns em relação à prosa barroca do personagem. Antes, mostra de que forma esses recursos retóricos e estilísticos eram utilizados e qual era o objetivo específico de cada mensagem. Com isso, mesmo os excertos dos Sermões citados pelo autor são distintos daqueles mencionados por medalhões, como é o caso do eterno presidente do Senado José Sarney quando entrevistado há algumas semanas por ocasião de seus escritores favoritos. Em vez do mais do mesmo, Bulcão investe na interpretação histórica das mensagens de padre Vieira, emprestando um sentido à narrativa cronológica que emprega ao esboçar a biografia.
A esse painel histórico e análise de contexto, surge, ainda, uma perspicaz menção aos personagens coadjuvantes do século 17, como o rei dom João IV; os demais jesuítas, que, juntamente com ele (Vieira), faziam campanha contra a situação degradante dos índios. Todavia, durante todo o livro, há uma espécie de instituição que paira sobre este que se pode chamar de “século Vieira”. Trata-se da Inquisição, que a muitos, inclusive a Antônio Vieira, perseguiu devido às suas idéias que denunciavam o estado de coisas do status quo. Assim, ao longo da primeira parte do livro, o biógrafo explica como a Inquisição contava com influência necessária para realizar, entre outras coisas, a caça impiedosa aos judeus na tentativa de fazê-los converter ao cristianismo. Essa sanha persecutória até certo momento não atinge a Vieira, mas, a certa altura do livro, o autor explica por que o padre se tornaria o alvo preferido daqueles que desejavam a pura e simples manutenção de poder, mesmo que os caminhos para tanto tivessem de ser inglórios e complexos.
Embora tenha merecido inúmeros comentários favoráveis, no Brasil e além mar, a respeito de sua prosa, de sua personagem histórica e de sua importância nas relações entre Brasil e Portugal, a obra Padre Antônio Vieira: um esboço biográfico se notabiliza pela proposta única de não esgotar o verdadeiro tema que se converteu Antônio Vieira. As expectativas são mais objetivas, nesse caso, conforme o título do livro já sugere. A despeito disso, o esboço biográfico ensaia uma reflexão do papel político desempenhado por Vieira, sobretudo em seu desejo, por muitas vezes obscurecido pelas narrativas oficiais, em tornar Portugal um Império de fato e de direito, tal como havia sido concebido pelos preceitos milenaristas. Em certa medida, para certa leitura nacionalista, essa é uma das posições inaceitáveis acerca de Padre Antônio Vieira. E sobre isso, Samuel Johnson poderia dizer: “o nacionalismo é o último refúgio do canalha”.