A tragédia alemã

Em "Doutor Fausto", publicado há 60 anos, Thomas Mann discute o instinto artístico destrutivo, conflitos entre ordem e caos, o intelecto e as paixões
Ilustração: Ramon Muniz
01/12/2007

Passados mais de sessenta anos da Segunda Guerra Mundial, muitos ainda se perguntam como um país com tão profundas tradições culturais fora capaz de perpetrar tal barbárie. Outros preferem depositar no “povo” a responsabilidade por votar em um certo Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nazi — abreviatura em alemão) e deixar-se conduzir por um líder “demoníaco”.

Na literatura, Thomas Mann (1875-1955) tentou explicar a tragédia alemã enquanto ela ainda se dava, no épico Doutor Fausto. Para o autor, longe de ser vítima, o nazismo nada mais foi que um produto da cultura alemã. O calhamaço de quase setecentas páginas tenta, por acréscimo, dar conta da Nova Música da primeira metade do século 20.

Lançado em 1947, portanto, há sessenta anos, foi escrito a partir de 1943, nos Estados Unidos, onde Mann vivia na condição de emigrado desde 1938.

Como no seu outro grande romance A montanha mágica, publicado em 1924, cuja história se passa durante a Primeira Guerra Mundial, Mann retoma os temas: arte, religião e filosofia. Críticos costumam enquadrá-los em romances de idéias.

Um dos maiores estudiosos da obra de Mann, o filósofo marxista Georg Lukács (1885-1971), o considera realista e moderno pelo seu enfoque “universal concreto”: a História não apenas como memória individual, mas como presente envolvendo a todos, em contraponto a outros autores como Marcel Proust ou James Joyce, por exemplo, que acusava de radicalmente subjetivos.

Doutor Fausto tem como subtítulo A vida do compositor alemão Adrian Leverkühn narrada por um amigo e traz questões recorrentes na narrativa de Mann: o instinto artístico é destrutivo, conflitos entre ordem e caos, o intelecto e as paixões. Questões complexas tratadas com distanciamento e certa ironia. O personagem do título encarna o espírito moderno dentro de um corpo doentio, onde há referências que lembram a biografia e obras de Friedrich Nietzsche, filósofo que combateu a metafísica por cindir o Homem ante dois mundos: essência e aparência, o certo e o errado, o inteligível e o sensível.

O tema fáustico já havia sido tratado por Goethe em um drama. Trata-se, na verdade, de uma lenda medieval alemã que perpassa toda a Europa, sofrendo variações, mas basicamente é a história de um cientista, homem esclarecido, portanto, que faz um pacto com o inonimável (diabo), ou seja, com as forças obscuras. Mefistófeles lhe concede tempo, juventude e a busca maior do conhecimento em troca de sua alma.

Por essa referência, Mann foi muito criticado. Seus detratores o acusaram de querer se arvorar a um novo Goethe. “Pelo contrário, seria reducionismo relacionar as duas narrativas. Aqui as contradições entre a dialética do conhecimento (Iluminismo): progresso e ciência versus magia; o domínio sobre a natureza (instintos), civilização e barbárie, as contradições da época, enfim, vão alinhavando toda a narrativa”, explica o professor de Teoria Literária e Comparada da USP Jorge de Almeida.

A música permeia todo o Doutor Fausto. A grande discussão é o que se poderia criar depois da Sonata opus 111, de Beethoven, sem retrocessos ao classicismo ou ao privilégio da forma e seu esteticismo estéril tão ao gosto da burguesia germânica da época. Para as minúcias das composições comentadas, inclusive nas inventadas pelo “compositor” Adrian Leverkühn, Mann fora auxiliado (e muito) pelo filósofo e crítico da Música, o alemão Theodor Adorno (1903-1969), e pelo compositor austríaco Arnold Schönberg (1874-1951), também emigrados nos Estados Unidos durante a guerra e que se freqüentavam.

Aliás, toda a Música Nova que o protagonista persegue é calcada na concepção moderna de Schönberg que, por sinal, não gostou nem um pouco dessa liberdade estilística, vamos dizer assim, tanto é que a partir da segunda edição, Mann teve que colocar uma “Nota do Autor” esclarecendo a utilização no romance. Schönberg inovou a forma empregando a escala dodecafônica (sistema que divide a oitava nota em 12 meios-tons combinados livremente) entre 1913-1922. “O músico queria evitar a percepção contínua do tempo musical, passando do atonalismo lírico para o dodecafonismo. No atonalismo livre ela se dá no princípio da forma: tensão/solução. Mas o artista moderno não podia mais fiar-se nos procedimentos da construção clássica, a cada momento ele teria que se por um problema e com extremo rigor, sem excessos. O mesmo aconteceu nas outras manifestações artísticas: pintura, prosa, poesia. É o esgotamento do ‘algo acabado’”, explica o professor Almeida. Era o momento da linguagem aparentemente caótica e que não traz calma ou repouso, antes, inquieta.

Contradições
O narrador da vida do compositor Leverkühn, o amigo Serenus Zeitblon (a escolha do nome da personagem não é gratuito, por se tratar de quase um bonachão pequeno-burguês), que vive na Alemanha durante a Guerra — período em que se passa a maior parte da narrativa —, e que tem com o conflito mundial um certo distanciamento, humanista que é, defende e teme pela arte e pela cultura, não só no que delas o mundo capitalista faz, instrumentalizando-as, como pelo que lhes possam suceder com a vitória da barbárie. “Serenus encarna a cultura tradicional alemã diante do mundo moderno. Esse personagem seria mais uma paródia do próprio Mann. No romance não há ação, grandes deslocamentos, o que há é fundamentalmente diálogos em que as contradições afloram, sem que o narrador tome partido dando razão a um ou a outro”, explica Jorge de Almeida.

“É um ‘pequeno-mundo’. Enquanto a intelectualidade com a qual ele, Leverkühn, mantém contato marcha de encontro à barbárie fascista, a vida subjetiva da personagem nada mais é do que ascetismo, desprezo pelo mundo. Este afastamento do fazer e desfazer dos homens que lhe são contemporâneos abre-se para o demoníaco na sua obra e na sua vida”, escreve Lukács num dos ensaios sobre a obra de Mann.

No entanto, o isolamento, a ironia frente ao mundo e a certos valores, não impedem a Leverkühn problematizar e refletir sobre a arte e o espírito da sua época. Para Lukács, Leverkühn “não apenas buscava a atonalidade da Nova Música, mas o caráter geral da música contemporânea como expressão da decadência moral e espiritual”.

Outro ponto a destacar é se a visão demoníaca em Doutor Fausto é “real” ou se não se trata de um artifício farsesco de Mann para caracterizar o mundo interior de Leverkühn, como em vários personagens de Dostoiévski. Porém, não o diabo como uma encarnação de uma psique moral daquele autor, mas sim com seu inferno no mundo do homem atual. O antigo espírito de comunidade alemã era um longínquo passado, a época do humanismo está se dissolvendo, dando espaço às tendências fetichistas, irracionais e demagógicas. Leverkühn e Serenus têm plena consciência disso e discutem a situação quase que apenas no âmbito da estética e da forma. Ambos vêem que a subjetividade e a liberdade estão em crise, enxergam o esteticismo como precursor da barbárie (que vai dar nos grandiosos desfiles militares e na ordenação dos campos de extermínio).

Serenus, no entanto, não possui nenhum ideal positivo para opô-lo àquelas turvas aspirações reacionárias. “Ele e por extensão uma elite intelectual estavam no seu pequeno mundo de estúdio comprazendo-se de um esnobismo estético-moral irresponsável enquanto as forças reacionárias, demagógicas e mistificadoras utilizam-se dessa dissolução em benefício do capitalismo monopolista”, encerra Lukács em sua crítica.

Em O mundo moderno — Dez grandes escritores, de Malcom Bradbury, há o comentário: “Mann expressava alguma esperança no socialismo democrático, menos por representar um triunfo para o proletariado do que por ser uma perspectiva para o espírito humano”. Talvez caia-lhe melhor as palavras de Serenus: “(…) para um adepto das Luzes, o termo ‘povo’ sempre conserva qualquer traço inspirador de apreensões, de indução à maldade reacionária. Falo do povo, porém aqueles impulsos de natureza arcaica existem em todos nós e não considero a religião o meio adequado para reprimi-los. Isso se consegue unicamente por meio da literatura, da ciência humanística, do ideal do homem livre e belo”.

O AUTOR
Paul Thomas Mann se auto-intitulava herdeiro da tradição germânica-idealista-clássica-romântica, o que vai levá-lo a escrever o artigo Pensamentos de Guerra” (1914), justificando o papel da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, valendo-lhe severas críticas, inclusive de seu irmão Henrich Mann, também escritor.

Em 1918, Mann revê suas posições no livro Considerações de um apolítico, defendendo a participação política do artista para garantir a liberdade de criação.

Esse conflito entre seu espírito defensor da Kultur e o mundo burguês acompanha sua trajetória literária realçada em Os Buddenbrooks: decadência de uma família (1901). Livro meio auto-biográfico mostra quatro gerações de uma família. Thomas Mann era filho de um próspero comerciante, Thomas Johann Henrich Mann, e de Júlia da Silva Bruhns Mann, brasileira, descendente de alemães e negros, nascido a 6 de junho de 1875, em Lübeck. Mann tinha mais dois irmãos, também escritores, e duas irmãs.

Os Buddenbrooks lhe valeu o prêmio Nobel de 1929. Na época, disciplinado como foi na vida toda, relutava em atender uma imprensa afoita e só abriu exceção para um brasileiro, Sérgio Buarque de Holanda, historiador que, por felicidade, estava em Berlim. Mann fez questão de recebê-lo por “suas raízes brasileiras”.

Em 1903, publica Tonio Kröger e Florença. Mann passou dois anos na Itália. Em 1905, casa-se com Katia Pringsheim, que se torna sua eficiente secretária.

Morte em Veneza, um dos seus melhores livros, sai em 1912. A novela narra os últimos dias do escritor Gustav Aschenbach em Veneza e que fica encantado com a beleza de um adolescente. O cineasta Luchino Visconti transpôs a história para o cinema usando músicas de Gustav Mahler, em quem Mann teria se inspirado.

A vida sexual lhe “atormentava”, segundo sua correspondência. “É de se lastimar que com uma obra tão profunda, intensa, nos últimos quinze anos, Thomas Mann vem sido reduzido simplesmente a um escritor gay”, lamenta o professor Jorge de Almeida, da USP.

Os personagens de Mann trazem em si muitos dos seus próprios conflitos que via com pesar o fim da arte clássica, a necessidade de ordem e razão mas também a necessidade de conhecimentos eróticos, perigosos, instintivos, um clamor da natureza, enfim. Talvez isso explique a admiração do escritor pela filosofia de Nietzsche que exalta Dionísio em oposição a Apolo.

Depois da Primeira Guerra, Mann publica alguns contos e ensaios, entre eles, sobre Goethe e Tolstoi. E em 1924, seu grande sucesso, A montanha mágica. Em 1930, o conto Mário e o mágico (ou o Bruxo), contra o fascismo já em vigor na Itália.

Com a maioria de deputados eleitos pelo partido Nacional Socialista, de Hitler, em 1933, Mann tem seus livros queimados e seu nome riscado da Universidade. O escritor muda-se para a Suíça. De lá, faz um violento manifesto sobre a responsabilidade das universidades alemãs pelo Estado nazista. Em Viena, publica o último volume da tetralogia José, bíblico. O tema representa um protesto contra o anti-semitismo.

Embarca para os Estados Unidos em 1938, fixando-se na Califórnia em 1940. Em 1939, publica Carlota em Weimar, inspirado em Werther, de Goethe.

E em 1947, publica seu mais polêmico livro, Doutor Fausto, que gera discussões até hoje, pelas idéias que discute e pelo tempo histórico. Apesar de lamentar a guerra no livro e na vida, Mann recebeu várias críticas negativas tanto da Alemanha quanto nos Estados Unidos (apesar de ser um sucesso de vendas). A crítica na Alemanha também por seus apelos via rádio conclamando os alemães a resistirem a Hitler. Viam-no como um “desertor”, numa situação confortável em relação ao conflito. “Ele gostava de dizer, ‘onde estou, está a Alemanha’, longe de representar uma megalomania, queria dizer que estava o espírito alemão e não a barbárie que a Alemanha vivia”, explica o professor Almeida. As críticas foram tantas que Mann publicou um livro só para explicar A gênese do Doutor Fausto. Em 1947, Mann parte para a Inglaterra e no mesmo ano visita a Alemanha pela última vez. Em 1953, termina Confissões do impostor Felix Krull.

Paul Thomas Mann morre em 12 de agosto de 1955, aos oitenta anos, em Zurique.

Maria Lúcia Rodrigues
Rascunho