A tradição da transgressão

Em “Riso e melancolia”, Sérgio Paulo Rouanet debruça-se sobre a influência de Laurence Sterne na construção de narradores volúveis
Sérgio Paulo Rouanet: “forma shandiana” se manifesta em uma nobre linhagem de romancistas.
01/06/2007

Todos conhecemos o célebre início de Memórias póstumas de Brás Cubas, em que o defunto autor filia sua “obra difusa” à “forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre”, metidas ali “algumas rabugens de pessimismo”. Tal filiação é uma das chaves de leitura mais importantes do romance, e Sérgio Paulo Rouanet dedica um longo ensaio, adequadamente intitulado Riso e melancolia, ao exame dessa influência. Sua estratégia argumentativa é definir a chamada “forma shandiana”, que teria sido criada por Laurence Sterne, para depois descrever como ela se manifesta em uma pequena mas nobre linhagem de romancistas, até chegar em Machado de Assis.

Laurence Sterne publicou as nove partes de A vida e as opiniões de Tristram Shandy, cavalheiro, entre 1760 e 1767. Apesar da reprovação da crítica, que no geral parece ter julgado a obra extravagante demais, o público adorou. Curioso, já que o livro “agride” o leitor constantemente, sabotando as expectativas usuais do romance. Só lendo para ver: o enredo central (qual seria, mesmo?) se perde em um incrível fluxo narrativo que é todo ele uma grande digressão, e acabamos por saber muito pouco da vida de Tristram Shandy.

Em parte, esse “desrespeito” para com o leitor pode ser compreendido como uma sátira ou uma provocação às formas narrativas tradicionais de então. O narrador cria expectativas no leitor para depois descumpri-las; elogia-o, para em seguida ironizar sua falta de bom gosto, sua ingenuidade ou mesmo sua incapacidade de compreender o que está lendo. É um narrador desaforado que chama a atenção, o tempo todo, para o fato de estarmos lendo um romance, um artefato sobre o qual ele, o narrador, detém todo o poder. Chega a usar sinais gráficos para explicar ou suprimir trechos da história. Em suas intermináveis digressões, são discutidos os mais variados assuntos, com especial predileção pelos comentários sobre a estrutura do livro e do romance enquanto gênero.

A tese de Rouanet é que essa “forma shandiana” — ou “shandismo”, termo usado pelo próprio Sterne — se define por

uma atitude entre libertina e sentimental, um sensualismo risonho, um humor afável e tolerante, capaz de perdoar as transgressões próprias ou alheias, mas também de zombar, sem excessiva malícia, dos grandes e pequenos ridículos do mundo. Nessa significação, o shandismo é uma maneira de ver e sentir, no fundo uma questão de temperamento, e nesse sentido podemos falar em personagens shandianas sem pensar em Sterne, do mesmo modo que aludimos a personalidades pantagruélicas ou quixotescas sem em nenhum momento pensar nem em Rabelais nem em Cervantes.

A atitude deste narrador, temperamental, zombeteiro e caprichoso, seria incorporada mais tarde por escritores que, a princípio, teriam pouco em comum: Denis Diderot, em Jacques, o fatalista, e seu amo (publicado postumamente, em 1796); Xavier de Maistre, em Viagem em torno de meu quarto (1795); Almeida Garrett, em Viagens na minha terra (1846); e, finalmente, Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881). Todos estes romances compartilham as principais características da forma shandiana. A cada uma delas, é dedicado um capítulo de Riso e melancolia.

A primeira e talvez mais importante dessas características é a “presença constante e caprichosa do narrador”. Na prática, ela “se manifesta na soberania do capricho, na volubilidade, no constante rodízio de posições e pontos de vista. E se manifesta na relação arrogante com o leitor, às vezes mascarada por uma deferência aparente”. É assim quando o narrador de Jacques, o fatalista reafirma constantemente seu poder sobre o enredo e sobre os personagens. Ele declara, por exemplo, que só dependeria dele próprio interromper ou continuar a história, enviar os personagens para uma viagem distante, ou fazer o leitor aguardar anos pelo aguardado relato dos amores de Jacques.

Também o narrador de Viagens da minha terra carece de boa educação no trato com os leitores. Quando desconfia que alguns de seus “leitores amigos” não estejam acompanhando como devem sua história, avisa, rigoroso: “Escuta! Disse eu ao leitor benévolo, no fim do último capítulo. Mas não basta que me escute: é preciso que tenha a bondade de se recordar do que ouviu no capítulo XXV”. Ou ainda: “Não seja pateta, senhor leitor, nem cuide que nós o somos”. Os exemplos são inúmeros.

Fragmentação e digressão
De narradores tão caprichosos e temperamentais, não se poderia mesmo esperar narrativas muito lineares. Daí que todos os romances em questão se caracterizem pela fragmentação e digressão, pelo tratamento altamente subjetivo conferido tanto ao tempo quanto ao espaço da narrativa, e pelo o que Sérgio Paulo Rouanet chama de “interpenetração do riso e da melancolia”.

A análise, em si, não é nova, mas tem a vantagem de ser bastante clara e descritiva. E numa época em que o termo “acadêmico” é usualmente compreendido como sinônimo de hermetismo e soberba intelectual, é necessário enfatizar que, neste sentido, Riso e melancolia é um ensaio bem pouco acadêmico. Sem recorrer constantemente à ampla bibliografia crítica sobre o assunto, Rouanet consegue descrever com clareza, por exemplo, os principais tipos de digressão que podem ser encontrados nos romances em questão. Ou mesmo quando se põe a analisar em que medida tais digressões interrompem o fluxo da história principal para, muitas vezes, desdobrarem-se em novas narrativas, opiniões, reflexões. Os resultados dessas análises assemelham-se bastante a uma fórmula matemática, e lembram a tentativa do próprio Tristram Shandy de explicar, por meio de gráficos, o andamento de seu romance. Felizmente, Rouanet, como Shandy, sabe que o prazer não está no desvendamento de um enigma ou na decifração de um desenho oculto, mas na própria natureza do percurso acidentado que é a leitura de cada um desses livros.

É evidente que nenhuma das características da forma shandiana lhe é exclusiva, e que podem, em maior ou menor grau, serem encontradas em outros escritores, de quaisquer épocas. Sérgio Paulo Rouanet assume essa evidência, e nos lembra de que autores como Henry Fielding, de Tom Jones, já cultivavam o gosto pelos narradores volúveis, que intervinham constantemente na narração. No caso de Fielding, entretanto, a intervenção do narrador não seria de natureza tão caprichosa e imprevisível. Somos lembrados ainda que o romance picaresco, a exemplo das obras de Sterne, Diderot, e seus pares, também apresenta um grande número de digressões, embora suas interseções com a narrativa principal não sejam tão sistemáticas como na forma shandiana.

Tais explicações podem ser verdadeiras, mas talvez pudessem ser mais bem desenvolvidas por Rouanet. Por serem breves demais, o leitor fica com a impressão de que há mais semelhanças entre Tom Jones, o romance picaresco e a forma shandiana do que o ensaio revela. Talvez falte ao livro, portanto, maior detalhismo na explanação de certos conceitos, ou seja, maior rigor de detalhes (esta qualidade tão “acadêmica”), ao menos em algumas passagens.

Por exemplo: já em suas conclusões finais, Sérgio Paulo Rouanet questiona o argumento difundido por certa corrente crítica segundo a qual Sterne seria o continuador da sátira menipéia, gênero de representantes ilustres como Menipo de Gandara, Sêneca e Luciano de Samósata. Para tanto, Rouanet lança mão de conceitos complexos, como paródia e verossimilhança, mas que acabam por receber pouca atenção. Do mesmo modo, a tipologia dos narradores shandianos (descrita já na página 241) poderia ser revista, podendo incorporar, com bastante proveito, a categoria de autor implícito, por exemplo, categoria que fez falta durante todo o livro. São detalhes formais que não podem nem devem ser discutidos à exaustão em uma resenha. Mas que mereceriam maior atenção nas conclusões de um estudo sério como Riso e melancolia.

De qualquer modo, e apesar destas imperfeições localizadas, Riso e melancolia ainda é uma leitura bastante recomendável, um bom guia de leitura para as obras em questão. Se Tristram Shandy, esse incrível personagem criado por Laurence Sterne, é o “protótipo de todos os narradores volúveis”, seguramente ele tem muito a nos ensinar sobre a literatura contemporânea. Muitos dos procedimentos narrativos considerados como grandes inovações do romance pós-moderno nasceram, essencialmente, com o próprio gênero romance. Não há dúvida de que Sterne e seus seguidores estão entre as leituras mais contemporâneas a que poderíamos almejar.

Riso e melancolia
Sérgio Paulo Rouanet
Companhia das Letras
248 págs.
Sérgio Paulo Rouanet
Diplomata e cientista político, é membro da Academia Brasileira de Letras. Atuou como jornalista cultural, professor, e foi Secretário Nacional da Cultura. É autor, entre outros, de As razões do Iluminismo, Mal-estar na modernidade e Os dez amigos de Freud.
Gregório Dantas

Gregório Dantas é professor de literatura portuguesa da UFGD.

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