A tirania das paixões

Vladimir Nabokov coloca no centro de sua obra o desafio da consciência, e o envolve no mais alto estilo literário
Vladimir Nabokov por Ramon Muniz
01/12/2013

Watch out the world’s behind you.
The Velvet Underground

 1.
Jamais houve a mínima possibilidade de as coisas acontecerem por acaso nas histórias de Vladimir Nabokov, mas ele não hesitou iniciar a trama de seu melhor conto — As irmãs Vane, escrito em março de 1951 — com as investigações “triviais” de um narrador incógnito em primeira pessoa. Este é um professor de literatura francesa e tem um comportamento bastante errático, por assim dizer: gosta de olhar para estalactites e descobrir nelas o exato momento em que a gota que sai da sua ponta forma “um perfeito sinal de exclamação”. Em um desses domingos “repletos de jóia, repletos de lama”, logo depois de uma nevasca, ele procura essa estalactite ideal e perde a noção do tempo; subitamente, vem a noite e o professor se encontra acompanhado da “sombra alongada do parquímetro sobre a neve úmida”, indicando que a sua busca talvez não tenha mais fim. Ao tentar voltar para casa, encontra-se com um antigo amigo, chamado apenas pela inicial D., que resolve relembrar os velhos tempos — e o professor faz isso meio a contragosto. Saberemos em breve a razão desse desprezo oculto: D. conta que, depois de muito tempo, foi informado por seu advogado que enfim Cynthia, uma amiga em comum, havia falecido.

Trata-se de Cynthia Vane, conhecida entre esses dois homens por ser a irmã de Sybil Vane, a ex-amante de D. que se matou logo depois que ele decidiu não a ver mais. Sybil não sabia (e nunca saberia?) que o rompimento foi motivado pelas intrigas de Cynthia e o narrador; a irmã (gêmea, por sinal) decidiu que o affair não estava fazendo bem à alma de Sybil, devido ao seu comportamento errático, e, junto com o professor, pressionou D. a deixá-la sem hesitação — no que eles foram prontamente atendidos, sem contudo perceberem quais seriam as conseqüências na psique de Sybil, cuja carta de despedida deste mundo foi escrita no meio de uma prova de francês: “Cet examen est fini ainsi que ma vie. Adieu, jeunes filles! Por favor, Monsieur le Professeur, contate ma soeur e diga a ela que a Morte não era melhor que D menos, mas era definitivamente melhor que a Vida menos D”.

Nabokov (1899-1977), um russo exilado, fugitivo da Revolução Russa em 1919, gostava de inserir esses pequenos truques lingüísticos nos momentos de maior tensão dramática, seja nos contos ou romances. Era uma característica de seu humor peculiar, seco, que não pode ser considerado “negro” porque ainda assim havia certa misericórdia com seus personagens. Afinal, como um bom eslavo, mesmo desprezando Dostoiévski (considerava-o um escritor desleixado e histérico), ele sabia que todos eram falíveis e capazes da auto-destruição mais sedutora. Na mesma época em que escrevera As irmãs Vane também estava às voltas com outra criação, o romance que lhe daria infâmia, Lolita (1955): as confissões do viúvo Humbert Humbert, que resolve seduzir sua enteada de treze anos e, para escândalo de todos (e dele mesmo), descobre que ela sabia mais sobre sexo do que muita gente presumia — além de ter outro amante, Clare Quilty, que a corrompia de modo muito mais perverso do podia imaginar o pobre Humbert.

As irmãs Vane e Lolita têm suas semelhanças, apesar de o primeiro ser uma espécie de história fantástica, influenciada pelos contos de fantasmas de Henry James, e o segundo ser vendido como um romance escandaloso, picante, quase pornográfico (veremos em breve como esta classificação é enganosa). Além do fato de ambos os personagens principais serem professores que estudam alguma espécie de literatura (no conto é a francesa; no romance, Humbert é especialista em literatura inglesa), o que, tal como acontecia com o próprio Nabokov, dava-lhes a impressão de que eram “estetas doentios”, a estrutura dos dois enredos sempre envolve não só um triângulo amoroso, mas sobretudo um quarteto, muitas vezes se estendendo para uma quadrilha em que ninguém sabe muito bem (em especial, o leitor) quem cobiça quem e, principalmente, o que cada um dos envolvidos pretende com isso. É claro que todos vivem no desconhecimento: Nabokov é um escritor perfeitamente ciente de que não existe acaso nas leis do desejo; em seu mundo, a carne muitas vezes se sobrepõe ao espírito, e a função da literatura é captar isso com as maiores nuances possíveis, como explicitado neste trecho em que o narrador descreve como seria a experiência de D. ter tocado o corpo de Sybil Vane, mesmo no instante de sua trágica despedida:

[…] Cynthia me levou ao andar superior, até um quartinho gelado, só para me mostrar, como se eu fosse a polícia ou um simpático vizinho irlandês, dois frascos de comprimidos vazios e a cama desarrumada de onde um corpo macio, não essencial, que D. devia ter conhecido até seu último detalhe aveludado, já havia sido removido.

Um bom leitor perceberá que a revelação está na expressão “detalhe aveludado”. Sim, teremos que iluminar o que Nabokov gostaria de deixar cifrado: o narrador desejava Sybil — e passamos a compreender no decorrer do conto que ele também queria conhecer seu “detalhe aveludado”. Mas não é um desejo qualquer: percebemos que ele é plenamente correspondido, seja por Cynthia (com quem o professor travará uma convivência mais constante em soirées excêntricas, que envolvem espiritismo e outros comportamentos bizarros), seja por Sybil, que, talvez justamente por esse motivo, resolveu anunciar sua partida para o continente desconhecido em uma prova de literatura francesa. Fica claro que, ao se encontrar com D. no início do conto, o desprezo do professor a ele se deve porque era, antes de tudo, um obstáculo para que seu desejo acontecesse de forma plena. Ao mesmo tempo, é de se perguntar: teria sido um encontro que aconteceu por acaso?

A arte de Nabokov está em contar esses eventos com uma naturalidade que o leitor jamais percebe como um artifício. O desejo em suas histórias não se reduz ao meramente sexual; ele é um alimento que impulsiona um circuito fechado no qual as personagens têm a sensação de que estão presas para sempre em uma jaula de onde não há escapatória. Muitas vezes, isso é disfarçado pela ironia, pelo humor agridoce ou pelo virtuosismo técnico — que não escondem o fato de que todos desejam alguma coisa porque não resta mais nada a fazer. Eles estão presos dentro de si mesmos. A carne aveludada das musas, das ninfetas e das irmãs gêmeas deixa de ser uma meta para se tornar um mero motivo para conquistar algo impalpável. E isso só pode ser descrito e, mais, recriado por alguém que sabia intimamente como era viver em uma tirania, na qual “a guerra de todos contra todos” ocorria de maneira subterrânea porque, não fosse dessa forma, a morte sequer surgiria para essas pessoas como uma chance para a libertação.

2.
Há um trecho importantíssimo em Lolita, mas pouco comentado, em que Humbert Humbert imagina como seria a intimidade da pequena Lola:

A minha teia está espalhada por toda a casa enquanto acompanho tudo da cadeira onde me sento como um astuto feiticeiro. Estará Lo em seu quarto? Suavemente, puxo o cordão de seda. Não está. Acabo de ouvir o rolo de papel higiênico produzir seu som staccato enquanto gira; e o longo filamento que lancei não capta passo algum de volta do banheiro para o quarto dela. Ainda está escovando os dentes (a única atividade sanitária a que Lo se entrega com autêntico entusiasmo)? Não. A porta do banheiro acaba de bater, de maneira que precisamos sondar outras paragens da casa à procura da linda presa de cores quentes. Lancemos um fio de seda escada abaixo. E por meio dele verifico que ela não está na cozinha — nem batendo com estrondo a porta da geladeira nem berrando com a mãe que detesta (e que, imagino, deve estar entregue à terceira jubilosa, arrulhante e contidamente animada conversa telefônica da manhã). Bem, limitemo-nos a sondar e esperar.

O comportamento de Humbert não é apenas o de um predador (“a minha teia”); é sobretudo a libido dominandi peculiar de um tirano que está em curso — e não seria exagero admitir que, mais do que um romance sobre as peripécias sexuais de uma jovem lasciva e um velho pervertido, Lolita é também um dos mais profundos livros políticos já escritos no século 20, comparável a qualquer coisa concebida por um Orwell e um Koestler. Dolores Haze está aprisionada entre dois ditadores, o obcecado Humbert e o malicioso Quilty, mas isso não ocorre apenas porque ela é uma vítima, mas porque é um perfeito exemplo daquilo que chamamos de servidão voluntária. Ela se entrega à sua prisão com fervor, como se sua própria vida dependesse daquilo — e nada mais. Este comportamento é aplicado com rigor, igual a uma permutação matemática, a todos os outros personagens de Nabokov — dos amantes incestuosos de Ada ou ardor (1969), da relação doentia entre Charles Kinbote e John Shade em Fogo pálido (1962), até a certeza de Cynthia Vane de que os mortos a acompanham a cada momento — o que nos leva a crer que, como bem afirmou Martin Amis, toda a obra de Vladimir Nabokov é “um estudo sobre a tirania”.

Ele sabia do que estava falando, e o mostrou naquilo que fazia melhor: escreveu dois romances primorosos sobre o tema — Invitation to a beheading, de 1936, e Bend sinister, de 1947. Seu filho, Dmitri, uma vez falou a Lila Azam Zanganeh que o escritor russo nunca se recuperou de três grandes perdas: a da infância, pela qual nutriu uma nostalgia que teria de ser recuperada por uma literatura que parasse o fluxo do tempo, tal como Marcel Proust fez no ciclo Em busca do tempo perdido; a do pai, assassinado em 1922 enquanto a família estava refugiada em Berlim, por ter impedido que um fanático czarista matasse um político democrático, um evento típico entre os exilados que sofriam com a loucura ideológica deixada pela Revolução Russa; e a da língua-mãe, já que Nabokov teve de escrever em francês, alemão e, depois, em inglês, para não morrer literalmente de fome.

Essas perdas foram provocadas pelos acasos da História — da qual ele não se libertaria por muito tempo. Em 1939, quando já estava mais ou menos acostumado com o seu cotidiano berlinense e os nazistas chegavam ao auge da alucinação coletiva, teve de fugir novamente para a França e depois para os EUA porque sua esposa, Véra, era judia. Portanto, ele sabia muito bem o que era viver sob uma tirania — ainda mais a que se imiscuía no dia-a-dia de forma invisível, quase imperceptível, sem que ninguém percebesse que de fato não havia fuga.

É claro que Nabokov também entendia que viver dessa forma o tempo todo implicava no perigo de adentrar os pântanos da loucura — e por isso, para ele, a ambigüidade da literatura era uma espécie de cura, disfarçada muitas vezes de placebo, que poderia salvar ou levar alguém à danação completa. Daí a tendência “esteticista” apresentada por suas criações mais célebres: elas preferem ver o mundo onde vivem, sempre cercado por um vazio implacável ou abençoado por uma felicidade efêmera, como um palco ou um belo quadro de arte, em que as decisões morais são feitas entre o “belo” e o “feio”, nunca entre o “bem” e o “mal”. Ao recusarem esta última possibilidade — na verdade, a única que nos resta enquanto não formos personagens literários —, partem para a construção de mundos alternativos, de “segundas realidades” que estimulam somente a expansão de suas próprias tiranias.

É o que acontece com Cynthia Vane e o professor de literatura quando ambos tentam lidar com a morte de Sybil. Ela começa a ter a sensação de que “sua falecida irmã não está totalmente satisfeita” com sua atitude, talvez porque finalmente soube da sua interferência no seu caso com D. Explica ao narrador que sente a “aura interventora” de Sybil em vários objetos com os quais se depara em casa ou na rua; estende a sua “mansa metafísica” não só para a morta querida, mas também a outras almas penadas que já passaram em sua vida. Podiam ser eventos extraordinários ou microscópicos. Tudo tinha um sentido, tudo era constantemente observado por alguém ainda desconhecido. Neste raciocínio, havia uma guerra secreta a ser travada, e Deus — bem, Deus era a conseqüência lógica das “pessoas que se ressentiam de qualquer ditador onipotente na terra” e que “procurariam ou não procurariam por um ditador no céu”. De resto, para Cynthia (sempre de acordo com o que nos é apresentado pelo narrador), eles estariam no meio de um combate de “soldados mortos ainda combatendo soldados vivos, ou exércitos-fantasma tentando atacar uns aos outros através de vidas de velhos aleijados”.

Não é um cenário agradável para quem ainda acredita viver em uma espécie de realidade concreta. Contudo, Nabokov não estava preocupado com objetividade — para ele, sua literatura era uma percepção mais aguçada sobre a diferença entre as coisas, nunca por meio das palavras, mas pelas sombras das palavras. Cada história criada não era mais uma simples narrativa: o russo escrevia com a força de um poeta. Um conto ou romance seu tinha de ter a concisão de um “ponto imutável no tempo”, igual ao Aleph de Borges, que, por sinal, vem do nome Alph, rio que Samuel Taylor Coleridge identificou como o que circundava o palácio de Xanadu na sua visão incompleta sobre o imperador Kubla Khan — e se retirarmos o “h”, ficaria Alp, as três iniciais de Anna Livia Plurabelle, a musa inspiradora de James Joyce em seu incompreensível Finnegans Wake (1939), um autor que Nabokov tratava com muito carinho pois ambos sabiam como o relacionamento entre os vivos dependia da bonança dos mortos. E não é por acaso que essas informações são também citadas em um único parágrafo de As irmãs Vane: como um monarca do exílio, Nabokov quer dominar todos os espectros da literatura, os do futuro e os do passado, para que seu leitor saiba que a “única coisa verdadeira” nesta vida é a consciência, esta “mensagem rabiscada no escuro”. Sem ela, não seria possível superar as três perdas que o impulsionaram a continuar a escrever; sem a consciência, jamais conseguiria recuperar a infância em um presente contínuo; jamais conseguiria entender as razões pelas quais seu pai partiu para sempre, influenciando o resto de sua existência; e jamais saberia qual era a luz que o guiava nesta mensagem escrita na completa escuridão deste século, do qual o autor foi uma de suas vítimas mais ilustres.

E como Nabokov sobreviveu a tudo isso? Sim, graças a este grão, a esta gota que sai de uma estalactite quase perfeita, ele não apenas suportou o fim da infância, a morte do pai e a despedida da língua materna; o escritor nunca deixou de ser uma criança em busca de uma visão mais ampla do mundo — foi mais: tornou-se um patriarca de um universo próprio e nos deixou as sentenças mais sinuosas e mais sensuais da língua inglesa, tão sedutoras que, apesar dos críticos simplesmente não entenderem as nuances da sua sintaxe (entre eles, os revisores da The New Yorker), eram capazes de provocar reações como a do scholar Morris Bishop: “Algumas frases suas são tão boas que me deixam com uma ereção — e na minha idade, você sabe, isso não é fácil”.

Afinal, a consciência também tinha direito a esse “detalhe aveludado”. Mesmo assim, algo incomodava Nabokov. Seriam as sombras que saíam do fascínio das palavras? Ou seria a sensação, igual a que Cynthia Vane tinha, de que havia outra realidade, mais misteriosa, mais moral, refém das mãos do acaso, que podia destruir toda uma estética construída por anos a fio, como se fosse uma teia infinita e circular e que aprisionaria para todo o sempre a mensagem que sua consciência deixaria para o mundo após sua partida?

Nabokov não estava preocupado com objetividade — para ele, sua literatura era uma percepção mais aguçada sobre a diferença entre as coisas, nunca por meio das palavras, mas pelas sombras das palavras.

3.
Em 1975, o prêmio Nobel Alexander Soljenítsin marcou um almoço com Vladimir Nabokov no restaurante do Hotel Palace, em Montreux, Suíça. Naquela época, eram os dois exilados russos mais famosos do mundo. O primeiro, herdeiro de Tolstói e Dostoiévski, tinha suas críticas ao pretenso “esteticismo” do segundo, que se considerava então um seguidor de Alexandre Pushkin (aliás, foi justamente por isso que Nabokov brigou com seu grande amigo Edmund Wilson, devido a uma tradução que o russo fez de Evgeny Onegin, e que o americano afirmou estar equivocada. Isso foi como um insulto mais do que pessoal para o velho Vlad); mas ambos se respeitavam e, quando estavam vivendo na região dos Alpes, resolveram se encontrar. Soljenítsin chegou no horário marcado, com sua esposa Natalya; sentou-se em uma cadeira do lobby do Palace e ficou muito incomodado com os empregados uniformizados do hotel (onde o pai de Dolores Haze morava após ter ficado rico, graças aos direitos de Lolita), e que o faziam lembrar inconscientemente dos guardas do gulag que o mantiveram prisioneiro por onze anos. Os minutos se passaram — e nada do anfitrião aparecer. Irritado, Soljenítsin resolveu ir embora. O que ele não sabia é que Vladimir e Véra Nabokov — também exigentes com a pontualidade — estavam no restaurante do hotel, esperando pacientemente, em uma mesa reservada para quatro pessoas.

A anedota acima mostra como o acaso interfere na vida pública e privada dos grandes escritores — e a única coisa que podemos fazer é imaginar como teria sido o encontro desses dois sujeitos que, aparentemente em pólos distintos da experiência literária, na verdade tinham a ojeriza moral de ver o ser humano aprisionado em planos de reengenharia social. Mas havia uma diferença crucial entre Soljenítsin e Nabokov: se o autor de Arquipélago Gulag pouco a pouco se aproximava de uma visão mística da existência, em que a consciência do homem só tinha redenção se abraçasse completamente a abertura da alma ao transcendente, Nabokov preferia o ceticismo cauteloso de que talvez a nossa passagem pela terra não fosse tão certa de princípios imutáveis, e de que seríamos seres em constante estado de metamorfose.

Daí sua fixação para com as borboletas, tornando-se um dos maiores especialistas mundiais nesse assunto — e ele via a ficção da mesma forma. Quem o leu atentamente sabe que há sempre um momento em que o enredo se volta para si mesmo — e, de repente, há uma reviravolta, preparada desde a pupa, agasalhada no casulo do estilo e que abrirá as asas quando ninguém espera que isso aconteça. Nabokov tinha plena noção de que a imaginação literária devia ser capaz de representar essas metamorfoses surpreendentes do real — e esta deveria ser a razão de sua admiração por Shakespeare, com quem se identificava porque, afinal, ambos acreditavam que a literatura “era uma força para o Bem” e que devia ser uma resistência contra as forças tirânicas do destino disfarçado de casual. Assim, segundo Brian Boyd, não seria um exagero afirmar que, mesmo com a ausência de uma “evidência objetiva”, Nabokov era fascinado pelas possibilidades dramáticas do “além” (beyond), guardando-as em seu íntimo como intuições muito profundas, contribuindo para aquela percepção da inesgotável riqueza do mundo onde vivemos, até mesmo em seus mínimos detalhes (e aqui voltamos à sua felicidade de entomologista), sem nos esquecermos de que a existência de uma possível ordem atrás do véu que nos protege de ver a realidade implacável não impede o fato de aceitarmos que também estamos rodeados por uma desordem toda nossa.

Porque, afinal, sempre teremos de enfrentar as sombras que nos cercam e que não dão espaço nenhum para o acaso: “o escuro da ausência e o escuro do sono”. E nesses momentos nem a literatura pode fazer algo — como tentou o nosso professor de literatura francesa ao querer “combater” Cynthia na mesma noite em que soube do seu falecimento. Ele mergulha justamente nos sonetos de Shakespeare e descobre padrões inusitados na distribuição dos versos; entre eles, crê que cada letra inicial de uma linha forma acrósticos, tal como FATE (fado), ATOM (átomo) e até mesmo TAFT (o sobrenome do vigésimo sétimo presidente americano?). Um desses poemas, o de número 131, começa exatamente dessa forma: Thou art as tyrannous, so as thou art,/ as those whose beauties proudly make them cruel [“Tu és tão tirânica como aquelas belezas que são orgulhosamente cruéis”, em tradução aproximada]. Quem será a bela que aprisiona o professor? Cynthia? Sybil? Ou as duas irmãs Vane, enredadas na peculiar vaidade (ou no peculiar vazio) de cada uma, como indica o título do conto? Perguntas surgem e desaparecem no anseio de palavras que não são ditas de forma adequada. Tudo parece morto — e o nosso narrador percebe que “o silêncio também era suspeitamente compacto, como se formasse deliberadamente um pano de fundo negro para o relâmpago nervoso causado por qualquer pequeno som de origem desconhecida”.

Na metamorfose maior da vida — a de que finalmente nos transformamos em insetos do além —, fica evidente a impotência da arte. Estamos sujeitos aos truques de um “poltergeist barato”. Se um mero professor de literatura francesa não consegue suportar a escuridão de uma noite repleta de ausências, o que dizer de nós, pobres mortais que dependemos das letras como um antídoto da nossa própria gaiola? De nada adianta apelar para a “carne e a corrupção da carne, para refutar e derrotar a possível persistência da vida desencarnada”. Todos nós somos fantasmas em potencial. A única coisa a fazer é torcer para termos consciência quando trocamos de lado de um mundo para o outro.

4.
Em meados da década de 1990, Alexander Soljenítsin escreveu o seguinte poema em prosa: uma tempestade surgiu em plena luz do dia e, perto de sua casa, viu-se um relâmpago dourado cruzar o céu; alguns instantes depois ouviu-se um estrondo. Havia algumas árvores por perto e percebeu-se que o motivo do barulho foi um tronco dividido exatamente ao meio — e o raio havia atingido até as raízes da árvore, levantando-a do chão sem que ninguém explicasse como isso aconteceu. Um lado do tronco estava despedaçado; o outro lado estava ainda de pé, mas no dia seguinte já tinha sido recebido pelas irmãs que estavam espalhadas pelo solo. “E é assim com alguns de nós”, arremata Soljenítsin. “Quando a consciência nos assola com o seu relâmpago iluminado, nos atinge até o nosso ser mais íntimo e nos afeta até o fim dos nossos dias. E depois desse golpe, ninguém pode afirmar quem ficará de pé e quem vai para o chão.”

O raio da consciência não perturbou o resto da vida do professor de literatura francesa. Na verdade, logo depois da noite em que “combateu” os indícios de que Cynthia Vane o estava acompanhando no mesmo dia em que soube da sua morte, ele resolveu desistir de qualquer inquirição metafísica e dormiu até encontrar uma “paz atávica” no amanhecer. Acordou — e tudo parecia que estava de volta ao normal. Deitado na cama, tentou escutar os pardais que estavam à beira da sua janela — e imaginou que eles lhe diziam algumas “palavras enunciadas”, “sons de pássaro que pudessem se transformar em discurso humano”. Tentou decifrar a noite passada como se fosse um sonho, mas não chegou a nenhuma conclusão, exceto esta estranha sensação:

Eu sentia ter algo lá — amarelados corpos tíbios, intangíveis, transformados em sinais de espíritos, materializando iridescências nebulosas, herméticas. Acrósticos ineptos, radiosas miragens arquitetadas por almas rapaces. Quando uma imagem me enternecia, tateava rastreando outra, mas era uma solteirona yankee brandindo ilusões lamentáveis.

Quando Vladimir Nabokov enviou As irmãs Vane à The New Yorker, o conto foi recusado. Alegaram que não havia uma trama definida, que não havia suspense. Ele seria finalmente publicado oito anos após a sua concepção na revista Hudson Review — mas isto só aconteceu devido à repercussão de Lolita. Em 1966, cerca de quinze anos depois da escrita desta engenhosa história de desejos reprimidos e mal articulados, quando finalmente a publicou no volume Tyrants destroyed [A destruição dos tiranos], Nabokov enfim nos revela em uma nota o que pretendia com este parágrafo final, aparentemente desconexo e sem vida: “[…] o narrador não tem conhecimento de que seu último parágrafo foi usado acrosticamente por duas moças mortas para garantir sua misteriosa participação da história. Esse truque particular pode ser tentado apenas uma vez a cada mil anos. Se deu certo é uma outra questão”.

Ah, claro que deu certo, meu caro. É chegado o momento em que o leitor deste ensaio não ficará nem um pouco agradecido — porque infelizmente (ou felizmente, dependendo o ponto de vista) teremos que revelar a grande reviravolta desta história, a reviravolta em que se prova como Vladimir Nabokov era um mestre para retorcer as metamorfoses das nossas expectativas. Mas não se preocupem: literatura não é novela das oito; é, antes de tudo, o trabalho com a forma — e o que importa não é a história no seu particular, e sim o narrar como um todo, o narrar que exibe as delícias de uma imaginação moral completamente dilacerada pelo raio dourado da consciência.

Assim, se o leitor ler com lupa o parágrafo citado acima, perceberá que cada inicial de cada palavra das frases cria o seguinte acróstico: ESTALACTITES DE MINHA IRMÃ PARQUÍMETRO MEU SYBIL. E logo vem a pergunta: O que vem a ser isso? Seria muito simples se não fosse também astucioso: no último instante de leitura, descobrimos que o conto que acabamos de ler não foi escrito totalmente pelo professor de literatura francesa — ele tinha sido escrito, com uma pequenina ajuda material do nosso narrador incógnito, pelas duas irmãs Vane. Dessa forma, Nabokov cumpre todos os requisitos das regras da história secreta que existe nas frestas da trama superficial de uma narrativa breve, tal como nos ensina Ricardo Piglia (ou teria sido contrário?). Cada página desta trama tem agora um duplo sentido. Quem vigia quem? O professor fica adormecido em sua consciência pois não percebe as nuances do além em sua vida. Mas nós, os leitores, somos atingidos pelo raio dourado e não somos mais os mesmos depois de ter lido estas linhas tecidas pela teia de Nabokov. A descoberta é terrível porque reconhecemos enfim que o mundo nos observa sem perdão — e que as estalactites e os parquímetros com os quais esbarramos são mais do que acidentes: são verdadeiros portais para a descoberta.

Contudo, estamos preparados para isso? Em As irmãs Vane, Nabokov afirma que não — e por um motivo singelo: queremos ficar presos em nossas servidões voluntárias; escolhemos nos enjaular na pior das tiranias — a tirania das paixões. Quem paga por isso tudo é a própria vida — que pode existir além de nós ou é somente um lamentável engano. Depende da escolha do sujeito que procura somente o “detalhe aveludado” ou então resolve combater “o escuro da ausência”. Entre esses dois, existe o ínfimo espaço da liberdade, que se sustenta graças a um grão chamado consciência — e é o que nos mantém sempre em hesitação, como vítimas de um acaso que ainda não se decidiu se ficamos de pé ou se finalmente vamos cair, enquanto a beleza desse mundo enreda e envolve tanto os vivos como os mortos.

Martim Vasques da Cunha

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista, doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade de São Paulo, autor de Crise e utopia: O dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e de A poeira da glória – uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record).

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