Simone de Beauvoir foi uma das mulheres intelectuais mais importantes do século 20, uma “fêmea teórica” que não abdicou da vida e de sua ação no mundo. Deixou para nós um legado imenso de ideias e reflexões em seus ensaios filosóficos, contos, romances, teatro, diários, cartas, autobiografias, textos jornalísticos e textos políticos. Para ela, cada passo dado na vida era uma escolha filosófica e o divórcio entre filosofia e vida não deveria existir.
Uma admirável introdução a essa vida plena de potência é o livro de Kate Kirkpatrick, Simone de Beauvoir: uma vida, deliciosa biografia crítica da mulher que “não nasceu mulher, mas se tornou mulher”.
Kate é professora de Filosofia e Cultura no King’s College de Londres e deu aulas sobre feminismo e a filosofia de Simone de Beauvoir em Oxford. Sua biografia crítica atualiza a figura de mlle. Beauvoir, pois Kate teve acesso a materiais inéditos, cartas e diários recentemente encontrados e, cronologicamente, apresenta-nos a evolução das ideias e vivências de Simone com citações e contextualização tiradas de seus próprios textos e entrevistas.
O livro de Kate tem o mérito de mostrar a formação intelectual de Simone de Beauvoir antes de ela conhecer Jean-Paul Sartre e de apurar que Simone sempre fora rigorosa na formulação de conceitos e de ideias que vieram a influenciar e até determinar o desenvolvimento do pensamento de Sartre.
“A parte mais profunda de minha vida são meus pensamentos”, escreveu uma Simone de 19 aninhos. Aos 78, depois de toda sua experiência intelectual, afetiva e social, escreve quase a mesma coisa: “Para mim, a coisa mais importante foi minha mente”. Uma reflexão que nos revela que ela conseguiu se manter fiel a si mesma.
Gênese
Simone havia sido criada para ser uma garota bem-comportada e convencional, e o livro vai nos mostrando por dentro a ebulição de sua transformação. Sua mãe, Françoise, possuía uma fé inabalável em Deus. Os mandamentos que Simone e sua irmã Hélène incorporaram desde cedo se resumiam a: “Não farás o que é impróprio” e “Não lerás o que é inadequado”. No meio burguês em que foi criada, as mulheres deveriam suportar o peso da insatisfação gerada pela moral e o decoro provinciano. Não deveriam protestar contra o que fora sancionado por convenções sociais.
Simone descreveu sua infância suspensa entre o ceticismo e a fé, em uma “espécie de disputa interminável”. Segundo ela, essa havia sido a razão de ter se tornado uma intelectual.
É curioso descobrir que a jovem que mais tarde escreveria um livro referencial para o feminismo, O segundo sexo (1949), considerava o sexo como algo nojento. Ela anotou em suas memórias: “O amor, em minha opinião, não tinha nada a ver com o corpo”.
A francesa foi fisgada na adolescência pela filosofia em um curso ministrado por um padre. Estudar filosofia era algo totalmente inadequado para uma moça bem-comportada e era considerado de status inferior ao casamento. Felizmente Simone bateu o pé, fazendo uma greve de silêncio, e conseguiu que seus pais permitissem — com ressalvas.
Em 1925, uma mulher não era aceita na École Normale Supérieure, onde a elite filosófica de Paris se formava. Ela teria que fazer um outro caminho, via licence na Sorbonne, seguido por um diploma de magistério e depois a ansiada agrégation.
Em março de 1927, ela obteve seu certificado em História da Filosofia. Em junho, de Filosofia Geral. Ficou em segundo lugar, atrás de outra Simone, a Weil, e na frente de nada mais, nada menos do que Maurice Merleau-Ponty, que se tornaria uma referência da filosofia contemporânea.
Pioneira
Quando jovem, Simone achava as questões sociais bem distantes, em parte porque se sentia impotente para mudar o mundo. Por isso, mergulhara cada vez mais no seu mundo interior, na reflexão e nas leituras. Em sua fase madura, iria admitir que ela e Sartre eram “orgulhosos espiritualmente” e “politicamente cegos”.
Em 1929, Simone começou a lecionar Filosofia em uma escola para meninos. Foi a primeira mulher na França a conseguir esse feito. Seus colegas professores do liceu foram Merleau-Ponty e o jovem Claude Lévi-Strauss. Que tal?
Na primavera desse ano, Simone se tornou amiga de René Maheu, que fazia parte do único grupo de normaliens que ela ainda não tivera acesso. O grupo era formado pelo futuro romancista Paul Nizan e por Jean-Paul Sartre.
Diz a lenda que Maheu foi o primeiro amante de Simone, mas ela negou isso mais tarde para sua biógrafa e afirmou que nunca havia beijado um homem na boca antes de Sartre.
Os exames para a competitiva agrégation chegaram. Um exame de pós-graduação disputado nacionalmente. A prova escrita durou sete horas e ela escreveu sobre “liberdade e contingência”. No dia seguinte, mais quatro horas de dissertação sobre “intuição e raciocínio no método dedutivo”. No terceiro dia de prova, mais quatro horas sobre “moralidade nos estoicos e em Kant”.
Alma gêmea intelectual
Sartre também estava prestando os exames de agrégation e a essa altura já havia decidido conquistar Simone. No primeiro encontro marcado para sair com ele, Simone mandou a irmã Hélène em seu lugar. Eles foram ao cinema e sua irmã lhe disse mais tarde que ele fora gentil, mas que “tudo o que [Maheu] disse sobre Sartre era pura invenção”. Ele era uma decepção.
Entre os estudantes da Sorbonne, Sartre tinha uma reputação horrível. Era descrito como fazendo parte da turma dos homens “sem coração e sem alma”. Meses depois, Simone já estava cativada por ele e anotou em seu diário:
Alguém generoso com todos, mas realmente generoso, que passava horas intermináveis elaborando pontos difíceis da filosofia para ajudar a torná-los claros para os outros, sem nunca receber nada em troca. (…) ele era uma pessoa totalmente diferente daquela que os estudantes da Sorbonne viam.
Em pouco tempo eles já estavam se encontrando todas as manhãs nos cafés e embatucando um diálogo que duraria até o fim da vida de Sartre. Raymond Aron, um dos amigos e interlocutores de Sartre na época, lembra com pesar: “Nosso relacionamento mudou no dia em que Sartre conheceu Simone de Beauvoir”.
Simone foi a pessoa mais jovem de todos os tempos a passar no exame da agrégation, com 21 anos. Sartre tinha 25, mas já era sua segunda tentativa. No cômputo geral, o júri (composto só por homens que haviam estudado na École Normale como Sartre) deliberou que ele deveria receber o primeiro lugar. Ela ficou em segundo. A macholândia mostrava suas garras.
Kate coteja o que Simone anotara em seus diários com o que ela escreveu depois em suas biografias. Por exemplo, em um trecho Kate anota:
Em A força da idade, Beauvoir escreveu que quando se encontrou com Sartre de novo, em outubro, ela havia “se livrado” de todos os outros apegos e se jogado no relacionamento com Sartre de todo o coração. No entanto, mais uma vez, os diários contam uma história diferente (…) Por que ela encobriu os outros homens de sua vida quando escreveu suas memórias, atribuindo a Sartre um lugar mais dominante na narrativa do que ele ocupava na vida?
O fato é que Sartre e Simone reconheceram um no outro uma espécie de alma gêmea intelectual. Inicialmente fizeram um pacto por dois anos, uma proposta de relacionamento aberto, onde eles não abandonariam seus eventuais relacionamentos contingentes, mas contariam tudo um ao outro. Pacto que foi renovado e, como sabemos, durou até a morte de Sartre (cada um em sua casa). Ele lhe disse: “O que nós temos é um amor essencial; mas é uma boa ideia para nós experimentar também casos amorosos contingentes”.
Amores contingentes
Simone sentia que tinha uma vocação para ser escritora, mas parece que lhe faltava um pouco de autoconfiança. A relação com Sartre lhe trouxe, aos poucos, esse ingrediente. Ela dizia que a literatura tinha uma capacidade de nos dar “experiências imaginárias que são tão completas e perturbadoras quanto as que vivemos”. O casal discordava sobre a utilidade da literatura. Sartre achava que era mentira e disfarce.
Entre os anos de 1926 e 1934, Simone tentou escrever romances por sete vezes. Sua primeira narrativa longa, A convidada, só viria a ser publicada em 1943 pela Gallimard, inspirada no ménage à trois que vivera com Olga Kosakiewicz e Sartre. Olga era uma jovem brilhante de 19 anos, filha de nobres russos, e era conhecida no lycée como “a russinha”.
Julia Kristeva, famosa feminista francesa, chamou Sartre e Simone de “terroristas libertários” pela maneira que eles tratavam seus “amores contingentes”.
Em sua autobiografia, Simone reconhece as dificuldades que teve para manter relacionamentos harmoniosos, e um ou outro estrago emocional que haviam ocasionado em seus “amores contingentes”.
Trocas constantes
O livro de Kate destrói o senso comum, repetido em várias publicações do mundo, que desvalorizava a importância de Simone e de seu pensamento filosófico. Sartre e Simone conversavam e compartilhavam todos os seus pensamentos e escritos. Simone tinha um rigor conceitual que o jovem Sartre ainda não apresentava. Ela o ajudou a refinar suas ideias, e muitas delas o tornaram famoso. Parece que o senso comum nunca conseguiu apreender o papel que Simone teve nas ideias e escolhas de Sartre.
O próprio Sartre reconheceu a importância dos comentários e ajustes que Simone fazia o tempo todo em suas reflexões e textos. Seu romance filosófico, A náusea (cujo título original era Melancholia), por exemplo, só se tornou publicável depois de extensas anotações, revisões e sugestões de Simone.
O conceito de má-fé (mauvaise foi), que se tornaria um dos mais famosos da filosofia do século 20, foi desenvolvido por ambos e elaborado em escritos subsequentes de Sartre. Suas trocas eram constantes e não é fácil determinar com certeza até que ponto um devia ao outro. A atitude filosófica de Simone a levava a pensar que “o que importava em uma filosofia não era quem tinha a ideia; o que importava era se era verdade ou não”.
Uma das distinções filosóficas que Sartre introduz em O ser e o nada é uma divisão entre “ser-por-si-mesmo” e “ser-pelos-outros”, que (camuflada pelo jargão) se parece com a distinção que Beauvoir fez em seus diários de estudante em 1927 entre a visão de dentro e a visão de fora, o “para mim” e “para os outros”.
Outra questão essencial que perpassa pelos diálogos, pensamentos e questionamentos de ambos por toda a vida foi o conceito de liberdade. Simone chegou a anotar que a missão de um escritor é “descrever de forma dramática a relação do indivíduo com o mundo onde ele coloca sua liberdade”.
Seu segundo romance, O sangue dos outros (1945), antecipava temas que ela viria a trabalhar melhor em O segundo sexo, “particularmente sobre como as mulheres se comportam e como o amor é vivido de maneira diferente no contexto de homens e mulheres específicos”. O romance acabou sendo acusado de sacrificar a literatura em prol da filosofia. Maurice Blanchot, por exemplo, condenou-o como “um romance de tese”.
Destruição e exploração
Em 1946, Simone publicou seu terceiro romance, Todos os homens são mortais. Lemos o livro em sua segunda edição, com a tradução de Sérgio Milliet. Ele desprende-se um pouco das tramas interiores elaboradas nos romances e ensaios de Simone, e nos brinda com um personagem fascinante. O narrador, conde Fosca, depois de um extenso prólogo que nos introduz a atriz francesa Régine, conta-nos a história de sua longa jornada de vida. Só que o conde Fosca, por quem a ambiciosa e narcisista Régine está enamorada em meados do século 20, tem algo bem particular e distintivo: é imortal.
Ele nascera em 1279 na Itália, ainda mortal. Depois de tomar um elixir mágico, tornou-se imortal e foi testemunha ocular de quase seis séculos de peripécias históricas. Fosca acreditou em algum momento que, com sua imortalidade, poderia patrocinar mudanças efetivas na História. Tentaria acabar com a fome e a guerra tornando-se um ditador mundial e governando em prol da paz e da prosperidade.
Fosca desejava reformar a sociedade e ajudar os mais pobres, mas a coisa não era assim tão fácil. Não bastava ser imortal. Em cada século encontraria resistência. Do século 13 ao século 16, só se deparou com guerras. Perdeu a esperança com o Velho Mundo e, então, como fizeram tantos outros mortais, rumou para o Novo Mundo cheio de bons sentimentos. E o que encontrou por lá, ou melhor, por aqui? Destruição e exploração: dos incas e dos indígenas sul-americanos.
Simone de Beauvoir era pouco otimista em relação à História e usa seu personagem-narrador para expressar seu desalento: “Economia caótica, rebeliões inúteis, massacres fúteis, populações desacompanhadas de qualquer melhoria no padrão de vida; tudo nesse período me parecia confusão e enrolação; e eu o escolhi exatamente por esse motivo”.
Antes de ser queimado na Inquisição, um monge agostiniano diz a Fosca: “Só há um bem. Agir de acordo com a própria consciência”. Seiscentos anos depois, Fosca já constatou que ser imortal é como estar “enjaulado na eternidade” e aprendeu também que “a mais longa vida é curta!”.
Importância do outro
Simone esperava que seu romance expressasse uma “experiência imaginária” e não fosse lido como uma tese filosófica, como os anteriores. Seu personagem vê toda a miséria do mundo sendo justificada em nome do Bem e isso o faz duvidar da própria existência da bondade.
Kate Kirkpatrick faz o seguinte comentário sobre o romance:
O narrador imortal e a estrutura histórica do romance também expressam um tema que Beauvoir descompactaria em O segundo sexo: “Que os homens sempre mantiveram em suas mãos todos os poderes concretos”. As mulheres de Todos os homens são mortais são, como disse Elizabeth Fallaize, “quase exclusivamente uma demonstração deprimente da marginalidade à qual, em grande parte, a história confinou as mulheres”. Vemos dependência, casamento forçado, mulheres deixadas para morrer como partes dispensáveis da sociedade. Mas, à medida que a história se desenrola, nas amantes posteriores de Fosca, nos séculos posteriores, também vemos mulheres que querem financiar ciência e fundar universidades. Com cada uma delas Fosca se pergunta: O que significa amar?
Fosca pede que Régine o salve “da noite e da indiferença”, pois já aprendera a duras penas que somente por meio do Outro poderia se sentir vivo no lamaçal de sua existência eterna.
Como percebera Simone de Beauvoir, “entre o nascimento e a morte há a vida” e, se a existência precede a essência (como acreditavam os existencialistas), nós, por outro lado, “não existimos sem fazer” com e para o Outro.
Simone foi um ser humano complexo e, talvez, a mulher mais fascinante do século 20. Se há algo a aprender com ela, ressalta Kirkpatrick, é que “ninguém se torna o que é sozinho”.
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A mulher desiludida
Simone de Beauvoir
Trad.: Helena Silveira e Maryan A. Bon Barbosa
Nova Fronteira
176 págs.