A terceira rua da encruzilhada

Em "Crossroads", Furio Lonza cria ponto de interseção entre reflexão histórica e variedade de gêneros literários
Furio Lonza, autor de “Crossroads”
01/04/2012

Crossroads, de Furio Lonza, explora, do menor detalhe (como a abundância do sinal gráfico “&”) à macroestrutura, as idéias de cruzamento e de interseção. Intertextualmente, o título alude a uma canção do compositor norte-americano Robert Johnson, Cross roads blues, na qual o sujeito se ajoelha numa encruzilhada e entrega a alma ao diabo, evocado ironicamente como “Senhor”:

I went down to the crossroads
Fell down on my knees
Asked the Lord above for mercy
“Save me if you please”

Ao encenar o pacto, o blues aproxima a esfera humana de outras instâncias (como de resto as experiências do protagonista com LSD), reforçando o caráter associativo da obra, igualmente presente no entrelaçamento lingüístico entre português e inglês. O narrador-personagem de Lonza também teria simbolicamente compactuado com o diabo, almejando obter a plenitude imediata e terrena, “aqui & agora”. Em compensação, o pactário ficaria privado do amor: “Teria trocado a emoção de amar e ser amado pela aventura de saber qual a minha verdadeira vocação nesta vida? Em que ou onde estaria minha felicidade?”. Com efeito, o romance enumera vários desamores do protagonista, tanto no âmbito político-ideológico, quanto no afetivo-existencial.

No primeiro caso, acompanhamos, década a década, as transformações da sociedade brasileira a partir de meados dos anos 1950. Hábitos, músicas, liberdades, decoração, ideologias, modas — nada escapa ao narrador atento e questionador, sempre interessado em desmontar clichês e em escavar a estrutura profunda daquilo que mais ostensivamente caracteriza determinada época. Assim, no início da década de 1970, o costume de espalhar almofadões pela casa é avaliado como “decorrência natural do desapego (e até do repúdio, em alguns casos mais radicais) aos móveis tradicionais”. Do mesmo modo, os partidos políticos, inclusive aqueles que seduziam intelectuais, são submetidos à constante e irônica avaliação crítica, o que deflagra forte ceticismo num protagonista que também se queria revolucionário: “Intelectuais de esquerda contavam a história de pedros pedreiros e marias bonitas, embora só tivessem visto a miséria de binóculo”. No domínio individual, o personagem atravessa duas grandes frustrações amorosas: uma, com Ana; outra, com Helena. A primeira, um amor de juventude, é moça despojada, bela e insaciável, que desperta desejo nos homens e ciúme no namorado. A outra, mulher inteligente e estabelecida socialmente, aparece mais tarde na vida do protagonista, que se casa com ela. Enquanto com Ana ele constata o fracasso da virilidade, Helena lhe revela a derrota literária. O protagonista assume posturas distintas e por vezes antagônicas, canalizando para cada mulher um traço de sua personalidade, como se assim pudesse, esquizofrenicamente, superar contradições e angústias:

Ela tinha razão. A insegurança era minha. Esses dois diálogos têm uma simetria absurda. Em cada um deles, no entanto, eu tomava posições diametralmente opostas. Atacava Ana por preservar uma pureza infantil de espontaneidade e questionava Helena por ela não me deixar preservar essa mesma pureza de criança brincalhona. Acusava Helena de ter blefado. Acusava Ana de não ter blefado. Uma contradição flagrante.

Rede de mesmices
No conjunto das simetrias de Crossroads, sempre remissivas ao signo do entrecruzamento, importa destacar a oposição entre o protagonista e seu amigo Beto, que conseguiu superar um desencanto amoroso (muito semelhante ao do colega) e construir com Mitiko saudável vida a dois, com casa, casamento e filho. Antes de Mitiko, Beto vivera com “dose esposinha” que se envolvia com outros homens. A libertinagem chegava ao ponto de ele conduzi-la à casa do amante e aguardar, no carro, o final do rendez-vous. Em vingança, o marido escreveu um livro: “Contou tudo. Deu nome aos bois e principalmente à vaca”. O narrador vive situação análoga com Helena, embora em papéis trocados: ela é a traída e a escritora justiceira. Neste caso, o sucesso literário da mulher amplia as insatisfações do homem — marido e escritor malogrados.

Com efeito, a crise do protagonista não se resolve, pois, como um leitmotiv, ambas as mulheres retornarão à sua vida, configurando verdadeira teia amorosa que permanentemente o recorda de sua imaturidade: após terminar com Ana, ele se casa com Helena, a quem passa a trair novamente com Ana (daí a separação de Helena). E, conforme veremos, as duas ressurgem no desfecho do livro. Esse eterno retorno o leva à crença na imutabilidade tediosa da história, o que mais uma vez desdobra a metáfora das crossroads, constituindo o tempo uma rede de mesmices.

Aos poucos, o envolvimento do protagonista com mulheres vai minguando até quase desaparecer: se Ana ele namorou e com Helena casou, com Bel, apresentada por Beto e Mitiko, trocou apenas um beijo no carro. Freqüentou ainda uma prostituta, limitando-se, por fim, à contemplação de Mônica, filha da dona da pensão onde passaria a viver. Os diferentes espaços onde se estabelecem esses contatos atestam seu crescente alheamento em relação ao amor: com as duas primeiras dividiu casa, criando alguma intimidade conjugal; com as demais, o diálogo ocorreu em cenários impessoais ou hostis: na rua, num hotel barato e numa pensão decadente, lugares explicitamente efêmeros e desprovidos de privacidade.

No círculo familiar desse homem infantilizado, a mãe ocupa lugar proeminente, assemelhando-se a um oráculo ao qual ele recorre para saber como agir, sobretudo perante as mulheres. Com o tempo, a figura materna torna-se decrépita (sintomaticamente, contrai doença que lhe rouba pedaços do corpo) e morre, exigindo da grande criança o enfrentamento da solidão como via incontornável de apuro existencial. À mãe o filho entregava-se inteiramente, confiando-lhe dúvidas e fraquezas, como se assim lhe transmitisse os percalços que não lograva driblar. Por outro lado, o pai constituía o antípoda do acolhimento materno: racista, patriarcal e machista, a sombra paterna concentra tudo aquilo que o protagonista não deseja ser. Italiano como seus pais, nascidos em Trieste, o narrador escava a história da cidade e dos antepassados para nela detectar algumas de suas idiossincrasias, como o ciúme (“marca registrada do italiano, provavelmente herdada do antigo Império Romano, cujos exércitos estavam sempre em trânsito, invadindo & anexando outras terras”), a propensão ao adultério (“Herdara de meus antepassados um currículo adúltero de causar inveja ao libertino mais devasso”) e a dependência maternal:

A Itália é um país peculiar. Com certeza, é lá que está instalado o maior e mais abrangente matriarcado da história da humanidade, onde todo italiano quer mesmo comer a mãe, quer de fato matar o pai etc. Aliás, não é à toa que o símbolo de Roma e, por extensão, de toda nação, é uma loba com as tetonas sendo devidamente chupadas por dois fanciulli taradaços, sedentos de leite & sexo.

Trazido pequeno para o Brasil (como Furio Lonza), o protagonista nunca perde a condição de estrangeiro, vivendo cá sob o constante assédio de lá, ambigüidade que tanto sugere sua inadaptação ao mundo quanto amplia o campo semântico da mescla e do cruzamento. É a esses signos, aliás, que se vincula o endosso da miscigenação por parte do narrador: ao contrário do pai, que coça o nariz diante do “fedor” de um negro, ele, ainda criança, se encanta e se interessa, por exemplo, pela música black, não por acaso invocada no título do livro.

Labirinto textual
Estruturalmente, Crossroads também projeta encruzilhadas, forjando um enredo derivante em que a reflexão histórica e política, de cunho ensaístico, a memória e algumas notas de crítica literária e de metalinguagem se entrelaçam a um “balanço sentimental” do protagonista aos 50 anos. Com isso, temos obra ao mesmo tempo digressiva e narrativa, panorâmica e particular, como se o escritor perambulasse entre esquinas, pulando aleatoriamente de um quarteirão a outro: “Fazia uma terceira coisa, nem ficção nem autobiografia. Uma mistura danada de lembranças, emoções & adversidades. Não reescrevia minha história pura e simplesmente, pegava aquela matéria-prima gosmenta, dava uma leve mexida e colocava fermento”. À multiplicidade de gêneros corresponde a variação de registros, do coloquial-irônico, com palavrões e gírias, ao discurso mais elaborado e meditativo. Por isso, Ana certa vez dissera ao protagonista: “teu cérebro é um espiral”.

A sucessão de entroncamentos e de repetições traça labirinto que asfixia o personagem em suas limitações. Todavia, o desfecho de Crossroads toma rumo inesperado, e o desamor e as decepções profissionais cedem à renovação do afeto e à possibilidade de o protagonista tornar-se escritor. A primeira evidência dessa alteração chega com a notícia de que Ana, a quem o narrador não encontrava havia anos, tentara o suicídio e estava internada. No hospital, ela revela ao ex-namorado que com ele gozara seus ápices de prazer. Resgatada a autoconfiança (física e moral), antes corroída pelo ciúme paranóico, o homem recobra também a capacidade de amar, não mulheres específicas, mas o ser humano em geral. Visitando o túmulo materno, ele se encontra com Helena no cemitério, depois de muitos anos. A ex-esposa tem consigo Mauro, rapaz com síndrome de Down que descobrimos tratar-se do filho de ambos. A revelação ocorre num espaço mortuário, sugerindo que a morte da mãe libertou e depurou o potencial afetivo do protagonista, que, à revelia do agourento pacto diabólico, passa de filho subalterno a pai amoroso. É bela a cena final em que ele e Mauro brincam na praia, erguendo castelos de areia, em franca partilha de fragilidades:

Quando está quase tudo pronto, uma onda mais forte consegue derrubar tudo. Ele [Mauro] sorri de novo. E, de novo, começa a reconstruir sua cidadela. A tarde vai caindo, as pessoas arrumam suas coisas e partem. Mauro continua firme. A maré sobe. Ficamos os dois na torre de vigia. As ondas ficam mais fortes. A violência com que derrubam tudo é cada vez mais inclemente. Ele não se dá por vencido. Sempre sorrindo, retoma o trabalho pela quinta vez. Eu o ajudo.

Crossroads
Furio Lonza
Editora 34
288 págs.
Furio Lonza
Nasceu em Trieste, Itália, em 1953. Aos cinco anos de idade, mudou-se com a família para o Brasil, morando primeiramente em São Paulo e, desde meados dos anos 1990, no Rio de Janeiro. Ainda na graduação de jornalismo teve um conto publicado pela revista Escrita e foi um dos vencedores do pioneiro concurso de contos eróticos da revista Status. Escreveu mais de uma dezena de livros, dentre os quais se destacam Contos de esquina (1977), O que Molly Bloom esqueceu de contar (2987), As mil taturanas douradas (1994), O que é isso, maconheiro? (1998), Máquina de fazer doidos (2003) e Sturm und Drang (2010). É também autor de peças de teatro, como Patagônia, Jantando com Isabel, Família, dentre outras.
Gilberto Araújo

Professor adjunto de literatura brasileira na UFRJ. Autor de Literatura brasileira: pontos de fuga (2014), dentre outros.

Rascunho