Haveria, pelo menos, três caminhos a partir dos quais poderíamos ler, ou melhor, acender este Lampadário, décima nona publicação de poesia de Denise Emmer. O primeiro diria respeito àquele em que os passos do leitor, embalados pelo ritmo das multidões constituintes do espaço eminentemente urbano e frenético da contemporaneidade, ansiariam pelo encontro com uma poesia desentranhada do asfalto, das buzinas, dos carros e pedestres abastecidos pelo trânsito das questões de seu tempo. Por essa congestionada avenida de expectativas, fatalmente se depararia com o sinal vermelho ou amarelo nos olhos-bocas de algum semáforo imaginário. Afinal, para boa parte da crítica e do corpo de poetas da atualidade, um dicionário poético impregnado de “estrelas tristes”, “missões etéreas” e “lençóis no espaço”, “além da noite”, entre outros signos da tradição lírica, diríamos, fundamentalmente simbolista, pareceria uma evocação anacrônica, repleta de alusões caducas ao transcendente, quando, hoje, a um poeta caberia sofrer e versar o tirocínio da imanência, de uma experiência mais apegada ao corpo do que à alma ou ao espírito (ou desapegado a essa antinomia); mais encarnada na vida, aqui, agora, do que a desencarnar-se no momento derradeiro da morte e no que seria ela: “Haverá além do nada/ Um povoado abstrato?”. Nesta vida, portanto, livre de uma cosmofilia e mais sujeita ao caótico, ao fragmentário, ao dissonante e que, por força disso, espera que o poema também se liberte de suas amarras harmônicas, rítmicas, rímicas, em nome do que, inclassificável, não mais seria poema, nem dicotomia com prosa: poema em prosa? Prosa poética?
Neste sentido, existe, hoje, quem olhe com má vontade e sensação de déjà vu para aqueles que teimam em poetar a partir dos compassos clássicos e das imagens — supostamente! — ultrapassadas (sim?) do mar, do horizonte, da lua, do sol, quando há tantos esgotos, vasos sanitários, azulejos de banheiro, cozinha, talheres e pratos — sem comida — e comidas (na mesa, na geladeira, na feira, no supermercado, no lixo, no estômago, nos intestinos…) à espera da atenção do poeta. Neste livro que medita a morte, um julgamento de Denise Emmer segundo certo (também) déjà vu crítico, feito de supostos critérios-clichês de qualidade e adequação ao sempre natimorto “atual”, careceria de cuidado. Com dez outros poemários editados (um deles de poesia reunida), a autora já se fez, digamos, antena social, como em Ponto zero, de 1987, por exemplo. Por outro lado, quando lemos um livro subjugando-o ao fato de ser escrito por uma mulher, a ânsia — a cada vez que nos vemos diante de uma autora, e não de um autor — por uma lírica de expressividade e urgente representação daquele universo feminino calado pela história falocêntrica ocidental, há que ser revista no caso especial deste Lampadário, tão preocupado com o que não pertence a gênero algum, nem à época nenhuma, a nenhuma sociedade especificamente, mas com o que há de mais essencial e que constitui esta “novidade” jamais ultrapassável: a finitude, perpassante de todo os tempos, sociedades e seres humanos, construindo-os e desconstruindo-os persistentemente.
O segundo caminho seguiria na contramão: caricaturalmente considerado mais conservador, brindaria a expectativa e o cumprimento de uma poesia que não se deixou contaminar pelos modismos do século 20 e início do século 21. Palmas, então, para esta escrita ainda zelosa das estruturas poemáticas, de uma rímica mais toante do que soante em seus versos de vigor musical e imagético, imunes do anedótico, do narrativo e, sobretudo, desobediente à ditadura da desobediência pela desobediência, implantada pelos que converteram a antinorma como norma e a antiforma como forma.
A terceira trilha de leitura compreenderia, na verdade, o abandono de qualquer caminho prévio, de qualquer modelo crítico prescritivo, de qualquer preconceito através do qual se teorizaria, com segurança (?), a favor ou contra, um trabalho. A legítima literatura nos obriga ao contrário: à renúncia do seguro para que soframos os abalos do literário, da poesia que nos deverá surpreender (e que é, por excelência, este surpreender) cada expectativa e perspectiva, arrastando-nos para fora de nossos lugares-comuns, de nossos mapas, bússolas e manuais, de maneira que o único caminho de leitura se trace jamais antes dela, mas em seu durante, posto que a arte é este (e aquele, o próximo, o vindouro) único (enquanto múltiplo) caminho, caminhada encaminhando-se.
Assim podemos ser pegos pelas “vias sem nome” de Lampadário: pensando-nos soberbos e responsáveis por essa iluminação, é ela que antes, durante, depois, soberbamente se nos acende na instância de um encontro que, para além das épocas e tendências, só tende a ser ele mesmo: este irrepetível encontro, a época que imediata e particularmente nasce no segundo em que nos colocamos a sós com a palavra e o pensamento. Pelo “som do escuro”, pelo “sono da pedra fria”, pela “arquitetura de vultos”, faz-se “dicionário de língua bela” este livro não porque poetize (comemore) a morte (“Se bem apreendo o mundo,/ A morte não é poesia”), se é vida o que se espera quando depois que o misterioso morrer (não?) acontece. Se é a vida, eternamente, sem “ausências extraviadas”, o que se espera após a morte do humano e do inumano, do pai, do amigo ou de um simples gato, “a anunciar o éden dos felinos”. Apenas uma morte dentro da vida, em nome da vida, pode convocar uma vida dentro da morte, negando-a e garantindo que Denise Emmer bem apre(e)nda o mundo.