A tentação do corpo

A última tentação, de Nikos Kazantzákis, é um romance sobre o homem, mortal e consciente do seu fim
Nikos Kazantzákis, autor de “A última tentação”
29/09/2015

O sol não é os raios dele — é o fogo da bola.
Guimarães Rosa

O velho rabino pediu a Deus que não morresse antes de conhecer o Messias e agora, que talvez esteja diante da verdade, ele sente medo. Medo da maior das provas, sua morte. Encontra-se dividido entre a bênção de testemunhar o milagre que salvaria seu povo e o natural e humaníssimo medo de morrer. Porque A última tentação não é um livro sobre o espírito, mas um livro sobre o homem, mortal e consciente do seu fim. É essa a parte da história cristã que Nikos Kazantzákis escolheu contar. Se Jesus foi mesmo um homem, como ele lidou com seus desejos, com seus sentimentos não nobres e principalmente com o medo, como Jesus lidou com o impulso que todos sentimos em preservar este corpo, que é a única coisa de que temos certeza?

O corpo, o perigo do corpo, nunca deixou de preocupar os poderosos da religião. Por muitos séculos, tentou-se, com violência, separar o corpo do espírito, o céu e a terra. Repare na iconografia medieval. O céu é dourado, e não azul, a composição das imagens seguem esquemas preestabelecidos e hierarquizados, não tentam refletir o que se vê, o que um olho humano vê, as figuras são padronizadas de tal forma que não é raro que sejam etiquetadas com seus respectivos nomes. Todo o mundo sensível era ruim, malvisto. Como pensar na humanidade de Deus se tudo o que é demasiadamente humano é sujeira, é pecado? E talvez por isso que um jeito novo de contar um velho mito, como o da passagem de Cristo sobre a Terra, seja frisar aquilo que de mais interessante há nessa história: que Deus precisou se fazer homem para entender as angústias do homem.

Foi só a partir de Giotto (1266-1337) que a representação mais próxima da visão natural passou a ser valorizada. E, claro, isso não aconteceu de uma hora para outra. O surgimento da individualidade, muito estimulada pelas novas ordens políticas e econômicas, principalmente na Itália, mexeu com toda essa hierarquização da visão de mundo e a verossimilhança voltou a ser, como na Antiguidade, valorizada. E se então representar um ser humano era representar um ser humano da maneira como os olhos físicos viam, bastaria treinar esses olhos e voltá-los ao mundo. E Giotto esteve sempre tão atento ao seu redor que o notável e a novidade de suas pinturas eram o quanto os santos que representava nas capelas se pareciam com os camponeses com quem convivia. Aquelas figuras milagrosas não eram superiores e distantes, mas muito parecidas aos homens e às mulheres dali de fora daquele espaço pictórico; podia, aquele vizinho um tanto lunático, ser um santo, um profeta, e por isso os milagres, o paraíso e quem sabe até mesmo Deus não estavam assim tão longe, de repente estavam acessíveis a qualquer um.

E sob esse aspecto o Cristo composto por Kazantzákis se assemelha muito aos cristos pintados por Giotto. A última tentação chegou a entrar no Index Librorum Prohibitorum, a lista dos livros malditos elencada pelo Papa, acusado de ir contra os dogmas católicos e de heresia. Porque um Jesus descrente, covarde e fraco de fato parece muito longe daquele que separaria a história do ocidente em duas partes. No entanto, tudo isso está ali, nos evangelhos. Não se trata de um livro teológico e portanto pouco importa o quanto ele é ou deixa de ser fiel aos dogmas e às palavras da Bíblia, mas este romance toca talvez no maior mistério do mito cristão: Jesus, não suportando tudo o que se passava em seu corpo naquele martírio, também duvidou, também blasfemou, se sentiu abandonado por Deus. Também foi fraco, também sentiu medo da morte. E se ele estivesse escolhido não ouvir o chamado de Deus?

As cruzes
Jesus, o filho de Maria, segue a profissão de seu pai. É carpinteiro e nos últimos tempos, para sustentar a casa (já que seu pai, José, está entrevado na cama porque foi atingido por um raio, que era Deus) tem se dedicado a fazer as cruzes em que a todo tempo eram condenados os profetas que não paravam de surgir prometendo salvar os hebreus das mãos dos romanos. É numa época que se alterna entre uma fé histérica e um ceticismo derrotado que nasceu o Messias. Cada nova esperança de libertação morre humilhada numa das cruzes em que trabalhou o pequeno Jesus. É um garoto atormentado, parece possuído, mas nada é capaz de exorcizá-lo: “não é um demônio que atormenta seu filho, não é um demônio, é Deus”. E nos primeiros capítulos do romance testemunhamos a luta entre os desejos de um garoto se transformando em homem e a ideia herética de se achar Deus.

Essa dualidade perpassa o romance inteiro de diversas maneiras. Está sempre amanhecendo ou anoitecendo. Muitos assuntos importantes são tratados sob uma iluminação dramática e bruxuleante dos lampiões. Tem a vida vivida nos sonhos, tem a não certeza dessas verdades. Há trevas, mas também há estrelas, há a violência dos raios, mas há o dia salvando dos pesadelos. Aliás, a luz é quase um personagem da história, e não é uma claridade inofensiva, apaziguadora. A luz aqui é fogo, é natureza. A mesma força que ilumina a silhueta de Jesus (e que por algumas vezes foi a prova de sua raridade) se transforma em chamas nos momentos de ira, que parte dos seus olhos, das pontas dos dedos, para dentro do corpo do outro. É uma luz material, é o fogo do sol, não os raios dele. Porque Deus é uma força natural, está em todas as coisas. É o vento da tempestade do deserto, são os terremotos, é o raio que paralisou José, é um incêndio, é também a chuva que faz o barro que faz o homem. É o silêncio.

Um dia Jesus resolve sair de casa, renunciar à sua família e se refugiar num mosteiro no meio do deserto. Ele se rende ao chamado de Deus e foge. Mas nem por isso diminuem suas angústias. É nesse caminho que ele reencontra, por exemplo, Madalena, seu amor desde a infância, que agora trabalha como prostituta no caminho das caravanas. E é naquele quarto impuro, depois de Madalena ter se deitado com uma fila interminável de homens, que testemunhamos o amor entre eles. Lá fora chove muito, ela diz que ele pode passar a noite ali e nada parece mais distante que aquela proximidade dos dois. Madalena dorme chorando, Jesus chega muito perto de tocá-la antes de sair daquele quarto, antes de fazer sua escolha. É uma cena exemplar do quanto conseguimos, apesar de tudo, nos colocar como leitores no lugar de Jesus Cristo e, na mesma medida, projetar nesse personagem a nossa humanidade.

Um dia ele se reconhece, nunca sem espanto, como Messias. Caminha por entre as cidades anunciando que o mundo não será mais o mesmo, mas que não será ele quem vai libertar, não da maneira como esperam, o povo de Israel. Faz milagres e tenta persistir na missão que lhe foi imposta, apesar de saber o quão terrível será o seu fim. E conhecemos o final. Porém, nada melhor para exemplificar que um romance não é só a história que se conta, mas a forma como essa história é contada, que contar uma história muito antiga. Em alguns momentos as passagens são idênticas a alguns trechos da Bíblia e o enredo, é claro, não guarda nenhuma surpresa, mas a maneira como Kazantzákis construiu a ambiguidade, a incerteza e essas forças contrárias que se chocam e ao mesmo tempo convivem, essas forças que nos acometem o tempo inteiro, é que fazem deste um romance tão grande.

A última tentação

Nikos Kazantzákis
Trad.: Marisa Ribeiro Donatiello
Grua
520 págs.
Nikos Kazantzákis
Nasceu em 1883 na ilha de Creta e morreu na Alemanha em outubro de 1957. Considerado o mais importante escritor grego do século 20, é autor dos romances Vida e proezas de Aléxis Zorbás (1946), O capitão Mihális (liberdade ou morte) (1953), O Cristo recrucificado (1954), Relatório ao Grego (1961). Também escreveu livros de viagem, ensaios filosóficos, poemas e peças de teatro. Traduziu para o grego várias obras importantes, como A divina comédia. Alguns de seus romances viraram filmes, entre eles A última tentação, adaptado e dirigido por Martin Scorsese.
Vanessa C. Rodrigues

É escritora, pesquisadora de literatura e editora.

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