A técnica da desordem

Em uma obra complexa na forma e no conteúdo, William Faulkner capturou o caos de nosso mundo interior
William Faulkner por Ramon Muniz
01/09/2013

Shall I project a world?
Thomas Pynchon, O leilão do lote 49

T. S. Eliot dizia que Henry James tinha “uma mente tão íntegra que nenhuma idéia podia destruí-la”. Será que o mesmo pode ser dito de William Faulkner? A resposta é afirmativa. Contudo, ele não chegou pronto nesse estágio; houve todo um percurso percorrido entre trancos e barrancos, além de obstáculos provocados por ele mesmo, principalmente pelas crises de alcoolismo (acentuadas toda vez que terminava um romance) e pelo temperamento abusado de “gênio romântico”, em especial quando a luz do Sul Profundo americano o fazia lembrar de um passado que sequer vivera porque existia apenas na sua imaginação. Ainda assim, foi esta mesma imaginação que o fez perdurar na literatura e ser invejado por qualquer escritor que queira chegar à altura de um corpus concebido em um tempo recorde de onze anos (de 1928 a 1939) e que, sem exagero, criou um mundo que só encontra paralelos na Comédia humana, de Balzac.

Faulkner deu amostras de que tinha o talento de um demiurgo quando escreveu um pequeno livro para a sua sobrinha Virginia chamado A árvore dos desejos (1927). É nesta mesma época que sua mente fervilhava de histórias e mais histórias sobre o futuro condado de Yoknapatawpha, do qual seria “único proprietário e dono”, e que teria como capital a cidadezinha de Jefferson, inspirada nas suas lembranças de Oxford, no Mississippi, quando era um jovem que ainda não tinha o “u” no sobrenome (inserido por engano quando foi publicado o primeiro romance, Paga de soldado, em 1926; ele não reclamou; disse apenas “por mim, tanto faz” e assim foi feita a sua vontade).

Mas a sua obsessão temática é descoberta apenas neste conto que, hoje, é ironicamente vendido como uma “narrativa infanto-juvenil”. A partir de uma pequena parábola feita para divertir crianças antes da hora de dormir — e que conta as aventuras de três jovens que, junto com um velho maltrapilho e um soldado que lutou na Guerra Civil, procuram a tal árvore do título, encontram-na, sofrem com o que cada um queria e encontram alguma paz ao se depararem com a visão de São Francisco de Assis —, Faulkner explicita a máxima que toda a sua literatura articulará em uma prosa cada vez mais complexa e em estruturas narrativas cada vez mais inusitadas: a de que temos de ter cuidado com os nossos “desígnios” [designs] (como diria uma das criações mais emblemáticas do sulista, o coronel Thomas Sutpen), pois eles têm regras próprias, fora do nosso controle, e, se não as respeitarmos, destruiremos a nós mesmos.

Todavia, ao encontrar o seu conteúdo, um romancista também deve fabricar uma técnica específica para expressá-lo aos leitores, sem se importar se entenderão de imediato. Eis aqui a grandeza estética e moral de William Faulkner: ele não encontrou apenas o que deveria dizer, mas também como dizê-lo, apoiado não só na descoberta de uma cosmogonia muito específica a ser concretizada na projeção de um mundo todo seu, como também em uma tradição que incorporava o arcaico e o moderno, numa síntese que até hoje perturba quem leva a literatura a sério — e ajuda quem se encontra perdido nas idéias que causam conseqüências mortais em nossas vidas e se esquecem que uma história, qualquer história, sempre fala de nossos demônios e dos do seu próprio criador. De te fabula narratur, já avisavam os antigos.

Dessa forma, a criação de um mundo não é apenas um passo lógico, mas necessário. Ainda assim, apresenta os seus problemas de realização, tanto nos aspectos existenciais como estéticos. O principal deles é este: até que ponto o mundo que o artista cria não substitui o nosso mundo, o real em que vivemos e que confrontamos com a sua fragilidade e que a literatura deve fazer de tudo para que seja uma reflexão digna dela e não apenas um meio de escapismo, de fuga de compreensão de algo terrível e sublime que nos cerca o tempo todo? A literatura deve ser um espelho, não um ato de magia que transfigurará o cosmos e resolverá as suas falhas inerentes em um único gesto. E o artista, em particular aquele que lida com as ambigüidades da palavra, deve se aproximar mais de um Narciso que se despede do lago do que aquele que fita nele o seu reflexo de forma obsessiva.

Faulkner resolveu esse dilema ao criar um todo orgânico que, ao mesmo tempo em que é elaborado na escrita de seus romances e contos, também narra a desintegração dos núcleos centrais que o formam, especialmente o da família. O condado de Yoknapathawpha é um “pequeno mundo” [cosmion] que, apesar de ser descrito como uma “sociedade fechada” (uso aqui o termo de Henri Bergson, não o de Karl Popper), abre-se para o leitor conforme este conhece e reconhece os seus habitantes, retratados e interligados pelas relações mais surpreendentes e bizarras, com as histórias formando um painel de uma comunidade que sempre está prestes a se renovar, apesar de a catástrofe da Guerra Civil pairar como uma sombra que amaldiçoa cada um de seus cidadãos, independentemente da classe social ou da cor da pele. Em termos estéticos, isso implica, para quem espera um mero deleite contemplativo ao ler esses relatos de gente humilde e excêntrica, fazer a diferença entre “obras-primas” (masterpieces) e “obras de mestre” (masterworks).

Para o grande Joseph Epstein, um escritor que deveria ser mais conhecido no Brasil, há uma sutil distinção entre essas duas categorias. A primeira é a busca do artista de criar algo que seja encerrado em si mesmo, perfeito, acabado, próximo de um sistema que tenha suas regras próprias (exemplo máximo: Ulysses, de Joyce); a segunda é algo que defina e desafie o significado de uma era, a culminação de uma forma artística, de uma literatura nacional, que se reflete de tal maneira na consciência do leitor que este jamais consegue apreender sua totalidade e, por isso, deve ser lido não apenas uma vez, mas duas, três, quatro vezes, e mesmo assim jamais capturará o que o seu criador quis fazer pois o mesmo acontece com a vida de cada um de nós. Marcel Proust e Robert Musil são os ápices das “obras de mestre” — e não seria exagero colocar William Faulkner nesse mesmo panteão.

É isto que o leitor com temperamento esteticista, protegido por uma ironia que o distancia dos dilemas mortais da nossa condição, deve ter em mente quando lê, por exemplo, Sartoris (1928), o primeiro romance de Faulkner passado inteiramente na cidade de Jefferson. É um livro que se arrasta com sua narrativa convulsiva, estilo barroco e elíptico, personagens que parecem viver em uma névoa de indecisão e apatia; e não foi por acaso que, na verdade, é uma versão resumida de Flags in the dust, recusada pelo editor porque “o autor cria um mundo que parece não ter fim”.

Com a ajuda do amigo Ben Wasson, Faulkner manteve o que achava essencial e cortou o que chamavam de “gordura desnecessária”. Como veremos, não era nada disso: a saga do que sobrou da família Sartoris — o jovem Bayard, que sobreviveu à Primeira Guerra Mundial, mas se culpa pela morte de seu irmão gêmeo; seu avô de mesmo nome, remoendo um passado que foi destruído por outra guerra (a da Secessão); e a tia Jenny, ciente de que há uma maldição que corre no sangue destas pessoas com quem vive na mesma casa — é o germe que brotaria uma seqüência de histórias paralelas: a do amor incestuoso de Horace Benbow por sua irmã Narcissa, a da paixão de Flem Snopes por esta última e a dos negros que foram alforriados por Lincoln, mas que continuam a serviço dos patrões porque a servidão é um estado de espírito, não algo que será revogado por meio de uma lei exterior.

Tudo ali tinha um motivo para existir no papel, mas o mercado editorial tem seus mistérios insondáveis que até hoje ninguém consegue explicar (nem os seus próprios membros). Contudo, a primeira recusa de Flags in the dust provocou a revolução copernicana na alma de Faulkner. Decidido a escrever apenas para si mesmo, trancou-se em um quarto, distanciou-se de tudo e de todos e redigiu em apenas três meses aquilo que seria a sua travessia para a posteridade — O som e a fúria (1929). Por incrível que pareça, houve um editor (anotem o seu nome: Harrison Smith) que aceitou publicar justamente este livro, hoje reconhecido por qualquer um que ouse enfrentá-lo como o único romance que pode lhe dar uma dor de cabeça permanente enquanto conhecemos a história de outra família desajustada, os Compsons.

A trama é espalhada em quatro blocos, cada um com uma perspectiva diferente — o primeiro é de um deficiente mental, Benjy; o segundo é o de Quentin, um suicida que se lembra da sua vida nos instantes infinitesimais antes da sua morte (este insight é cortesia de ninguém menos que Jean-Paul Sartre, no texto O tempo em Faulkner, fundamental para se entender os métodos do escritor sulista); o terceiro é o de Jason, um avarento que rouba dinheiro da mãe, da irmã e da sobrinha; e o quarto é narrado em terceira pessoa onisciente, mas que acompanha os pensamentos de uma empregada negra, Dilsey, que, afinal, é a única que mantém a unidade da família em um esforço digno do melhor dos estóicos. O pivô oculto de toda a desgraça é Caddy, a irmã que é o objeto de veneração de Benjy, objeto de desejo para Quentin (com quem tem um relacionamento incestuoso) e de ódio para Jason — além de ter sido a maneira como Faulkner resolveu homenagear Estelle Oldham, queridinha do seu passado que o abandonou para casar com outro homem, depois se divorciou, casando-se logo em seguida com o então escritor em progresso, em um relacionamento turbulento que durou até o final de suas vidas.

A desintegração dos Sartoris e dos Compson é, por uma estranha tensão paradoxal, o fundamento do mundo que William Faulkner planejava criar para defender a sua mente de qualquer idéia que substituísse a realidade. Mas isso não significa que ele tinha pendores anti-intelectuais; em Sartoris/Flags in the dust, há um desmonte da forma tradicional do romance, em que os eventos mais dramáticos são jogados nas sombras, o que implica que Faulkner acompanhava atentamente, por exemplo, os experimentos de narrativa feitos por Henry James e Joseph Conrad; e a estrutura radical de O som e a fúria não existiria não fosse a leitura atenta, provavelmente com lápis e esquadro, do que T. S. Eliot fez com os fragmentos que sustentam a nossa ruína no poema The waste land (não por acaso, Yoknapathawpha significa “terra dividida” no dialeto indigenista Chickasaw, de acordo com seu criador) e do que Joyce criou no Ulysses (“um livro que você tinha de abordar como um pregador batista iletrado abordava o Antigo Testamento: com fé”, disse ele em uma célebre entrevista à The Paris Review). Faulkner conhecia o terreno dos seus mestres e, mais, sabia que podia se igualar a eles sem hesitar.

Ele conseguiu isto com O som e a fúria — mas a um custo altíssimo. De acordo com o biógrafo Joseph Blotner, Faulkner sofreu todos os sintomas de alcoolismo, sem exceções: da embriaguez completa à ressaca paralisante, passando pelo delirium tremens e a internação forçada. Afirma-se que nunca bebeu enquanto escrevia, e isso parece ser verdade — a sua produção ficcional é espantosa em termos de quantidade e qualidade, tanto nos romances como nos contos (a maioria deles no patamar dos contemporâneos Hemingway e Fitzgerald, considerados os peritos no gênero e também na farra). Por outro lado, isso indica que ele, quando descrevia os tormentos de Bayard Sartoris e de Quentin Compson, talvez soubesse realmente o que narrava — e o fato de que, como uma Sherazade que jamais se controlava talvez porque a morte estava em cada gota de uísque, as histórias que redigia e que não paravam de sair também mostravam que a integridade da sua mente tinha de aperfeiçoar a sua técnica a qualquer custo, antes que fosse tarde demais. Isto foi finalmente alcançado com Enquanto agonizo (1930), ao estabelecer de vez uma forma de refletir o caos do seu mundo interior na vida íntima dos personagens e, paralelamente a isto, dar as pinceladas definitivas no projeto que concebeu para si mesmo.

Correlato objetivo
O truque de Faulkner, por assim dizer, é ter encontrado um contraponto emocional, um correlato objetivo, como diria T. S. Eliot, em algo exterior que concretiza para o leitor o que se passa na vida interior de seus personagens. Neste caso, o símbolo que representa isso, em uma primeira instância, é o cavalo. Não há nenhuma originalidade ao escolher esse animal: Platão descreve no Fedro que a natureza da alma humana é igual à de uma parelha puxada por dois cavalos, um branco e outro negro, e o primeiro quer ir para a terra enquanto o segundo deseja ir para a luz do sol, buscando relembrar a experiência da verdade, do bem e da virtude que o cocheiro que guia ambos quer recuperar. Faulkner escolhe justamente o cavalo negro para representar a viagem rumo à destruição que Bayard Sartoris provoca para si e aos outros quando sai em desabalada carreira e destrói as lojas comerciais do centro de Jefferson; descreve minuciosamente a carroça que leva Benjy e o criado Luster para encontrar Jason Compson e este, ao ver que Benjy não para de gritar porque o cavalo estancou sem aviso, resolve espancá-lo sem dó (o grito do idiota que resume a ausência de sentido da vida, de acordo com o monólogo de Macbeth que dá título a O som e a fúria); e faz Jewel Bundren, um dos membros da família que leva o caixão onde está a mãe morta rumo a Jefferson, se afeiçoar de tal maneira a um cavalo malhado comprado do inescrupuloso Flem Slopes que um parece ser a extensão do outro.

Enquanto agonizo leva ao extremo o procedimento do correlato objetivo não só em relação aos cavalos, como também a outros elementos da natureza: o fogo e a água. Na odisséia da família Bundren, narrada em monólogos interiores que deveriam fragmentar a empreitada mas a tornam mais densa, mais próxima do mito (e Faulkner adorava citar aos amigos que o título deste romance tinha ecos no episódio homérico em que Ulisses visita o Hades e conversa com o rei Agamenon), o mundo criado pela palavra tornava-se cada vez mais real conforme cada personagem mostrava o que havia no seu coração e o que a natureza exigia dos obstáculos a serem transpostos. Em um momento, eles devem atravessar um rio com uma força impressionante; em outro, devem salvar o cadáver já apodrecido da mãe em um incêndio de um estábulo onde estavam hospedados. Enquanto isso, o cavalo de Jewel também é o estopim de conflitos entre os irmãos e o pai, sujeitos que querem apenas levar a matriarca para um túmulo onde possam enterrá-la em paz e depois recomeçarem suas vidas.

A síntese entre natureza e homem, criação e realidade se transformará no complexo mito do mundo que não aceita mais aqueles que vivem em exílio interior — as “pedras de escândalo” (skândalon) que serão a trindade emblemática de Luz em agosto (1932): a inocente e grávida Lena Grove, o perturbado Joe Christmas e o recluso Reverendo Hightower. Após os experimentos com o tempo e os focos narrativos realizados nos livros anteriores, Faulkner agora elabora um romance aparentemente mais tradicional, talvez para que o leitor tenha tempo de incorporar o mito do seu mundo ao nosso mundo, para nós dissolvermos este mito às nossas ações cotidianas e percebermos também que vivemos como “escândalos” na visão de quem quer construir uma “sociedade fechada” onde a morte e a violência são suas forças centrais. Acentuando ainda mais esse propósito, Faulkner acrescenta um tópico explosivo para os EUA da sua época: o do problema da etnia negra. Joe Christmas é alguém que tem a morte brutal de um negro porque acredita ser um; ele não sabe se o é de fato, apesar de se parecer com um branco. Contudo, aqui a questão racial não é o mote para discursos políticos e slogans ideológicos; é o início de um dilema moral que Faulkner toma também como seu e que levará às últimas conseqüências, pois mostra sobretudo o caos existencial em que se encontra o real onde todos nós vivemos e também o do seu próprio mundo elaborado pelas armadilhas da literatura.

Christmas é o sacrificado que regenerará a sociedade que o matou; o sangue supostamente maldito que o condenou será o responsável, em termos simbólicos, pela fuga de Lena Grove (com a ajuda do apaixonado Byron Bunch) de um cosmos que ainda precisa de mitos; e a visão final do Reverendo Hightower, apesar da certeza de que vive em danação eterna, é a prova de que, mesmo nos momentos derradeiros, podemos nos integrar em uma comunidade que ainda está por vir. Mesmo assim, fica a pergunta: Como ela será anunciada?

É aqui que a técnica da desordem elaborada por Faulkner para reconstruir de vez o mundo que só existia na sua mente inviolável torna-se o meio ideal não apenas para exibir os poderes de uma imaginação literária qualquer, mas também o fundamento da força implacável de uma imaginação moral. Como bem observou Jorge Luis Borges, um dos primeiros divulgadores do universo faulkneriano na América Latina, ele é “um dos poucos romancistas a quem interessam por igual os procedimentos do romance e o destino e caráter das pessoas” (o itálico é nosso). Sua técnica está em transformar esses dois fatores como se fosse uma coisa só, um holon, em que se observa cada parte que compõe o todo sem que se perca o movimento orgânico de idéias, metáforas e, sobretudo, conflitos que dão vida a um mundo que se aproxima assustadoramente do nosso. Não se trata mais de uma literatura que deve ser usufruída pelo mero prazer estético, da arte pela arte, da fuga da realidade que poucos conseguem suportar. Trata-se, isto sim, de uma obra que revela não só o que se passa na alma de seu criador; revela a nossa própria luta em descobrir quais são os mitos que nos fazem ir adiante e quais são os que nos paralisam diante dos nossos “desígnios”.

Absalão, Absalão! (1936) é o ápice desta imaginação moral que reconhece em si mesma e na dos outros a construção de um mito que depende mais de uma escolha moral (e mortal) entre o certo e o errado ao mero contemplar de uma forma literária descolada da experiência concreta (como pensam muitos estudiosos de Faulkner). Romance gêmeo de O som e a fúria, o livro parece ser mais uma saga de algum coronel sulista temperamental, no caso a de Thomas Sutpen, mas lentamente percebe-se que o centro de tudo é a consciência atormentada de Quentin Compson. É também a criação mais mimética de William Faulkner: para ele, a Guerra Civil é o resultado trágico de uma série de rivalidades ocultas que se acumulam graças ao desconhecimento dos personagens, que atinge um paroxismo apocalíptico em que o fogo consome não só as casas sombrias de um passado que insiste de invadir o presente por meio de fantasmas da memória, como também a sucessão de famílias que desabam diante da intolerância racial (irmão do niilismo moderno).

Mas não é apenas o fogo — os homens são os principais responsáveis por isso, representados pela figura titânica de Sutpen, obcecado por um “desígnio” que inventou para si mesmo, um “desígnio” que, no fim, prejudicou sua descendência inteira, numa velocidade mortal simbolizada pelo “garanhão negro” (black stallion) que o coronel dominava enquanto vigiava os seus negros na plantação ou os soldados no campo de batalha. Ao mesmo tempo, a psique de Quentin se fragmenta ao perceber que a história do Sul o acompanha mesmo na faculdade de Harvard (ápice intelectual do Norte americano) e, ao contar a história de Sutpen ao amigo canadense Shreve, usando como recurso as anedotas e as lendas repassadas por seus parentes e conhecidos, também chega à conclusão de que ele, aos vinte anos, “viveu mais do que todos os contemporâneos”. Como um Stephen Dedalus confederado, o jovem Compson reconhece que não há como acordar do pesadelo que a sua História se tornou.

Quando chegamos ao final do labirinto de Absalão, Absalão! (o título é uma referência ao episódio bíblico do filho de Davi, que queria, a qualquer custo, superar os feitos do pai — e, ao tentar esse “desígnio”, cria a sua própria tragédia), repleto de molduras narrativas que se encaixam umas nas outras, narrado em um fluxo de linguagem que nos dá a impressão de lermos um rio de lava escaldante prestes a se tornar um muro petrificado, sentimos também o peso deste passado. Um passado em que não há outra escolha tal como a que fez Quentin Compson quando já sabemos que ele é o mesmo suicida que se matará em O som e a fúria.

No mundo de Faulkner, os livros não se sucedem em sua imaginação moral numa linha cronológica exata; o futuro pode vir antes do presente e este acumula tudo o que veio do passado em um único instante. Existem inúmeras portas a serem abertas na mansão de Yoknapatawpha; em uma delas, Quentin morre; em outra, ele sobrevive. Mas, de qualquer forma que permaneça, será sempre um fantasma — pelo simples motivo de que o “desígnio” da literatura quer se sobrepor ao “desígnio” da vida.

Jaulas particulares
Isso não significa que Faulkner abandonou o nosso mundo. Pelo contrário: em Palmeiras selvagens (1939), ele usa tudo o que aprendeu no seu cosmos particular — os flashbacks, os fluxos de consciência, o correlato objetivo entre a natureza e as pessoas, os cortes radicais de tempo narrativo — para mostrar que o que foi criado pela palavra tem uma íntima relação com o que vivemos no dia-a-dia. Neste romance, que mistura estoicismo e erotismo, a sensualidade da natureza e a sexualidade da carne (nitidamente inspirado pelo affaire turbulento que Faulkner teve com Meta Carpenter, secretária de um de seus amigos, o cineasta Howard Hawks), o estilo caudaloso que antes era a marca de Absalão, Absalão! agora é lapidado a cinzel, como se o artista tivesse plena consciência que o dilaceramento moral vivido por seus personagens é igual ao seu. Abordando temas polêmicos — adultério, aborto, a impossibilidade de regeneração em uma sociedade incapaz de compreender os que estão fora dela —, o livro é estruturado em duas histórias paralelas que nunca se cruzam ou se tocam, exceto por imagens e símbolos que ecoam em gestos simétricos, ironias invertidas, diálogos e pensamentos repetidos.

A primeira é a que intitula o livro na sua primeira versão (a intenção do autor era chamá-lo de If I forget thee, Jerusalem [Se eu me esquecer de ti, Jerusalém], um verso do salmo 137 da Bíblia, o que foi feito nas edições posteriores a 2003) e narra o malfadado romance de amor entre dois amantes que poderiam estar em um conto de Hemingway, Henry Wilbourne e Charlotte Rittenmeyer; a segunda chama-se simplesmente “O velho”, apelido do rio Mississippi, sempre dado a enchentes catastróficas, sendo que uma delas acontece justamente quando, por uma manobra do destino, um condenado de uma penitenciária estadual é obrigado a salvar uma moça grávida e perdida no meio do desastre. Na alternância destas duas narrativas, a técnica da desordem de Faulkner atinge enfim a sua mestria moral: apesar de distantes no tempo e no espaço, como acontece com qualquer história que se passe na nossa realidade, elas estão ligadas por um único impulso — o de prevalecer a qualquer custo, mesmo que soframos os ataques das paixões que não controlamos e da natureza que desconhecemos, reconhecendo enfim que as regras dos nossos “desígnios” só têm vida própria porque nos recusamos a abraçar aquela perseverança típica de quem sabe que a verdadeira arte é a de aceitar as perdas e as desgraças deste palco, sem nenhum choro, sem nenhuma reclamação. “Entre a dor e o nada, prefiro a dor”, decide Henry Wilbourne quando se vê na prisão por ter matado acidentalmente a sua amante; e o condenado que salvou a grávida da enchente retorna em silêncio à penitenciária, mesmo depois de ter se arriscado por uma desconhecida que jamais verá novamente.

Todos nós vivemos nas nossas jaulas particulares, eis a máxima de Faulkner; os livros seguintes — como a trilogia Snopes (O povoado, de 1940, A cidade, de 1954, e A mansão, de 1959), O intruso (1948), Uma fábula (1954) e Os invictos (1962) — continuaram a meditar sobre a conclusão sóbria de que existem aqueles que, mesmo presos, estão livres dentro de suas mentes e aqueles que, mesmo livres, se deixaram contaminar pelas idéias de fracasso e derrota.

Esta atitude não existe na ficção de William Faulkner. Em O leilão do lote 49, de Thomas Pynchon, a personagem Edipa Maas pergunta-se se deveria projetar um mundo enquanto se deparava com a descoberta de outro muito mais terrível e ameaçador. A questão é pertinente em uma época na qual a realidade pouco a pouco se tornava uma alucinação que colocaria em risco a própria existência da literatura como meio para a imaginação moral se debruçar sobre a terra provisória. Ler os livros do autor de O som e a fúria é ir na contramão dessa tendência. Como o próprio disse uma vez: “Gosto de pensar que o mundo que criei é uma espécie de pedra angular do universo; que, por menor que seja essa pedra angular, se ela um dia for removida, o próprio universo desmoronaria”. Com sua morte em 1962, sabemos que este mundo permanece diante dos nossos olhos — mas os limites do condado de Yoknapatawpha continuam a se expandir nas fronteiras das obras de um mestre que jamais permitiu que uma idéia fora do escopo da criação total invadisse a integridade da sua mente e do seu espírito.

NOTA
Não abordaremos neste ensaio dois livros escritos e publicados no mesmo período: Santuário (1930), que se passa no território mítico de Faulkner, mas que mereceria outro texto para uma análise justa; e Pylon (1935), romance sobre o fascínio do escritor pela aviação e localizado em Nova Orleans.

Martim Vasques da Cunha

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista, doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade de São Paulo, autor de Crise e utopia: O dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e de A poeira da glória – uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record).

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