A sufocante realidade

Narrativas de Ghassan Kanafani abordam o conflito árabe-israelense a partir da perspectiva dos palestinos
Ilustração: Ghassan Kanafani por Oliver Quinto
01/02/2024

O crítico e historiador Ian Watt, autor do clássico A ascensão do romance, defende que uma das premissas centrais do romance, enquanto moderno gênero literário, é a de ser uma forma de representação da experiência com o real. Em outras palavras, seria impossível um olhar sobre um romance que não tente captar as relações entre os indivíduos e a sociedade e, consequentemente, o ambiente ao seu redor.

Falar em Ghassan Kanafani, hoje, é falar sobre o Oriente Médio. Em nosso imaginário, a região é marcada pelos intermináveis conflitos político-religiosos a vitimar sobretudo inocentes. Seguindo o princípio de Watt, a produção literária de Kanafani, um dos maiores autores palestinos de todos os tempos, não poderia se furtar a isso, exibindo claramente as marcas das guerras daquela região.

Recentemente, foram publicados no Brasil três textos de Kanafani: Umm Saad, Homens ao sol e Retorno a Haifa. Todos eles carregam a marca da singularidade de uma condição social, expondo um cenário de crise, da mesma forma como deixam em evidência a militância política do autor e o seu compromisso com a causa palestina.

Nascido em abril de 1936, Ghassan Kanafani foi mais do que escritor: ele era um dos principais nomes da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP). Em 1948, com a criação do Estado de Israel, Kanafani teve de partir de sua terra, juntamente com a família, estabelecendo-se no Líbano e Síria. A sua atuação militante chama a atenção do mundo, deixando em evidência a personalidade combativa. Em 8 de julho de 1972, com apenas 36 anos, foi vítima de um atentado orquestrado pelo Mossad, a inteligência israelense. A morte se assemelha àquelas que vemos em filmes de espionagem norte-americanos: o seu carro explodiu, em Beirute, matando também Lamees Najim, a sobrinha de 17 anos que o acompanhava.

A produção literária de Kanafani é inversamente proporcional à curta vida que teve. Em sua obra, tenta ressignificar o conflito árabe-israelense para o povo palestino. Através de tais circunstâncias sociais, o autor se inclina sobre uma lógica praticamente estrutural, cujas consequências se fazem evidentes nas formas de vida de seus personagens, de maneira a imprimir um universo ficcional bastante singular.

A despeito da existência de um eixo comum, marcante na produção literária do escritor palestino, Umm Saad, Homens ao sol e Retorno a Haifa são livros bastante diferentes entre si. E é justamente isso que deixa em evidência a versatilidade e engenhosidade da escrita de seu autor. Estamos diante de uma rara capacidade de mobilizar os mais distintos recursos literários em torno de um mesmo eixo, simultaneamente à garantia de manutenção de uma identidade na escrita.

Umm Saad
Publicado originalmente em 1969, Umm Saad é o mais antigo dos três. Tem uma linguagem a remeter ao mitológico. A nominação, Umm Saad, significa Mãe de Saad. E Saad é um jovem militante da causa palestina, disposto a pegar em armas e guerrear por seu povo. Umm Saad surge como a mulher que, diferentemente do que estamos acostumados na cultura ocidental, compreende o empenho do filho e seu investimento na causa militar. Demonstra orgulho em relação ao que ele vive. Definitivamente, esse é o caminho a ser seguido.

Existe um misticismo evidente na descrição de Umm Saad a fazer com que a narrativa se assemelhe a uma fábula. A protagonista é dotada de uma sabedoria impressionante, sendo capaz de ressignificar as dúvidas do narrador-personagem com quem ela sempre está conversando. Confere um novo sentido a muitos dos questionamentos feitos por ele — por conseguinte, eventuais questionamentos do leitor também. E, progressivamente, deixa claro o lugar de seu filho no universo palestino. Se uma mãe vê como normal a ida da prole para o front, na resistência, o que pensar sobre esse povo e o significado dessa guerra para eles?

Um ponto de destaque no romance é quando o pai de Saad, Abu Saad, de vida desregrada, demonstra um imenso orgulho do filho ao vê-lo manuseando um fuzil. Na cena, evidencia-se o direito de todo o povo palestino quanto ao seu território. Há uma altivez nessa postura. Entretanto, trata-se de um orgulho há muito já presente em Umm Saad.

Abu Saad bateu muitas palmas. Parou empertigado olhando ao redor, pleno de orgulho. Logo, seus olhos encontraram os de Umm Saad. […] Para não rir, Umm Saad voltou a soltar seu trino de alegria em meio às palmas que continuavam, enquanto o menino balançava o fuzil diante dos homens que se amontoavam. Sua testa brilhava com o sol da tarde e, de súbito, um homem idoso, sentado na beira do muro, virou-se até Abu Saad e disse:

— Se fosse assim desde o início, nada teria acontecido com a gente.

Abu Saad concordou, surpreso com as lágrimas que viu nos olhos do velho.

É interessante a visão que Kanafani apresenta da mulher. Umm Saad é uma mãe que, desprovida de uma cultura escolar, poderia simplesmente se desesperar diante da iminente perda do filho para a guerra. Esta seria, aliás, uma forma interessante de demonstrar a insanidade do que se passa. Entretanto, a sua sabedoria é justamente amparada no conflito enquanto realidade. Isto é, infelizmente, já não existe este seu mundo sem a guerra. De certa forma, algo muito próximo àquilo que vemos nos dias de hoje.

Retorno a Haifa
Quarta novela de Kanafani, publicada originalmente em 1970, Retorno a Haifa é o caçula dos três livros que abordamos aqui. Diferentemente de Umm Saad, tem uma linguagem mais próxima à do teatro. Um casal, após 20 anos, retorna à cidade de Haifa, de onde foram expulsos, com o Nakba (“catástrofe”), em 1948, para que ela recebesse os novos habitantes da região, os judeus. Na fuga, o filho deles, com poucos meses de vida, fica para trás.

Kanafani constrói uma narrativa tensa, repleta de silêncios, na qual, desde o princípio, nos interrogamos sobre a perda dessa criança. E, conforme avançamos na leitura, fica claro que não temos uma dimensão do conflito e da complexidade da convivência entre os habitantes daquela região. Quando Haifa é reaberta, muitos anos depois, eles retornam. Voltam à casa onde moraram e encontram uma sobrevivente do holocausto vivendo ali. Interessante como, nela, notamos um mínimo de compreensão com a situação vivenciada, ao reconhecer a dificuldade da fuga, reforçando a complexidade na abordagem do tema — não se trata de uma colonizadora desprovida de racionalidade em seu julgamento, conseguindo enxergar as vítimas da animalesca guerra por todos os lados. Por força das circunstâncias, ela criou o filho do casal. A parte central da trama é o reencontro dos pais com o jovem que, agora, serve ao exército israelense — pois fora criado como judeu.

Aqui a metáfora é significativa. Se fosse uma questão de sangue, não haveria qualquer motivo para a senhora judia adotar a criança — ela sabia que se tratava de um menino árabe. Cria-o, inserindo-o na cultura judaica, de maneira a tomá-lo como filho, para a angústia dos pais biológicos. O rapaz, então, não admite a sua origem. Ali, Kanafani questiona as raízes do conflito. Isso parece óbvio para todos nós, mas, nem tanto quando se pensa no fato de que boa parte de sua justificativa está grosseiramente amparada em uma lógica religiosa e, por sua vez, supostamente anterior aos homens.

Agora, passadas duas horas de conversa intermitente, era possível colocar as coisas em ordem: entender o que havia ocorrido naqueles poucos dias entre a noite de quarta-feira, 21 de abril de 1948, quando Said S. deixou Haifa num barco britânico com sua esposa, para serem jogados, uma hora depois, na costa prateada de Akka, e quinta-feira, 29 de abril de 1948, quando um membro do Haganah, acompanhado por um homem idoso que parecia uma galinha, abriu a porta da casa de Said S. em Halisa, e liberou o caminho para Efrat Koshen e sua esposa, ambos vindos da Polônia, entrarem no que a partir de então se tornou sua casa, alugada do Departamento de Custódia das Propriedades dos Ausentes em Haifa.

Por sua proximidade com o teatro, a trama de Retorno a Haifa fica concentrada em praticamente um único cenário, sustentada por um único diálogo a se passar em um único dia — a ação em tempo real. Ainda que seja basicamente uma interação entre os quatro, o livro demonstra uma dinâmica, presente na capacidade, ou não, de os personagens apresentarem as suas angústias. Said S., o protagonista, consegue se comunicar bem com todos os presentes. O mesmo não se passa com a sua esposa, Safiya, a mãe do menino perdido, que não entende uma palavra do que é dito, dependendo sempre das traduções do marido. Enfim, em meio à sua perda, ninguém pode escutá-la senão com um tradutor, mesmo desejosa de entender tudo o que se passa.

Homens ao sol
Kanafani contava com apenas 27 anos quando publicou Homens ao sol. Essa é a mais antiga das três obras desta resenha — sendo a sua primeira novela. Trata-se de uma literatura de resistência, deixando claro o que seria o destino do povo palestino, sufocado pelo conflito.

Homens ao sol tornou-se um clássico da literatura palestina. Com o passar do tempo e os desdobramentos da guerra, a história tornou-se cada vez mais atual. Na trama, três palestinos tentam chegar ao Kuwait saindo do Iraque. Eles buscam uma nova vida, cujo empenho está em apenas sustentar suas famílias — como se, em se tratando de imigrantes, isso fosse pouca coisa. Todavia, para cruzar a fronteira sem serem notados, devem se esconder no tanque de metal de um caminhão durante o dia, no inclemente calor do deserto.

O interior do veículo é sufocante. O revestimento de aço é superaquecido em sua exposição ao sol. Uma vez dentro, as temperaturas são inimagináveis. Poucos são os minutos que os imigrantes precisariam resistir: apenas a conta de cruzarem o posto militar na fronteira. Metaforicamente, o fato de a resistência ter de durar tão pouco tempo nos dá a impressão de estarmos igualmente próximos da resolução do conflito, bem como de toda a angústia dos envolvidos.

Aconselho vocês a tirarem a camisa. O calor é sufocante, aterrorizante, e vocês vão suar como se estivessem num forno. Mas é só por cinco ou sete minutos… Eu vou dirigir o mais rápido que puder. Aqui dentro há barras de ferro, uma em cada canto… Peço que vocês segurem nelas com firmeza, ou vão rolar feito bolas. E tirem os sapatos, óbvio.

Na visão de Kanafani, os palestinos estão sujeitos a morrerem sufocados, em silêncio, em sua própria terra, dentro do Oriente Médio. As circunstâncias de guerra inibem qualquer tentativa de busca por dignidade. Em Homens ao sol, merece destaque o personagem Varapau e seu histórico de participação no conflito árabe-israelense. Inicialmente, a sua figura é marcada pela ambição e oportunismo, traço radicalmente transformado à medida que avançamos na leitura, quando o autor nos aproxima da ideia de anti-herói, tão disseminada na literatura ocidental.

Difícil solução
Nas páginas dos livros de Ghassan Kanafani vemos impressas não apenas as dificuldades derivadas de um conflito militar, mas, sobretudo, a aparente incapacidade de sua resolução. Umm Saad evidencia o orgulho de uma mulher, mãe, com a bravura do filho — tudo isso em meio à incerteza do que viria a ocorrer, bem como a sua iminente perda. Retorno a Haifa traz a tristeza de uma família para o primeiro plano, tendo de ver o seu filho se tornar “o seu inimigo” — o não entendimento da mãe quanto ao que se passa denota a inexistência desse diálogo. Homens ao sol, por fim, sinaliza para a incapacidade de um homem conseguir fugir do conflito e o silenciamento de um povo. A sua imersão é inevitável, ficando ainda mais proeminente no exato momento em que ele supostamente conferiria um outro significado à disputa — um significado que não lhe cabe.

Se a cobertura dos telejornais tende a nos apresentar imagens cada vez mais ricas sobre esse conflito, a literatura de Kanafani nos transporta para o imaginário dos envolvidos. As consequências da guerra são tocadas pelo autor, em sua apresentação de personagens diretamente atingidos por ela, que já não concebem uma vida sem armas e bombas. Talvez falte a nós, ocidentais, um maior contato com esse pensamento, com essa experiência com o real, nos dizeres de Ian Watt, de maneira a nos auxiliar a ver a dimensão do conflito para além daquelas imagens parecidas com as de um jogo de videogame. É um real atingido pela literatura e uma literatura atingida pelo real. Essa é a obra de Ghassan Kanafani.

Umm Saad
Ghassan Kanafani
Trad.: Michel Sleiman
Tabla
80 págs.
Retorno a Haifa
Ghassan Kanafani
Trad.: Ahmed Zoghbi
Tabla
76 págs.
Homens ao sol
Ghassan Kanafani
Trad.: Safa Jubran
Tabla
104 págs.
Ghassan Kanafani
Nascido em 1936, é considerado um dos principais escritores e jornalistas árabes. Atuou como militante da causa palestina, tendo vivido a instalação do Estado de Israel, em 1948. Ao longo de sua curta vida, publicou 18 livros e centenas de artigos sobre cultura, política e luta do povo palestino. É leitura obrigatória em muitas escolas do mundo árabe e traduzido para diversos idiomas. Morreu em 1972, aos 36 anos, vítima de um atentando em Beirute (Líbano).
Faustino Rodrigues

Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).

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