A súbita invasão do júbilo da literatura

Vicente de Paula Ataide, sem o agudo do i, foi um professor maravilhoso, um apaixonado missionário da literatura
Detalhe da capa de “O dragão da Boca Maldita”, de Vicente Ataide
10/12/2023

— Seu igno.

Era um de seus modos de puxar a orelha de aluno distraído ou abusado. Nessas horas, sua pronúncia castigava: iguíno. Ignorantes em muita coisa, quase todos estávamos na altura e angústia dos dezesseis anos. Logo nos acostumamos àquele tratamento porque o politicamente correto ainda não nos mostrava suas garras ímpias.

Histriônico de fisionomia séria até no caminhar, na rua costumava andar com livro aberto entre as mãos. Leitor compulsivo, ágil nas passadas, afundava o chão com seus sapatos norte-americanos de solados, dizia, resistentes aos mais cruéis golpes do chão, fosse em pedra ou asfalto.

— Nossos calçados são péssimos, tudo no Brasil é o que sobra deles.

Deles: europeus e norte-americanos. Apaixonado pela maneira como nos EUA eram tratados os escritores e o lugar privilegiado que reservavam para livros e bibliotecas, nos situava em nossa pobreza: somos a América Latrina.

— Sabem onde foi parar o minério retirado das montanhas de Minas? Nos pilares de ferro maciço dos arranha-céus de Nova York.

Residiu cerca de dois anos como professor visitante em Minnesota e Iowa. Contava com orgulho que ia para a Universidade a pé, sobre as águas congeladas do Mississipi. Chegou nos EUA sem pronunciar uma frase em inglês.

— Uma coisa é ler e bem outra, falar.

Os dois filhos pequenos aprenderam em poucas semanas. Ele levou alguns meses para articular as primeiras frases. Quando o conheci, vivia encharcado de uma cultura norte-americana que assimilou in loco, sem deixar nunca de enfatizar nossa condição de país periférico e dependente.

Com piadas, certeiras, sarcásticas, em poucos minutos ganhava no riso a sala inteira. Nem sempre pelo riso, nos ganhava pelas aulas, que costumava ministrar como num transe. Possuído de uma intransferível estranheza, imbuído do assunto que desejava expor, seja de onde viesse, nesses momentos não admitia interrupção. Certo dia, ao tentar provocá-lo no meio de um desses transes formidáveis, senti a dor da vergonha na fuzilaria de seu olhar inquisidor.

Não perdi boas oportunidades de provocá-lo outras incontáveis vezes, mas de uma forma menos comprometedora, como quem busca espaço, devagar, aos poucos.

Procurei seus livros nas bibliotecas escolares e públicas e, numa volta das férias, quis ele saber o que tínhamos lido no período. Fui cirúrgico:

— Li Ponto de almoço.

O livro de sua estreia na literatura, anos 60, contos.

Careta medonha, o seu tanto assustado, ele se rendeu:

— Você leu aquilo?

Ao lançar autores novos, que orientava no sentido de produzirem uma literatura infantojuvenil libertadora, tinha por meta transformar a sociedade unicamente com boa literatura. Para ele, gramáticas e demais livros didáticos não passavam de entulhos a serviço de uma sociedade perversa que visava apenas o lucro. Libertar o aluno dessas alienações, ensiná-lo a ler ficção e poesia, os nossos escritores, eis que fazia novas todas as coisas e nisso empenhou a sua vida.

Passei a encontrá-lo além das aulas, ao acaso, nas ruas, ou nos poucos eventos literários que aconteciam pela cidade.

— A geração anterior era também assim, talvez até pior — tentou ele me tranquilizar diante do meu visível espanto frente à performance do poeta Paulo, que em palcos ardia, vaidosíssimo. Socando a mesa, gargalhada nervosa, naquela noite o poeta de novo não perdeu a oportunidade de se exibir ébrio de si mesmo:

— Já não pertenço ao Paraná, estou na Veja da semana passada.

E uma baba ácida escorria pelos cantos da boca do poeta inflado. Nessa mesma mesa redonda, diante da pergunta da plateia (o que é cultura?), o contista Domingos faiscou:

— Cultura são os chinelos que o Paulo ontem me emprestou. Sou de Londrina, estou hospedado na casa dele e esqueci de trazer os meus.

Sorrindo, meio irônico, o romancista Roberto tentava amenizar as explosões truculentas dos seus companheiros de mesa.

Tão explosiva assim a geração anterior, Vicente? Ó literatura e seus estranhos personagens. No final do evento, descemos juntos a ladeira que nos afastava do Solar do Barão e aproveitei a deixa para perguntar mais:

— Viu a recém-lançada nova edição de A crítica literária no Brasil, do Wilson?

— Saiu? Não sabia.

— Agora em dois volumes, um livro imenso. O problema é o preço.

Informei o valor que vi anotado na vitrine da Livraria Ghignone. Ele interrompeu a passada e fez olhos espantados:

— Não é possível!

— Pois é.

Levei alguns anos para adquirir um daqueles volumes em sebo, talvez o segundo. O primeiro demorou bem mais. Já os livros dele, Vicente, fui comprando aos poucos, a preços mais ou menos módicos, ora nos sebos, ora na sala que ele manteve no centro da cidade, onde hospedou a então recém-fundada HDV, a sua editora. Quando o encontrava por lá, vinha sempre com alguma novidade ou comentário insólito.

— Bom, vai ler o Compromisso literário de Fábio Lucas? — indagou, olhar fixo no volume que eu levava (emprestado da Biblioteca Pública) e que identificou de longe, apenas pela quarta capa de um verde esmaecido.

No começo de tudo, em 1981, em sala de aula, ouvi de um colega:

— Pô, você faltou ontem, perdeu a aula do novo professor. É louco de pedra e você vai gostar muito dele.

Será, louco? Na época, loucos eram para mim os químicos — Linus Pauling, o maior deles. Vivia eu fixado na tabela periódica, que sabia quase de cor. Reações e mudanças, por quem os sinos dobram? Os sinos não dobram, os sinos são dobrados. Pois ali se deu o antes e o depois: na primeira aula com o professor “louco de pedra”, a súbita invasão do júbilo da literatura.

Vicente de Paula Ataide, sem o agudo do i, foi um professor “maravilhoso”. O adjetivo mais que adequado, perfeito, chegou agora pelo e-mail de um amigo, o poeta Nilton Resende, que teve igualmente essa sorte, minha, dele, de uma legião — a suprema sorte de tê-lo por perto e em seu elemento, em sala de aula. Nilton foi seu aluno em Alagoas, onde o professor resolveu viver as décadas finais de seu apostolado que vinha desde os anos 60, sob a aura do estruturalismo. Neste último outubro, foi de lá, de Maceió, que partiu e nos alcançou a notícia de sua morte, aos 82 anos.

Professor, editor, crítico literário, ensaísta, ficcionista. Mais que tudo, um missionário da literatura que nunca se apartou de um arejado porém firme ideal marxista. Numa das tantas dedicatórias que preservo dele nos livros que publicou, entre os poucos guardados de minha juventude paranaense, lá encontro este registro à beira de meio século: “Ao amigo (eu acredito que ele vai ser escritor) André, com o grande abraço do Vicente Ataide 21/X/83”. Escritor? Quem sabe, talvez, crítico literário, essa categoria de escritor que parece nem contar mais entre os tantos proscritos de nosso atual feudalismo tecnológico.

Adeus, Vicente. Até sempre.

Rio de Janeiro, outubro de 2023.

André Seffrin

Nasceu em Júlio de Castilhos (RS), em 1965. É crítico literário, ensaísta e antologista. Autor, entre outros livros, de O demônio da inquietude (2023).

Rascunho