No prefácio à segunda edição de A interpretação dos sonhos, Sigmund Freud faz um longo comentário a respeito da elaboração dessa obra que se tornou um marco revolucionário do estudo sobre os mecanismos da psique humana: “[…] Este livro tem para mim, pessoalmente, […] uma importância que só apreendi após tê-lo concluído. Ele foi, como verifiquei, parte de minha própria auto-análise, minha reação à morte de meu pai — isto é, ao evento mais importante, à perda mais pungente da vida de um homem”.
À parte as considerações de cunho estritamente psicanalítico que continuam sendo tecidas a partir dessa observação de Freud — sua referência à perda do pai tornou-se um de seus pensamentos mais famosos; e à parte, principalmente, as simplificações, tão ao gosto popular, que diminuem a teoria freudiana, o importante, para este texto, é o fato de A interpretação dos sonhos ter nascido, inclusive, como resposta de um homem à necessidade de assimilar o luto causado pela morte paterna. Ou seja, de elaborar o luto exatamente de quem, na infância, segundo a psicanálise, desejamos a morte. Luto, portanto, que, ao ser superado, representa a libertação de uma culpa — e, conseqüentemente, o nascimento de um homem pleno.
Nem todos, contudo, têm o privilégio de possuir a capacidade para empreender, sozinhos, esse doloroso processo. Alguns, agindo de maneira solitária e intuitiva, alcançam certo êxito. Outros recorrem, em determinado momento de suas vidas, ao método psicanalítico. E a maioria, inconsciente de tantas outras questões essenciais, restringe-se a cumprir o seu fado. No caso do escritor Jean-Marie Gustave Le Clézio, ele optou por escrever um livro, O africano, lançado na França em 2004 e traduzido no Brasil, em 2007, pela CosacNaify.
Regras coercivas
Médico do governo britânico na África, o pai de Le Clézio passaria nesse continente a maior parte de sua vida. Separados pela Segunda Guerra Mundial, pai e filho se reencontrariam em solo africano logo após a derrota alemã, a fim de vivenciarem o desencontro inevitável entre o garoto mimado pela mãe e pelos avós maternos — se não satisfaziam seus desejos, ele passava a jogar objetos e móveis pela janela do apartamento, até ser atendido — e o pai precocemente envelhecido, facilmente irritável, disciplinador e autoritário.
Para chegar ao pai, Le Clézio retoma sua própria infância na África. Não se trata, no entanto, de uma recuperação minuciosa. Num tom intimista, o narrador discorre superficialmente sobre corpos, rostos, cicatrizes, rituais, a falta de pudor “magnífica”, a liberdade experimentada nas grandes extensões da savana — repetidas vezes comparada a imagens marinhas, oceânicas —, a natureza exuberante, os insetos que se reproduzem em profusão, o calor. “A África […] dava-me um corpo dolorido e febril, esse corpo que a França me ocultara na doçura anemiante da casa de minha avó, sem instinto, sem liberdade”, diz Le Clézio, compondo uma figura algo simplificadora.
Sua vida na África, o que o autor chama de “ingresso na antecâmara do mundo adulto”, seria marcada, no entanto, pela excessiva autoridade paterna. Vivendo sob um sistema de regras coercivas — algumas, de fato, necessárias, outras totalmente absurdas —, ele conhece a submissão ao homem que, além de lhe arrebatar a mãe, tolhe sua personalidade.
A cada página, aguardamos que Le Clézio enfrente o que de fato sentia em relação ao pai — quantas vezes o odiou? Quantas vezes desejou insultá-lo? Quantas noites sonhou com sua morte? —, mas a narrativa superficial se impõe, os detalhes são escamoteados, a verdade jamais chega a emergir. Em nenhum momento o narrador se permite uma auto-análise severa — e a cada novo parágrafo temos a crescente certeza de que a intenção de esconder os fatos, dissimulada no texto, obedece à falta de coragem ou, talvez, a uma estranha necessidade de autopreservação.
A tarefa de se enganar
Apesar do superficialismo, a grande tarefa que Le Clézio se impõe é a de resgatar seu pai. E ele a empreende repetidas vezes, enfocando certos assuntos, inclusive, de forma cíclica. Mas sem nunca ir ao fundo das questões. O pai foge do primeiro emprego como médico — e o narrador conclui, apressadamente, que ele o fez “para escapar da mediocridade da vida inglesa, e também pelo pendor à aventura”. O leitor se surpreende com a conclusão rápida, incisiva, sem qualquer embasamento; mas logo depois passa a compreender a lógica que move esse narrador sempre pronto a se iludir, pois, para ele, o único pai possível, o único pai aceitável é a figura quixotesca do herói que desprezou o colonialismo — “os donos de plantações e seus ares de grandeza”, o “conformismo da sociedade inglesa”, o “mundo colonial e sua presunçosa injustiça”, com “suas amantes de ébano prostituídas aos quinze anos, introduzidas pelas portas dos fundos, e as esposas oficiais bufando de calor e projetando nos serviçais […] o rancor que tinham” —, isolando-se na miséria africana, lendo insistentemente A imitação de Cristo e dedicando-se, mais do que à medicina, à tentativa de, por meio da medicina, purgar-se das próprias frustrações.
Além de superficialidade, há também idealização. Um bom exemplo são os comentários sobre a fotografia que ocupa as páginas 66 e 67: um rio como qualquer outro rio, uma paisagem desolada, pobre e comum, tendo uma casinhola à margem. Mas o narrador vê “selvageria e mistério”. O conhecimento de que foi ali que seu pai se instalou certa vez, que essa casinha serve como exemplo de tantas outras habitações passageiras utilizadas pelo pai, basta para criar a atmosfera engrandecedora. Um psicanalista talvez possa dizer por que o pai despótico precisa ser substituído pelo pai heróico — mas, para nós, é suficiente sabermos que a tentativa de substituição não convence.
A incrível disparidade que há entre fotos e texto repete-se na descrição do rei Banso, cuja fotografia ilustra a página 83, levando-nos a pensar que o narrador está irremediavelmente preso às suas fantasias, tentando, a qualquer preço, dar uma nova roupagem ao frágil legado paterno.
Em determinado trecho, ele diz que pode “sentir a emoção que possui” o pai “quando ele atravessa as chapadas e as planícies herbosas, quando cavalga pelas trilhas que serpenteiam por flancos de montanhas, descobrindo a cada instante novos panoramas […]” — mas não nos fala que emoção é essa. E não verbaliza porque não sabe, porque o pai será eternamente uma incógnita. Mas ele se dá conta dessa impossibilidade? E, principalmente, se dá conta dessa idealização pueril? Temos a impressão de que, a cada página, Le Clézio leva adiante a consoladora tarefa de se enganar.
Indulgência
Esse narrador pusilânime passa ao largo dos dramas que poderia esmiuçar e, quem sabe, esclarecer. Não nos explica os motivos da grave crise que dividiu e dispersou a família paterna, formada por ingleses radicados nas Ilhas Maurício. E sua visão da África está repleta dos lugares-comuns que culpam os colonizadores pela miséria do continente — um mundo no qual, com exceção de seus pais, todos os brancos são impuros e não merecem confiança. Aliás, no que se refere ao casal que o gerou, o narrador alcança o ápice da idealização: no meio de um verdadeiro inferno, vivendo expatriados de tudo que a civilização ocidental conquistou, os pais de Le Clézio são seres perfeitos — um Adão e uma Eva expulsos da hipócrita sociedade européia e convocados a recriar o novo paraíso em solo africano.
Tímido acerto de contas com o passado, O africano é o livro de um adolescente sexagenário — indulgente consigo mesmo, indulgente com a África, indulgente em relação ao pai. Como Enéias nas profundezas do Hades, Le Clézio tenta abraçar Anquises repetidas vezes, mas sempre em vão, pois a sombra paterna lhe foge de maneira irremediável.