Uma narrativa que inicia com um livro a ser escrito. Papéis, anotações, uma série de fatos aparentemente acumulados como tantos outros recebidos pelo escritor para que fosse uma história a ser desenvolvida ou descoberta. É com a ideia da metaficção que começa o romance Pão de Açúcar, de Afonso Reis Cabral. A obra venceu o Prêmio José Saramago de 2019.
Baseado em fatos verídicos, a narrativa se desenvolve em torno da personagem Gisberta, a Gi, travesti brasileira que vive por um tempo na França, dançando nos cabarés parisienses como transformista, e depois segue para Portugal, onde a miséria lhe toma a vida por completo.
A partida para a França, aos 18 anos, estava relacionada à necessidade de sair do Brasil, país no qual vários crimes contra travestis estavam acontecendo. Vivendo da prostituição, na zona periférica da cidade do Porto, a personagem se envolve com o uso de heroína e é contaminada pela aids e tuberculose. Segue um destino de desprezo, pobreza e morte. É expulsa da pensão onde recebe os clientes no quarto. Pela doença cada vez mais evidente e por não ter como pagar moradia, acaba por se alojar numa obra inacabada de um edifício, o Pão de Açúcar. Constrói uma barraca na qual vive precariamente enquanto procura se tratar como pode da doença.
Aos 45 anos, em 2006, Gisberta foi violada e espancada por um grupo de adolescentes. Seu corpo, aparentemente sem vida devido aos machucados e à violência das agressões, foi jogado no fosso da construção. De acordo com o relatório dos legistas, a água encontrada em seus pulmões denotava que fora atirada ao fosso ainda com vida.
Afonso Reis Cabral parte da história de Rafael, uma das pontas da tríade de personagens que encontra Gisberta. Estudante da Escola Augusto César Pires de Lima e da Oficina de São José, Rafael é uma representação também da pobreza e da forma de pensar da periferia da cidade do Porto. Do cotidiano na escola e da oficina também surgem os pequenos delitos e infrações, como a compra de bebidas alcoólicas. Num universo predominantemente masculino, como os dormitórios e as camaratas, para a escola e o convívio com o feminino, Rafael, Samuel e Nelson vivem um cotidiano enfadonho e que não revelava nenhum futuro promissor.
É Rafael quem encontra Gisberta. E é ela quem, num gesto de aproximação, lhe deixa um bilhete na bicicleta em reforma e guardada no Pão de Açúcar. A partir de então, estabelecem um esboço de amizade. Das noites a invadir o sótão do dormitório e reconhecer pequenos tesouros perdidos entre pó e tempo surgem o compartilhamento da história de Gisberta.
Massacre
Narrado em primeira pessoa, Pão de Açúcar revela-nos a imbricada relação dos três adolescentes com a personagem Gi. Samuel a conhecia da infância — a mãe do garoto era prostituta no mesmo lugar que Gisberta. A amizade é relembrada e por um ínfimo laço mantida no momento do reencontro. Era Gisberta que contava histórias para os filhos das colegas de profissão, entretendo-os enquanto as mães estavam nos quartos da pensão com os clientes. E ela sabia contar uma boa história. Samuel desenha e na sua introspecção vive toda a dor de ver a “amiga da infância” violada e assassinada. Nelson é o expoente de uma sociedade retrógada e preconceituosa: vive o dilema de aceitar que Gisberta é um indivíduo com personalidade, sentimentos e desejos, não uma aberração. Rafael, algoz e narrador, traz em si a dicotomia entre o afeto e o nojo, por ver na travesti um amigo generoso e, ao mesmo tempo, a configuração de um “desvio da norma”, do padrão. Existia o medo da contaminação pela doença, mas também pela escolha sexual de Gisberta. Existia Alisa, a namorada da escola, relação que o colocava em oposição à Gisberta. Existia todo um mundo de convenções, modos de pensar, de agir e tratar “gente como Gisberta”. E existia uma outra forma de perceber sua existência, infinitamente menor que toda a pressão dos sentimentos e sensações de desprezo e ódio pela diferença.
O segredo cotidiano de alimentar, conversar e tentar ajeitar a casa/barraca de Gisberta, retirada do convívio com a humanidade e em meio ao inverno gélido e solitário, é desvelado por Fábio. Mais velho que os demais, o jovem e seus seguidores, Grilo e Leandro, lidera um massacre emocional e físico contra o corpo de Gisberta — xingamentos, estupros e surras que se estendem por dias, exigindo a participação de Samuel, Rafael e Nelson. A adesão de Nelson foi imediata, com raros momentos de dúvida; Samuel luta tudo o que pode contra participar da agressão; Rafael cede à pressão de Fábio e, no híbrido de remorso e nojo, acaba por jogar o corpo de Gisberta no fosso.
Ficção e realidade
“Gisberta Salce Júnior estava viva quando a atiraram no poço”, diz-nos o escritor que conta a história de Rafael Tiago, um tanto mais jovem que ele. O livro assemelha-se em muito ao material da pasta entregue por Rafael, um dia, na biblioteca de São Lázaro. O “Caso Gisberta” ganhou o mundo, revelou muito acerca do pensamento sobre transexuais, sobre a ausência de leis e direitos que lhes são necessários e urgentes. Revelou um pensamento que se estende da periferia do Porto a todos os lugares do mundo onde o pensamento sobre o corpo trans é de um comportamento de conspurcação e sujeira, encobrindo o ser humano que sofre a dor da discriminação e do abandono pela sociedade e pelo estado.
Gisberta despertou a atenção de artistas, jornalistas e escritores. Os 14 jovens da história original foram punidos de acordo com a idade e participação no crime. Hoje, encontram-se livres.
Há outras narrativas, canções, imagens, filmes e vozes. Afonso Reis Cabral aponta-nos para uma realidade tangível, vigente e composta — sedimento a sedimento — por uma sociedade marcada pela ausência de sentimentos como caridade, igualdade, fraternidade e a tão desejada liberdade de corpos e mentes.
Sombra do tempo
De acordo com Giorgio Agamben, o escritor contemporâneo é aquele que vê e retrata a sombra do seu tempo. Afonso Reis Cabral fez exatamente isso ao tomar como mote da sua escrita a história de Gisberta, infeliz resultado do nosso tempo.
O autor está associado à dita novíssima ficção portuguesa, formada por autores trabalham em suas escritas tanto assuntos relacionados à própria história portuguesa como temas universais e deslocados das fronteiras nacionais.
Ao final da narrativa, o autor coloca-nos uma pergunta: “Quem era afinal aquela mulher? E o que é que a sua morte deixou?”. Deixou-nos a sombra a ser descoberta e a necessidade de compreensão de um mundo repleto de variabilidades de comportamento e de escolhas. Deixou-nos, por fim, a própria realidade a ser entendida.