Karl-Heinz Timm morreu no dia 16 de outubro de 1943, aos 19 anos, em um hospital de campanha na Ucrânia, devido a graves ferimentos nas pernas durante uma batalha na Segunda Guerra Mundial. O jovem combatia pela Totenkopf, uma divisão de elite da SS nazista, na qual se alistou voluntariamente.
Pouco se sabe sobre ele — há apenas o relato frágil em termos factuais e extremamente forte em termos sentimentais, criado pelo seu irmão, 16 anos mais novo, o escritor Uwe Timm.
Originalmente publicado em 2003, À sombra de meu irmão — As marcas do nazismo e do pós-guerra na história de uma família alemã revisita registros da família e memórias para reconstruir não só a história do irmão, mas também a vida da família que viveu sob a sombra de um ente morto e de uma grande guerra que mudou muito da sociedade onde estavam.
Com uma diferença de idade relativamente grande, o contato dos dois irmãos foi muito breve — desse contato Uwe lembra apenas de uma brincadeira em que Karl-Heinz o levantava no ar. Ainda assim, a existência desse irmão, idealizado pela família nos anos após a sua morte, é uma presença intensa no cotidiano dos Timm. Apesar de não ficar claro, é possível crer que esse favoritismo é póstumo — o autor inclui memórias maternas da infância de Karl-Heinz em que o menino parece ser um tanto distante e diferente da família.
Assim, todas essas memórias são passíveis de muita alteração e expectativa. O que parece permanecer, principalmente para os pais, é uma imagem de tudo que ele poderia ter sido. E é essa imagem que cria expectativas nos pais para o resto da família — todos devem corresponder ao que o irmão mais velho se tornaria.
Por outro lado, para o autor, a reflexão mais forte é tentar chegar perto do que de fato foi o irmão — do que ele gostava ou não, como era sua personalidade, o que realmente fez durante a guerra.
Como o autor ainda era muito novo na época da guerra, suas memórias do período não são sobre política ou estratégias de combate, mas sim sobre a reação da família diante de tudo isso e o que mudou na vida deles durante a guerra. Uma memória com grande importância nesse aspecto é o momento da narrativa em que sua casa é bombardeada. O autor ainda era muito novo para lembrar deste momento, mas narra várias das memórias familiares. E sofreu todas as consequências de uma família que teve de reconstruir a vida e o lar.
Mesmo com o cenário árido e a ênfase de abordagem na relação com o irmão, Timm consegue relatar parte do cotidiano familiar que se mostra bastante universal: o desentendimento da irmã mais velha com os demais, a idealização dos entes já mortos e a distância de relacionamento entre os indivíduos. Nesse sentido, os problemas chegam a dar um parâmetro de normalidade à vida dessa família.
Outro tema que não foge da narrativa é a dificuldade de vida da população durante e após a guerra — dificuldade em conseguir alimentos e outros itens básicos, de voltar a trabalhar mesmo com a escassez de equipamentos ou matéria-prima e até dificuldade de aceitar as mudanças políticas e morais daquele tempo.
Escrita fragmentada
A narrativa é construída a partir de vários fragmentos — trechos do diário de Karl-Heinz, mandado para a família juntamente com outros pequenos pertences e uma carta que informava sua morte, cartas escritas por ele para diversos membros da família, memórias do próprio autor e até as lembranças de Uwe da memória de sua mãe ou irmã. Ao mesmo tempo em que recupera e reconstrói essas memórias, Timm parece descobrir muito sobre seu irmão e sua família.
Com esse jeito fragmentado, o autor parece não querer preencher todas as lacunas — tanto para manter alguma fidelidade com a factualidade (sem colocar então os trechos sobre os quais não tem nenhuma informação) como para se preservar de narrar lacunas que poderiam ser muito dolorosas para ele.
Uma das questões do livro é a tentativa de desvendar esse irmão que ele mal conheceu e contextualizá-lo durante o período da guerra — será que cometera grandes atrocidades? Para o autor, a curiosidade se funde com o medo em alguns momentos.
Para conseguir mostrar um pouco do que o irmão viveu na guerra, o autor mostra trechos dos diários dele. Breves e pouco descritivos, o diário mais parece um pequeno relatório que qualquer outra coisa. “Estamos prontos para entrar em ação. Alarme de prontidão às 9h30” foi a entrada para 14 de fevereiro de 1943. Do dia seguinte, sabemos apenas que o “Perigo passou, no aguardo”.
Mesmo que breves, esses comentários fornecem uma geografia para as paradas do batalhão e um clima geral, de como estavam sempre em tensão para que algo acontecesse.
Um outro aspecto interessante da narrativa é que o autor opta por contar essa história apenas depois da morte da mãe e da irmã. Ele é provavelmente uma das poucas pessoas ainda vivas a ter conhecido Karl-Heinz e, de certa forma, essa narrativa é tudo que sobra dele.
Para tentar entender tudo que aconteceu em sua própria família, é frequente também que o autor insira textos com reflexões próprias ou até de outros autores sobre esse período. Assim, outras perspectivas também são trazidas para a discussão, uma maneira de tentar compreender o incompreensível.
Sombra
A sombra do irmão na família se deu de várias formas: no caçula que, mesmo que o tenha conhecido muito pouco, conviveu com sua presença em memória diariamente, na dor da mãe que perdeu o filho, na família que fica desnorteada e até na sociedade que perdeu seus jovens.
Ainda assim, essa não é a única sombra do livro. As conclusões do livro não são claras para o leitor e pode-se concluir várias coisas desse mesmo relato. Existe, portanto, uma grande sombra sobre quem de fato foi esse irmão, o que ele fez, como ele era antes da guerra. Essas lacunas do texto não são falhas — elas apenas mostram como a realidade que conhecemos é frágil. Além disso, essa dúvida é comum até ao autor, que mesmo depois da investigação não conseguiu juntar todas as informações que queria.
Outra sombra do livro é o sentimento de culpa, que aparece em vários dos personagens em diferentes momentos. Um dos momentos mais interessantes nesse aspecto é quando ele fala sobre como seus pais, cidadãos alemães, lidaram com o sentimento de culpa pelas atrocidades da guerra. Há também o sentimento de culpa da mãe por nunca ter sido capaz de visitar o túmulo de seu filho. Vemos também a culpa de Uwe depois da morte da mãe.
Por fim, a sombra desse irmão na vida da família Timm é análoga à sombra que existiu em várias famílias daquele período: foram tantos os entes mortos e tantas as atrocidades de guerra que a culpa passou a ser um sentimento compartilhado por toda uma geração.