A solidão feminina

"O embranquecimento", de Evandro Cruz Silva, explora tensões identitárias e afetivas em meio a disputas sociais e simbólicas
Evandro Cruz Silva, autor de “O embranquecimento”
01/12/2025

“Você pode dizer que é trabalho, tudo bem” — diz o tio de Macária, a protagonista de O embranquecimento — “A gente te admira muito e tudo mais, mas você tem que ver que tem diferença, né”. O tio é cuidador de idoso, e passa “o dia inteiro limpando bunda de velho”. Já Macária, universitária, viajava a diversas cidades brasileiras ainda na graduação para participar de congressos: “essas mordomias de viver assim, estudando e viajando”, define o tio. Na carreira acadêmica bem-sucedida, Macária torna-se professora concursada. Isso a afasta da família e do bairro onde nasceu, “um teatro de comunhão”, do qual ela já não sabe se faz parte.

O embranquecimento é o processo social que essa jovem precisa atravessar para tornar-se quem é. Para viver como intelectual, Macária tem que se impor no mundo dos brancos. Filha de uma baiana e de um gaúcho, ambos migrantes em São Paulo, ela dedica sua inteligência a investigar o racismo, esforçando-se, ao mesmo tempo, por manter a própria identidade isenta das amarras raciais. Para a mãe e o namorado, ela é preta, com familiaridade e orgulho. Para o funcionário do registro civil, ela é parda. Para os colegas brancos na universidade, ela é a negra excepcional que deve ser bem tratada para aliviar a culpa dos privilegiados. E para si mesma? A narrativa acompanha a angústia de precisar responder a isso.

Macária é uma protagonista no limiar, em vários aspectos: cor da pele, classe social, repertório cultural, sexualidade. Na infância, enquanto as vizinhas gostavam de É o Tchan!, ela preferia Alanis Morissette. Dalva, sua mãe, é gregária; a filha escolhe morar sozinha numa quitinete. Na vida afetiva, a personagem tem dois amores: Alberto, pai de sua filha, um amigo que ela viu crescer, e Hannah, pesquisadora alemã que conheceu na universidade. A bissexualidade também se encontra em transição. Embora o trio conviva amigavelmente, Macária e Hannah moram juntas e têm planos de ir trabalhar na Alemanha. Alberto é contra a viagem: “não coloquei alguém no mundo pra ficar vendo de longe”. A protagonista é chamada para uma decisão.

O sentido de urgência se desenha a partir de uma perda: a história começa no funeral da mãe, Dalva. Macária volta antecipadamente de uma viagem profissional e, no velório, reencontra o pai, de quem ela se afastara havia anos. Dependente químico, esse “homem ruim” foi também a fonte dos conflitos entre mãe e filha. A morte de Dalva impõe aos sobreviventes a chance de reconciliação. Essa é outra decisão que Macária precisará enfrentar.

Essas pressões são condensadas num livro curto, que o autor hesita em chamar de romance. Uma “novela de estreia”, diz seu resumo biográfico. Nos agradecimentos, uma menção ao editor, “pela confiança incondicional na possibilidade de eu ser um escritor”. A última página do volume traz mais um gesto de cautela, uma justificativa sobre a escolha da protagonista. Diz o autor: “me interesso pela solidão feminina [e] não sei se consigo escrever sobre a minha”. Nota-se um cuidado de recém-chegado, tanto na literatura quanto na representação da mulher. Quando percebemos a maturidade da obra, tal cautela desperta uma resposta de carinho.

Não há relação de necessidade entre a identidade de um autor e a caracterização de seus personagens. Ao longo da vida, convivemos com todo tipo de gente, e um bom observador (e bom ouvinte) pode aprender o que quiser sobre quem o rodeia. Mas, como exercício de pensamento, nos perguntamos se escrever sobre o “oposto” é mais difícil que escrever sobre o “próximo”. No caso de O embranquecimento, a personagem Hannah (mulher, branca, alemã, lésbica) seria mais difícil de compor para um homem heterossexual negro brasileiro? Tal pergunta soa quase tola, mas vamos continuar na brincadeira: se a resposta for sim, é mais difícil, então a força da personagem Hannah daria a medida da qualidade do romance.

Hannah refere-se à pequena Maria, filha de Macária e Alberto, como “a criança”. Essa expressão agrada à protagonista, uma abstração desejável. Hannah é madrasta da menina, ou está incluída num trio coparental? Alberto se define: para ele, trata-se de “uma família preta”. Ele chama a relação entre as duas mulheres de um “negócio com a alemã”. Hannah teme estar sobrando: “às vezes fico com a impressão de que você deveria ficar com o Alberto e com a criança, e que eu estou no lugar errado, entende?” Nesse poliamor, a posição de Hannah é a mais frágil. Sua impotência em reivindicar o amor de Macária há de comover leitoras lésbicas, sensíveis à invisibilidade de suas relações.

Função alegórica
Ao mesmo tempo, o papel de Hannah tem função alegórica na narrativa, assim como todo o núcleo central do enredo. Macária é filha de mãe preta e pai branco e, como companheiros, escolhe um homem preto e uma mulher branca. Ela inverte a polaridade da descendência familiar: se Dalva tentou embranquecer a família, Macária reverterá o processo. Em sua pesquisa acadêmica, ela estuda a ideologia do embranquecimento no Brasil do 19 e, mais especificamente, sua representação visual na pintura A redenção de Cam, de Modesto Brocos. Macária imagina uma fotografia que simbolize a reparação histórica: na foto imaginária, Hannah substitui o homem branco, agente do embranquecimento. Hannah, a mulher sem filhos, inverte os papéis tradicionais de gênero; é um vértice necessário no novo triângulo, em que Alberto se tornará a “mãe”.

A alegoria é um elemento essencial de O embranquecimento — um livro muito pensado, assim como sua protagonista. O romance se compõe de muitas camadas: a superfície da história, a dinâmica alegórica das personagens, as referências à realidade histórica, a complexidade afetiva. Há também a opção estética de dar forma fluida ao conjunto complexo. Densa e refinada, a narração usa a língua de forma aparentemente simples, sem efeitos ostensivos de linguagem.

O autor conta, em entrevista ao Jornal da Orla, que o primeiro capítulo do livro surgiu das primeiras páginas escritas para o projeto. Nota-se o amadurecimento da linguagem entre o início e o final do volume. A imagem ambígua que encerra a narrativa é admirável e não será descrita aqui para não estragar a descoberta dos futuros leitores.

Um romance tão cuidadoso em seu simbolismo correria o risco de se tornar conceitual demais. O autor, entretanto, além da formação em Sociologia, tem forte intuição de ficcionista. Alguns dos capítulos mais vivos se desencaixam da armação alegórica, como o episódio de Douglas, o primeiro namorado, que Macária conheceu pelo Orkut. Os personagens têm pinceladas destoantes, que contribuem para o “efeito de realidade”: Hannah gosta da banda Os Tincoãs, Alberto se fantasia de Chapolin Colorado, Dalva gravava fitas K7 ouvindo a rádio Transamérica, Cláudio (o pai) fumava Derby azul. Detalhes banais — e por isso mesmo marcantes — dão um tom pop e trazem leveza à alegoria.

A voz de Macária tem uma ironia sutil nas situações de desconforto. Por exemplo, quando descreve suas colegas da universidade, “numa época em que o racismo era assunto da moda”:

Na sala de aula, as garotas brancas chegavam carregando ecobags com a frase “pele negra, máscaras brancas”, ilustrações de Angela Davis, o rosto de Carlos Marighella. Falavam de suas avós negras e parentes imemoriais, inverificáveis, mas certamente indígenas.

Na entrevista para o Jornal da Orla, o autor brinca que seu “único objetivo era que [suas] amigas não detestassem o livro”. Se as brincadeiras têm um fundo de verdade, tal declaração comprova que objetivos terrenos podem levar a grandes obras.

O embranquecimento
Evandro Cruz Silva
Patuá
184 págs.
Evandro Cruz Silva
Nasceu em São Vicente (SP), em 1992. Foi um dos vencedores do prêmio nacional de ensaísmo da revista serrote em 2020. Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, sua tese foi finalista do prêmio ANPOCS em 2024. Publicou o livro de contos Praia artificial (2021) e o folhetim A dor nas costas (2023). O embranquecimento, seu primeiro romance, foi contemplado pelo ProAC-SP em 2022.
Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

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