“Você pode dizer que é trabalho, tudo bem” — diz o tio de Macária, a protagonista de O embranquecimento — “A gente te admira muito e tudo mais, mas você tem que ver que tem diferença, né”. O tio é cuidador de idoso, e passa “o dia inteiro limpando bunda de velho”. Já Macária, universitária, viajava a diversas cidades brasileiras ainda na graduação para participar de congressos: “essas mordomias de viver assim, estudando e viajando”, define o tio. Na carreira acadêmica bem-sucedida, Macária torna-se professora concursada. Isso a afasta da família e do bairro onde nasceu, “um teatro de comunhão”, do qual ela já não sabe se faz parte.
O embranquecimento é o processo social que essa jovem precisa atravessar para tornar-se quem é. Para viver como intelectual, Macária tem que se impor no mundo dos brancos. Filha de uma baiana e de um gaúcho, ambos migrantes em São Paulo, ela dedica sua inteligência a investigar o racismo, esforçando-se, ao mesmo tempo, por manter a própria identidade isenta das amarras raciais. Para a mãe e o namorado, ela é preta, com familiaridade e orgulho. Para o funcionário do registro civil, ela é parda. Para os colegas brancos na universidade, ela é a negra excepcional que deve ser bem tratada para aliviar a culpa dos privilegiados. E para si mesma? A narrativa acompanha a angústia de precisar responder a isso.
Macária é uma protagonista no limiar, em vários aspectos: cor da pele, classe social, repertório cultural, sexualidade. Na infância, enquanto as vizinhas gostavam de É o Tchan!, ela preferia Alanis Morissette. Dalva, sua mãe, é gregária; a filha escolhe morar sozinha numa quitinete. Na vida afetiva, a personagem tem dois amores: Alberto, pai de sua filha, um amigo que ela viu crescer, e Hannah, pesquisadora alemã que conheceu na universidade. A bissexualidade também se encontra em transição. Embora o trio conviva amigavelmente, Macária e Hannah moram juntas e têm planos de ir trabalhar na Alemanha. Alberto é contra a viagem: “não coloquei alguém no mundo pra ficar vendo de longe”. A protagonista é chamada para uma decisão.
O sentido de urgência se desenha a partir de uma perda: a história começa no funeral da mãe, Dalva. Macária volta antecipadamente de uma viagem profissional e, no velório, reencontra o pai, de quem ela se afastara havia anos. Dependente químico, esse “homem ruim” foi também a fonte dos conflitos entre mãe e filha. A morte de Dalva impõe aos sobreviventes a chance de reconciliação. Essa é outra decisão que Macária precisará enfrentar.
Essas pressões são condensadas num livro curto, que o autor hesita em chamar de romance. Uma “novela de estreia”, diz seu resumo biográfico. Nos agradecimentos, uma menção ao editor, “pela confiança incondicional na possibilidade de eu ser um escritor”. A última página do volume traz mais um gesto de cautela, uma justificativa sobre a escolha da protagonista. Diz o autor: “me interesso pela solidão feminina [e] não sei se consigo escrever sobre a minha”. Nota-se um cuidado de recém-chegado, tanto na literatura quanto na representação da mulher. Quando percebemos a maturidade da obra, tal cautela desperta uma resposta de carinho.
Não há relação de necessidade entre a identidade de um autor e a caracterização de seus personagens. Ao longo da vida, convivemos com todo tipo de gente, e um bom observador (e bom ouvinte) pode aprender o que quiser sobre quem o rodeia. Mas, como exercício de pensamento, nos perguntamos se escrever sobre o “oposto” é mais difícil que escrever sobre o “próximo”. No caso de O embranquecimento, a personagem Hannah (mulher, branca, alemã, lésbica) seria mais difícil de compor para um homem heterossexual negro brasileiro? Tal pergunta soa quase tola, mas vamos continuar na brincadeira: se a resposta for sim, é mais difícil, então a força da personagem Hannah daria a medida da qualidade do romance.
Hannah refere-se à pequena Maria, filha de Macária e Alberto, como “a criança”. Essa expressão agrada à protagonista, uma abstração desejável. Hannah é madrasta da menina, ou está incluída num trio coparental? Alberto se define: para ele, trata-se de “uma família preta”. Ele chama a relação entre as duas mulheres de um “negócio com a alemã”. Hannah teme estar sobrando: “às vezes fico com a impressão de que você deveria ficar com o Alberto e com a criança, e que eu estou no lugar errado, entende?” Nesse poliamor, a posição de Hannah é a mais frágil. Sua impotência em reivindicar o amor de Macária há de comover leitoras lésbicas, sensíveis à invisibilidade de suas relações.
Função alegórica
Ao mesmo tempo, o papel de Hannah tem função alegórica na narrativa, assim como todo o núcleo central do enredo. Macária é filha de mãe preta e pai branco e, como companheiros, escolhe um homem preto e uma mulher branca. Ela inverte a polaridade da descendência familiar: se Dalva tentou embranquecer a família, Macária reverterá o processo. Em sua pesquisa acadêmica, ela estuda a ideologia do embranquecimento no Brasil do 19 e, mais especificamente, sua representação visual na pintura A redenção de Cam, de Modesto Brocos. Macária imagina uma fotografia que simbolize a reparação histórica: na foto imaginária, Hannah substitui o homem branco, agente do embranquecimento. Hannah, a mulher sem filhos, inverte os papéis tradicionais de gênero; é um vértice necessário no novo triângulo, em que Alberto se tornará a “mãe”.
A alegoria é um elemento essencial de O embranquecimento — um livro muito pensado, assim como sua protagonista. O romance se compõe de muitas camadas: a superfície da história, a dinâmica alegórica das personagens, as referências à realidade histórica, a complexidade afetiva. Há também a opção estética de dar forma fluida ao conjunto complexo. Densa e refinada, a narração usa a língua de forma aparentemente simples, sem efeitos ostensivos de linguagem.
O autor conta, em entrevista ao Jornal da Orla, que o primeiro capítulo do livro surgiu das primeiras páginas escritas para o projeto. Nota-se o amadurecimento da linguagem entre o início e o final do volume. A imagem ambígua que encerra a narrativa é admirável e não será descrita aqui para não estragar a descoberta dos futuros leitores.
Um romance tão cuidadoso em seu simbolismo correria o risco de se tornar conceitual demais. O autor, entretanto, além da formação em Sociologia, tem forte intuição de ficcionista. Alguns dos capítulos mais vivos se desencaixam da armação alegórica, como o episódio de Douglas, o primeiro namorado, que Macária conheceu pelo Orkut. Os personagens têm pinceladas destoantes, que contribuem para o “efeito de realidade”: Hannah gosta da banda Os Tincoãs, Alberto se fantasia de Chapolin Colorado, Dalva gravava fitas K7 ouvindo a rádio Transamérica, Cláudio (o pai) fumava Derby azul. Detalhes banais — e por isso mesmo marcantes — dão um tom pop e trazem leveza à alegoria.
A voz de Macária tem uma ironia sutil nas situações de desconforto. Por exemplo, quando descreve suas colegas da universidade, “numa época em que o racismo era assunto da moda”:
Na sala de aula, as garotas brancas chegavam carregando ecobags com a frase “pele negra, máscaras brancas”, ilustrações de Angela Davis, o rosto de Carlos Marighella. Falavam de suas avós negras e parentes imemoriais, inverificáveis, mas certamente indígenas.
Na entrevista para o Jornal da Orla, o autor brinca que seu “único objetivo era que [suas] amigas não detestassem o livro”. Se as brincadeiras têm um fundo de verdade, tal declaração comprova que objetivos terrenos podem levar a grandes obras.