Ganhador do Prêmio Fernando Namora (por unanimidade), Flores é a história de Manuel Ulme, homem já idoso, acometido por um aneurisma e que se preocupa em demasia com os problemas do mundo. As notícias dos jornais lhe tiram o sono, incomodam seus dias e ele acumula preocupações em relação à humanidade. Não sabe o que fazer e sente-se perturbado não poder fazer nada. Por causa do aneurisma, perde boa parte da memória: não lembra da infância, do primeiro beijo, de ter visto uma mulher nua. Traz consigo, no pescoço, uma chave presa a uma corrente prateada.
É da história de Ulme que emerge a própria história do narrador-protagonista: um jornalista, casado, pai de uma filha e infeliz com a vida. Da morte do pai, que inicia o romance, começam os pensamentos que o levam à figura do vizinho idoso e solitário. Clarisse e Beatriz — a esposa e a filha — representam uma relação quase sem gestos de amor ou diálogos. Três vidas solitárias compartilhadas na mesma casa. O cotidiano cada vez mais sobrecarregado pelo cansaço, pelo desalento e pelo apagamento do sonho e do desejo — “Tenho a certeza de que a vida morre com a rotina e não com a morte, e que o hábito nos petrifica (…)”, além de uma enxaqueca que era terrível (mas o alento era que, como exemplo, ele tinha Lewis Carroll que sofria também fortes dores de cabeça e que foi depois de uma crise que escreveu Alice no país das maravilhas).
Começa a pesquisar Manuel Ulme. Vai até a aldeia em que havia crescido, descobre personagens como Dona Eugênia, que tem boas lembranças do menino, ou o padre que não fala tão bem assim de Ulme. É então que conhece a história das irmãs Flores: Margarida (paixão de Manuel), Dália e Violeta.
Clarisse vai para a casa da mãe, acompanhada de Beatriz. Um homem tenta atropelar algumas vezes o senhor Ulme. O corpo dá sinais de cansaço e falta de cuidado — cresce uma barriga que esteticamente não lhe favorece. Samadhi, a jornalista conhecida que se torna uma amante de poucos encontros. O chapéu sobre a cama — superstição herdada do pai — que lhe causava um extremo desconforto, as conversas que eram universos ficcionais inteiros em frente ao espelho do banheiro, todos esses acontecimentos estavam agora nos dias do narrador que também não sentia mais o amor e o desejo do primeiro beijo dado em Clarisse — ambos eram incapazes de afetos genuínos e de repararem na beleza metida na rotina: “Toco levemente os lábios dela e sabe-me à rotina, às finanças, ao barulho da máquina de lavar roupa. Beijamo-nos como quem faz a cama”.
Degeneração
Das investigações do narrador e da proximidade com Ulme, nasce uma amizade, que se estende a Beatriz. Com o passar dos dias, Ulme descobre que tem degeneração de uma parte do cérebro, uma sequência de paralisias, que o levariam à morte: primeiro as pernas, a fala, os movimentos e sorriso, mas a cabeça sempre lúcida, mesmo sem recordar a infância, porém consciente, até o dia em que ele morreria.
Margarida Flores, a paixão da juventude, havia se tornado cantora de fado, vivera os anos do Salazarismo com medo e a fugir. Com a Revolução dos Cravos e a liberdade de expressão, encontrara uma nova vida. Julgava, por intermédio do que lhe havia dito a irmã, que Ulme a havia denunciado à polícia da época da ditadura. Trazia por ele um ódio tremendo. E por conta disso, havia contratado um ex-bombeiro para lhe servir de segurança — e que era o motorista responsável pelas tentativas de atropelamento de Ulme.
As corridas pela manhã não fizeram a barriga do protagonista diminuir, mas a vida começava a melhorar: voltara a falar com Clarisse e Beatriz — que agora passava alguns dias com ele; conseguira descobrir coisas sobre Ulme e conhecera Sara — a enfermeira que cuidava do vizinho. Embora os dias de Manuel fossem perdendo a força, compunham um cotidiano de convivência interessante.
O tempo se estreitava para Ulme, a vida se abria para o narrador. Um golem se escondia atrás da porta que a chave — pendurada na corrente prateada — abria. Era a criatura feita das tragédias do mundo, dos recortes de jornais e revistas que traziam as notícias que causavam a destruição do humano, do amor fraternal que deveria unir todos os homens e não separá-los.
“Entremos mais dentro da espessura”, diz o senhor Ulme o tempo todo: “Revelar-se o eterno no mundo, quando estas palavras são pronunciadas, a morte não existe”. Essa é a chave do romance de Afonso Cruz. Uma narrativa que se engendra a partir da crise de um relacionamento, da morte de um pai e da necessidade da memória como resgate da identidade. A memória perdida de Ulme também é a do narrador-protagonista. “Porque viver não tem nada a ver com isso que as pessoas fazem todos os dias, viver é precisamente o oposto, é aquilo que não fazemos todos os dias.”
A literatura produzida por Afonso Cruz é repleta de entrecruzamentos com a música, a arte, a filosofia e a história. Desses materiais o autor encontra a substância com que constrói suas personagens, arquiteta suas vidas e conjuga-as de um modo que se tornam tão próximas do real, tão humanamente possíveis. A poética de Afonso Cruz desenvolve-se em torno da memória, da construção que somos a partir dessa memória, coletiva e individual. Flores também é um livro que conversa com outras obras do autor, como A boneca de Kokoschka, e que apresenta a figura de Isaac Dresner, o menino judeu que se torna livreiro.
É preciso mesmo “entrar na espessura”, embrenhar-se no que somos para conhecer o outro. No silêncio do protagonista e na fala e memória de Ulme que se perdem, cria-se o diálogo com um universo de todos os homens do nosso tempo: a inquietação que nos resta diante da morte.