A solidão de cada um

Em "Meu nome é Lucy Barton", Elizabeth Strout aborda as dificuldades da relação entre mãe e filha e o peso das lembranças
Elizabeth Strout, autora de “Meu nome é Lucy Barton”
28/01/2017

Uma pequena complicação médica faz com que Lucy Barton fique internada por algumas semanas em um hospital de Manhattan. Longe da família há anos, ela se surpreende ao ver a mãe sentada ao seu lado, após alguns dias sozinha, já que o marido estava cuidando das duas filhas em casa. Esse reencontro, que dura cinco dias — tempo que a mãe, cujo nome não sabemos e referido apenas uma vez por M. —, é o gatilho para as diferentes reflexões que, baseadas nas lembranças que o encontro reaviva, conseguem despertar na personagem, mesmo anos depois.

Se as relações humanas já são terreno fértil para a literatura, a relação mãe e filha parece ser fonte inesgotável de inspiração. Muito abordada na literatura contemporânea principalmente por autoras, a maternidade como construção social possibilita diversos questionamentos acerca do papel da mulher na sociedade e do peso que essa relação parece imprimir, principalmente através das palavras, em cada uma delas.

A história é narrada em primeira pessoa a partir do futuro e com base na memória de um período de cinco dias por volta dos anos 1980, quando a narradora e protagonista relembra esse período de sua vida que ficou eminentemente marcado muito mais pelo encontro com a mãe do que por conta da doença e do próprio isolamento em um hospital. Apesar do enredo simples, já que tudo se desenvolve a partir desse evento — uma simples visita materna — é nas lembranças e reflexões que daí se sucedem, em diferentes camadas, seja sobre a infância pobre da narradora, seja sobre a solidão nessa busca de encontrar um lugar no mundo que sempre a acompanhou, que o romance ganha força.

Memórias da infância
A infância pobre e marcada por privações e ausência de afeto deixa marcas profundas na protagonista que relembra os dias em que ela e o irmão catavam comida no lixo do restaurante da cidade e contavam com a bondade de algumas pessoas, como o zelador da escola, que deixava Lucy estudar por lá depois das aulas para se livrar do frio. A escola, espaço no qual Lucy encontrava refúgio do frio e das condições insalubres em que vivia, representava também o caminho, por meio dos livros e dos estudos, para libertá-la. Assim, Lucy torna-se uma das melhores alunas da escola, chega à faculdade com o incentivo de uma professora e se distancia do destino que parecia fadada a percorrer. Os irmãos não conseguem o mesmo e a distância entre eles e Lucy passa a ser maior que a simples distância geográfica, no sentido de que agora já não mais compartilham vivências, olhares e perspectivas comuns.

Além das dificuldades econômicas que enfrentavam, o preconceito em relação à condição social da família era rotina na escola e nas ruas e marca a infância das crianças, pois os relegava a uma condição marginal e estigmatizada.

Ouvíamos das outras crianças no parquinho: “Sua família fede”, e elas saíam correndo apertando o nariz com os dedos; minha irmã ouviu de sua professora do segundo ano na frente da turma que ser pobre não era desculpa para ter sujeira atrás das orelhas, que ninguém era tão pobre que não pudesse comprar um sabonete.

Memórias da dor
Outras marcas do passado contribuem para maior tensão e violência no ambiente doméstico: o pai, que carrega os traumas dos dias vividos na guerra e expressa nos filhos as memórias dessa dor, sobre a qual silenciou. Alusões aos possíveis abusos vividos são feitas nesse percurso de memórias, mas também revelam que há lembranças que a personagem ainda não consegue verbalizar. O impacto dessa conjuntura na qual prevalece a opressão e a ausência de afeto torna-se evidente na forma como as relações entre mãe e filha são descritas: na incapacidade de verbalizar o amor, a menos que seja “quando você estiver de olhos fechados” e de conversar sobre episódios que tiveram grande peso para os membros da família.

Nos dias em que permanece com a filha no hospital, a mãe fala do passado de outras pessoas da cidade onde moravam, incapaz de identificar em suas próprias vivências e condutas o que reconhece abertamente nos outros. Ainda assim, para Lucy, a presença da mãe funciona como uma espécie de cura, um motivo de alegria independentemente do que a mãe estivesse dizendo, pois bastava a sua presença para trazer um alívio para a insônia e para a solidão. Sem muitas explicações, Lucy demonstra uma aceitação da maneira imperfeita de amar presente em suas relações com a mãe, afirmando que se trata de uma história de amor entre mãe e filha, cuja ausência após o falecimento da mãe será sempre sentida.

Nesse universo de isolamento e falta de afeto, os livros surgem como companhia para lidar com a solidão, além de uma oportunidade de conquistar mais conhecimento e trilhar um caminho diferente daquele percorrido pelos pais.

A escrita como libertação
Nesse universo de isolamento e falta de afeto, os livros surgem como companhia para lidar com a solidão, além de uma oportunidade de conquistar mais conhecimento e trilhar um caminho diferente daquele percorrido pelos pais. É na escola e com o incentivo da professora que Lucy aprende a gostar de ler e descobre o seu desejo de ser escritora, para que suas histórias também possam ajudar outras pessoas a lidar com a solidão.

Minha professora viu que eu adorava ler e me deu livros, inclusive livros para adultos, e eu lia todos. Depois, no ensino médio, continuei lendo quando terminava a lição de casa na escola quentinha. Mas os livros me traziam coisas. Essa é a minha questão. E eu pensava: vou escrever livros e as pessoas não vão se sentir tão sozinhas! (Mas era o meu segredo.)

O processo de tornar-se escritora, no entanto, só se dá mais tarde, e parece também derivar de um encontro: com a escritora Sarah Payne, com a qual a narradora estabelece uma identificação principalmente em relação à temática de seus livros — a origem pobre, as condições sociais de uma infância marcada por acontecimentos trágicos e privações — o que ressalta a importância da representação para abrir caminhos para novas perspectivas sociais na literatura.

Durante esses encontros em uma oficina de criação literária com a escritora, a narradora reflete sobre o próprio processo de criação do romance que temos em mãos, sobre a possibilidade de contar a sua história e também de superar uma ideia de ‘inferioridade’ sempre reforçada ao longo de sua vida pelo preconceito sofrido por conta de sua origem pobre ao se apropriar da palavra escrita, ao conseguir afirmar seu próprio nome e sua própria voz. A escrita, assim, é o caminho para se libertar dos sentimentos guardados e para conquistar seu espaço no mundo.

Ainda assim, eu gostava dos livros dela. Gosto de escritores que tentam dizer alguma coisa verdadeira para você. Eu também gostava do trabalho dela porque ela tinha crescido num decadente pomar de maçãs numa cidadezinha de New Hampshire, e porque ela escrevia sobre as regiões rurais desse estado, escrevia sobre as pessoas que trabalhavam duro e sofriam e que também eram surpreendidas por coisas boas. E então percebi que mesmo em seus livros ela não dizia realmente a verdade, estava sempre evitando algo. Pois se ela mal conseguia dizer seu nome! E senti que entendia isso também.

Essa afirmação do nome presente no título do romance pode ser também uma referência ao livro Mary Barton, primeiro romance de escritora inglesa Elizabeth Gaskell ambientado na cidade de Manchester, que retrata as dificuldades enfrentadas pela classe trabalhadora na era vitoriana. O conflito entre ricos e pobres, temática cara para Strout nesse romance, também é discutido por Gaskell. A única referência ao nome materno, M., que também é costureira como a Mary Barton do romance de Gaskell, evidencia essa referência.

Sem sentimentalismo, o romance retrata a relação mãe e filha com suas imperfeições e problematiza o impacto que eventos ocorridos na infância acarretam para a vida adulta, retratando a solidão que sentimos em nossa busca por um lugar no mundo onde há a possibilidade de verdadeiramente pertencermos.

Meu nome é Lucy Barton
Elizabeth Strout
Trad.: Sara Grünhagen
Companhia das letras
192 págs.
Elizabeth Strout
Nasceu em 1956, em Portland, Estados Unidos. Filha de professores universitários formou-se em inglês pelo Bates College e Direito pela Universidade de Syracuse. Recebeu o Prêmio Pulitzer de Ficção em 2009 pelo romance Olive Kitteridge (ainda não publicado no Brasil), e adaptado em minissérie pelo canal HBO.
Paula Dutra

É professora, tradutora e doutora em Literatura pela UnB.

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