A solidão das grandes cidades

Jimmy Liao dispensa o final feliz ao abordar um universo infanto-juvenil realista, porém sensível
Ilustração de “À esquerda, à direita”, de Jimmy Liao
01/02/2013

Acredito que houve uma época em que era mais fácil escrever sobre o universo infanto-juvenil. Talvez quando as crianças pudessem crescer meio soltas nas ruas, imaginando castelos, fortalezas ou florestas nos terrenos baldios, as aventuras fossem mais fáceis de serem criadas. O cachorrinho Samba, Éramos seis, Coleção Vaga-lume, até mesmo o Sítio do Pica-pau amarelo, o ícone de nossa literatura infantil, falam de um tempo que não existe mais. Como escrever sobre crianças que vivem confinadas por seus pais? Como falar da solidão que não é aplacada pelas multidões das grandes cidades? Como falar da impossibilidade de se comunicar, apesar de tantas ferramentas? Como falar do bullying sem parecer piegas ou querer dar lição de moral? É difícil. As crianças já não são mais inocentes como eram e já sofrem dos males dos adultos. Os jovens também.

Mas há quem consiga. O autor-ilustrador taiwanês Jimmy Liao, por exemplo. Com uma sensibilidade apuradíssima, Liao retrata a nova realidade das crianças e jovens de hoje. Uma realidade em que a cidade grande afasta as pessoas, não as aproxima. Em que os compromissos profissionais dos casados os separam uns dos outros e também de seus filhos, uma equação em que o único resultado é o isolamento. A Edições SM publicou no Brasil dois livros de Liao: À esquerda, à direitae Uma noite muito, muito estrelada, ambos traduzidos por Lin Jun e Cong Tangtang, em edições muito bonitas e bem cuidadas.

No primeiro, À esquerda, à direita, Liao fala de dois jovens que já moram sozinhos em uma cidade grande qualquer, vizinhos de parede, mas que, por uma única razão, não conseguem se encontrar: enquanto ele sempre sai para a direita quando deixa seu prédio, ela sai para a esquerda. A vida dos dois não é fácil e, sozinhos, vão lutando para tentar encontrar seu caminho, até que o acaso os une em um parque. Há uma conexão imediata entre eles e a promessa de um encontro futuro. Mas a sorte não os acompanha, e os telefones anotados no papel se desmancham na chuva após a despedida. Até o fim do livro, o que se vêem são os quase reencontros dos dois, a vida que vai se tornando mais pesada, a solidão que avança sobre suas existências. É um livro melancólico, mas que trata do tema do encontro impossível sem ser dramático. Liao é, apenas, realista.

Verdades simples e reais
Já em Uma noite muito, muito estrelada, a protagonista é uma menina que vive com seus pais hiperocupados, executivos importantes sempre ao telefone e sem tempo para ela. A menina tem muitas saudades do avô, que vivia no campo e que realmente dava atenção a ela. Novamente, Liao fala da solidão, mas do ponto de vista de uma menina. Ela não tem com quem falar do bullying que sofre na escola, por exemplo. Quando um aluno novo entra na escola e não se enturma, preferindo ficar em seu canto, ela reconhece-se nele. O acaso, de novo ele, coloca-os juntos um do outro, quando ela o defende de um ataque de outros meninos. A partir daí, nasce a possibilidade de não se sentir mais sozinho em um mundo que não os entende. Difícil não se emocionar com verdades simples, porém muito reais, que Liao coloca em seu texto.

Um dos pontos altos de ambos os livros é o casamento entre o texto e a imagem. Talvez, se alguém contar quantas palavras têm cada livro, serão poucas. Mas tudo o que não está escrito, está desenhado. E são desenhos muito bonitos. Em Uma noite, por exemplo, Magritte e Van Gogh inspiram muitas passagens do livro. Há momentos em que palavra alguma é escrita, por desnecessária, as imagens dão conta do recado. Em outros, são as palavras que sustentam o argumento, com parcimônia. Não há nada em excesso em nenhum livro. E, por não dar nome a nenhuma cidade e nenhum personagem, as tramas de Liao podem acontecer em qualquer lugar. Há uma melancolia profunda em ambos os trabalhos, mas há também esperança. Ainda que o final possa não ser o que queremos (ou o final feliz que imaginamos em um livro infanto-juvenil), saímos de cada trabalho maiores do que entramos, e com um pouco mais de fé na possibilidade de que possa haver algum encontro, em algum lugar.

À esquerda, à direita
Jimmy Liao
Ilustrações: Jimmy Liao
Trad.: Lin Jun e Cong Tangtang
Edições SM
132 págs.
Uma noite muito, muito estrelada
Jimmy Liao
Ilustrações: Jimmy Liao
Trad.: Lin Jun e Cong Tangtang
Edições SM
144 págs.
Jimmy Liao
Nasceu em Taiwan, em 1958. Após se formar em Belas-Artes, atuou em empresas de publicidade por doze anos até tornar-se ilustrador e escritor em tempo integral. Em 1988, lançou seus primeiros álbuns ilustrados. Liao é um dos autores-ilustradores mais populares da Ásia, com livros publicados nos Estados Unidos, França, Alemanha, Espanha e Japão, e adaptados para cinema, televisão, teatro e animação.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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