Qual é a função primeira de se contar uma história? Educar o leitor e o espectador para o deleite de contemplarem corretamente o mundo ao seu redor? Será que ela permite que a existência humana tenha uma solução? Ou será que essa solução estaria nesta mesma história que nos ajuda a criar nossas próprias narrativas, falsificando a vida em função de uma ilusão sobre a verdade jamais alcançada?
Essas eram as perguntas que assombravam Nic Pizzolatto quando ele começou a entrar nesse negócio esquisito chamado “a arte de escrever”. Mas havia algo que não engrenava. Apesar de ter tido dois contos publicados nas prestigiadas revistas Harper’s Magazine e Esquire e de ter lançado seu romance de estreia, o noir Galveston — no fundo, uma meditação emocionante sobre perda e redenção —, ele sentia que não explorara todas as possibilidades do meio narrativo. Além disso, precisava pagar as contas da casa. Então, abandonou a literatura e decidiu que investiria na confecção de roteiros para a televisão — mais especificamente, as séries de TV que ainda faziam parte da chamada “Era de Ouro”.
Mesmo assim, por mais que conseguisse vagas interessantes no mercado — como ser roteirista de um episódio da aclamada série The Killing —, sempre existia aquele comichão que o voltava ao início: Qual era a função primeira de se contar uma história? Foi quando começou a imaginar uma trama policial, com dois investigadores, um obcecado pelo niilismo, o outro completamente destituído de preocupações metafísicas, e mortes terríveis que envolviam algum tipo de culto satânico. Pouco a pouco, ao imaginar que seria mais um romance, escreveu um primeiro capítulo e ficou satisfeito com o resultado. Convencido do seu valor, mostrou-o a seu agente, que, por sua vez, conseguiu que enviasse uma cópia do texto ao ator Matthew McConaughey. Este sentiu imediatamente que tinha uma chance única nas mãos e pediu ao canal HBO que financiasse o projeto como uma minissérie televisiva.
Único autor
E assim nasceu True detective, uma série de antologia de oito episódios, em que cada temporada conta uma história com começo, meio e fim, feita sem a preocupação com arcos dramáticos (ou seja, enredos estendidos por vários capítulos) que precisam de um longo tempo para se completar. O que a tornava diferente dos demais produtos da TV americana era o fato de que, ao contrário das colaborações sofisticadas das séries de David Chase, David Milch, Matthew Weiner, David Simon, Vince Gilligan, George R. R. Martin, David Benioff e Dan Weiss, todos os episódios foram escritos pessoalmente por Nic Pizzolatto, sem nenhum auxílio, sem nenhuma parceria. Somente o jovem escritor, esculpindo detalhe por detalhe da saga dos policiais Rusty Cohle e Martin Hart (interpretados respectivamente por McConaughey e Woody Harrelson, ambos em estado de graça).
Ocorre que Pizzolatto não era o único nesse tipo de empreitada solitária. Na Inglaterra, havia também um outro sujeito, mais velho, mais experiente e mais tarimbado tanto na arte literária quanto no mercado de roteiros, e que resolveu contar a história de uma família de aristocratas, os Crawley, impelidos a atravessar o início tormentoso do século 20, com o surgimento da Primeira Guerra Mundial, para prevalecer na sua dignidade sem perder a excelência que sempre os guiou. Julian Fellowes é o seu nome e ele está por trás de um dos maiores fenômenos da televisão europeia — a série Downton Abbey. Inspirado por toda uma tradição britânica de autores clássicos, como Henry James, Evelyn Waugh, P. G. Wodehouse, Jane Austen e Anthony Powell, somado às fórmulas dos folhetins de jornal, Downton Abbey foi escrita e produzida integralmente pelo próprio Fellowes com o mesmo tipo de carinho solitário que Pizzolatto teve por True detective.
Aparentemente, as duas histórias nada têm em comum. Uma é um policial noir, com toques góticos, nitidamente influenciada pelo ambiente religioso de Flannery O’Connor, pela sensualidade mórbida de William Faulkner, pelo pessimismo cósmico de H. P. Lovecraft e pelo niilismo aterrorizante de Thomas Ligotti; e enquanto a outra é temperada com a sofisticação temática de um Waugh, o romantismo agridoce de Austen e a observação social perspicaz que não deixa nada a dever a um Edmund Burke ou a um Walter Bagehot, dois dos comentaristas políticos mais prudentes da Inglaterra. Mas o fato desses escritores terem se dedicado, de maneira obsessiva e na contracorrente do nosso zeitgeist, um considerável tempo de suas vidas na fabulação dessas tramas, mostra que ambos captaram como poucos o verdadeiro tema que preocupa qualquer um dedicado a esse ofício de sombras que se tornou a criação literária.
Eis o tema: pouco importa o que aconteça, o ser humano é acossado permanentemente por forças diabólicas ou forças angélicas — e ele é obrigado a tomar uma decisão moral, entre a vida e a morte, para defender o que a filósofa Iris Murdoch chamava de “a soberania do Bem”. Dividido pela luz e pela escuridão, não há outra maneira dele escapar desse impasse exceto pelo ato de contar uma história sobre a sua própria vida — isto é, a criação de uma narrativa que organize o caos em sua volta e o faça prosseguir sem perder um átimo da vida interior que o fundamenta.
Discurso niilista
Em True detective, Pizzolatto mostra esse drama na pessoa de Rusty Cohle, um policial que perdeu o filho em um trágico acidente e, consequentemente, também perdeu a esposa e qualquer espécie de sentido existencial. Pulando de investigação em investigação, ele justifica suas atitudes mais canalhas em função de um discurso niilista, no qual a natureza humana é reduzida a impulsos mecânicos e a possibilidade de encontrar alguma bondade fica devastada por um cinismo que, no fundo, esconde uma sensibilidade delicada que estava soterrada há muito tempo na sua alma. Ao fazer parceria com Marty Hart, inveterado mulherengo que vê as coisas do mundo com um pragmatismo alucinado, eles enfrentam um crime monstruoso que pode ter implicações cósmicas e satânicas, ramificado por todo o estado da Lousiana. Entre um ponto e outro desta travessia, Nic Pizzolatto costura habilmente o arco dramático da sua série, ao mostrar o desenvolvimento emocional e espiritual desses dois homens, pois ambos terão de aceitar, mesmo que seja de maneira dolorosa, “a soberania do Bem”, e assim não caiam para sempre no abismo construído por eles mesmos.
Já em Downton Abbey, Julian Fellowes leva ao extremo uma ideia encontrada apenas em germe no roteiro que escreveu para o filme Assassinato em Gosford Park (2001), de Robert Altman: a decadência da aristocracia está proporcionalmente relacionada a uma decadência dos valores morais? Se, na película de Altman, a resposta era um “sim” irônico, na série de TV que seria concebida integralmente por Fellowes, agora temos o inverso da proposta. Não, os verdadeiros aristocratas jamais podem se rebaixar diante da decadência espiritual do Ocidente porque eles são os únicos que conseguem se adaptar à altura do desafio de viver os tempos modernos. Dessa forma, ele faz o inverso de qualquer análise marxista reducionista: coloca em uma mesma casa tanto os patrões como os empregados e mostra que não há qualquer espécie de “luta de classes”. Muito pelo contrário: as duas castas vivem em absoluta harmonia orgânica, talvez com uma tensão aqui e outra acolá — mas, no fim os estratos sempre entram em uma cooperação mútua, naquela busca pelo Bem Comum que enfim faz qualquer governo funcionar.
A diferença entre as duas séries é que Pizzolatto preferiu ousar na estrutura da trama policial, adicionando efeitos de perspectiva temporal à la Faulkner, com flashbacks, flash forwards e dois pontos de vista narrativos que se contradizem o tempo todo; enquanto Fellowes optou pelo esquema clássico de se contar uma história, imitando no tom sóbrio tudo o que aquilo que Edith Wharton (aliás, sua influência maior para Downton Abbey) ensinava: moderação e contenção em busca do calor mais genuíno. De resto, o sucesso de ambos os dramas se dá exclusivamente por causa do entendimento que os dois escritores tiveram do uso da literatura como fundamento maior para uma narrativa sofisticada e ao mesmo tempo popular, que respeita o espectador em sua inteligência e o faz se envolver em cada episódio como se tivesse vivendo o fluxo do tempo de maneira completamente diferente — o tempo de leitura que nos damos ao saborear um capítulo de um grande romance.
Pouco importa o que aconteça, o ser humano é acossado permanentemente por forças diabólicas ou forças angélicas — e ele é obrigado a tomar uma decisão moral, entre a vida e a morte, para defender o que a filósofa Iris Murdoch chamava de “a soberania do Bem”.
Entre luz e escuridão
É claro que há uma hierarquia que deve ser observada com afinco: uma coisa é literatura; a outra são produtos derivados como o cinema e as séries de TV. A primeira é uma experiência que estimula a interioridade; a segunda atiça, em sua maioria, os sentidos da visão e da audição, mas também permite um diálogo frutífero entre a imagem e a palavra escrita. Contudo, há um fundo comum em ambos os meios — e ele é justamente o impulso de se contar uma história para superar a aparente dualidade que há entre a luz e a escuridão. No nosso mundo moderno, onde a regra parece ser o “estado de exceção” meditado por Giorgio Agamben (e dramatizado brilhantemente por David Simon e Ed Burns em The wire) ou a “corrosão do caráter” de um Walter White, a falsificação da vida vira uma narrativa paralela, construindo uma espécie de “Segunda Realidade” que deve ser completamente rompida pelos verdadeiros escritores, independentemente do gênero em que trabalham. E aqui está o sentido no ato de se contar uma história: destruir a solidão dos nossos mundos particulares e mostrar o espanto que envolve nossas míseras existências.
O problema está no momento em que, num meio que depende da colaboração (como é o da televisão ou o cinema), o escritor decide que, por causa do sucesso anterior, somente ele tem o controle da sua própria criação. Nic Pizzolatto caiu nesta armadilha. Após o triunfo que foi a primeira temporada de True detective, o jovem romancista meteu na cabeça que ele tinha sido o único responsável por tudo o que aconteceu. Esqueceu-se, por exemplo, da parceria com o cineasta Cary Joji Fukunaga, um rapaz talentoso que deu uma concretude precisa às suas palavras, sem ter medo de fazer referências cinematográficas que vão do David Lynch de Twin peaks à primeira obra-prima de Andrei Tarkovski, A infância de Ivan; ou então começou a se importar com as críticas absolutamente infundadas a respeito de uma suposta “misoginia” — e não percebeu que sua própria história discorria sobre algo mais profundo: nada mais nada menos que a salvação da alma de cada um de nós.
Ao se iludir pela repercussão da própria obra, Pizzolatto cometeu um erro grosseiro: brigou com Fukunaga e resolveu fazer a segunda temporada de True detective do seu jeito. O resultado foi um completo desastre. Apesar de ter começado de forma brilhante, a continuação da antologia derrapou no decorrer dos novos oito episódios, transformando a evidente influência de James Ellroy em uma trama que não se resolvia, com personagens que pareciam estar em busca de uma danação artificial e que não espelhavam mais a inquietude obtida por Pizzolatto no início da carreira — a de que criar uma história servia para nós perseverarmos na “soberania do Bem”. No fim, tivemos um produto confuso, talvez de inegável talento, mas que não cumpria as expectativas prometidas.
Mescla hábil
Felizmente, Julian Fellowes não teve o mesmo destino com a parte final de seu Downton Abbey. Ele conseguiu mesclar habilmente tanto a característica de folhetim da sua trama como a subversão temática dos temas de sua preferência — na evidente predileção pela aristocracia como norte moral das demais classes sociais e, além disso, na maneira como ela se adapta mais facilmente e molda as outras pessoas no meio das revoluções políticas e culturais.
Nesse quesito, Fellowes mostra o seu ás na manga por meio de dois personagens aparentemente marginais à narrativa, mas reveladoras da sua visão de mundo. O primeiro seria o chofer irlandês Tom Branson, que entra na trama como o típico revolucionário romântico e, ao casar com Sybil, uma das filhas dos Crawleys (rapidamente falecida nas temporadas seguintes), percebe pouco a pouco que aquela família de nobres talvez não seja tão nefasta como pensa. No final da série, torna-se um deles, incorporando suas virtudes e entendendo, antes de tudo, que suas ilusões socialistas são valores ultrapassados. E o segundo é o mordomo Thomas Barrow, a princípio descrito como alguém nefasto, dissimulado e, como se não bastasse, homossexual — mas que, com o passar do tempo, amolece em sua maldade, aprendendo a dominar suas paixões e seus ódios e enfim entende que, para ser aceito pela sociedade, bastava apenas entender a si mesmo.
Com esses dois sujeitos, Fellowes faz o oposto de Pizzolatto. Ele se recusa a aceitar as críticas de uma mídia progressista (e que alegava que o seu show era deveras “elitista”) e, muito sutilmente, consegue subverter os tópicos do folhetim para afirmar exatamente no que acredita: a de que a busca pela excelência é a única meta digna de todos nós — e não há problema nenhum em aceitar a modernidade, pois é justamente isso o que um bom aristocrata, seja da classe dos patrões ou dos empregados, deve fazer o tempo todo. A vida tem seus obstáculos, mas não precisa ser uma tragédia do início ao fim. As pessoas, no fundo, querem fazer o bem — e a maldade talvez seja uma exceção passageira.
Ou então não é nada disso, como sói de acontecer com qualquer um que ousa compreender o enigma da soberania do Bem. Talvez sejamos vítimas indefesas na luta entre a luz e a escuridão, como dizia Rusty Cohle na cena final de True detective, e por alguns instantes a luz teve sua frágil vitória. Neste ofício de sombras e de solidão que é a arte de narrar, a única coisa importante para o verdadeiro escritor é saber que as estrelas no céu sempre serão fundamentais. O resto é apenas ruído.