A síntese do poeta

“Dever”, de Armando Freitas Filho, celebra cinquenta anos de sua produção poética
Ilustração: Armando Freitas Filho por Dê Almeida
01/10/2014

Dever oferece uma boa mostra da obra poética de Armando Freitas Filho. Nele, o rigor da forma e a capacidade de síntese estão intimamente vinculados à efusão de um sujeito lírico determinado a fazer da expressão de sua condição humana — frágil por excelência — o seu ofício. Nesse sentido, qualquer aspecto da leitura desses poemas pode ser de rica experiência, assim como deter-nos apenas em um deles empobrece suas possibilidades. A obra é, portanto, daquelas para serem não apenas lidas, mas relidas sob diferentes ângulos; mantida não na estante, mas na mesa de cabeceira.

Do ponto de vista das influências, não precisamos de grande acuidade para encontrar as referências do poeta. As citações estão presentes tanto nas entrelinhas da releitura intertextual quanto nas dedicatórias explícitas que Freitas Filho utiliza, mais para reverenciar do que questionar seus mestres. Família de letras é um bom exemplo: “Machado puxa o fio/ da sua caligrafia/ até que a mão de Graciliano/ o alcance, deixando-o/ então, com Carlos Drummond”. Os três autores, com Antonio Candido e João Cabral, citados no mesmo poema, através do fio puxado por Machado, estão bem unidos, “(…) na mesma linhagem/ com a linha do seu novelo”. Seu novelo carrega expressiva ambiguidade. Afinal, do novelo de quem pode se estar falando? De quem começa puxando o fio, como Machado? De Cabral, que o recebe das mãos de Antonio Candido? Ou será do próprio Armando Freitas Filho, que se inclui na mesma linhagem, apesar da humildade que lhe é peculiar?

João Guimarães Rosa, Ana Cristina Cesar e Manuel Bandeira repetem-se (ou se distribuem) pelo livro. Dentre os elementos em comum dessa família encontra-se a singularidade com que cada um se inscreve na tradição poética brasileira. Assim, a busca de afinidades na perspectiva do estudo de influências é uma abordagem inútil, já que, por si só, não revela a obra em suas sutilezas e originalidades. Além disso, não apenas aos consagrados autores o poeta credita sua aprendizagem: pai, avô, mãe, esposa, filho, neto e amigos — literatos ou não — também são reverenciados nas dedicatórias ou nos próprios poemas. Tudo indica que sua aprendizagem com as obras artísticas e com a obra-vida complementa-se de maneira simbiótica. Referindo-se a Drummond, professa: “Tirar o peso da influência/ da fluência do seu corpo/ sobre o meu. Abrir o corpo/ pelo menos, e penar/ sob sua sombra, para depois/ tentar abrir um corpo de luz”. É assim que se propõe a abrir um corpo de luz própria, a partir de tantos outros que contribuíram, mas pesam sobre o conjunto de sua obra. Ouvindo as vozes dos outros — mestres, familiares e amigos —, Armando Freitas Filho descobriu e ampliou sua própria voz.

Substantivo
Da linhagem moderna, o poeta aprendeu a suprimir a obsessão pela pontuação prosaica, considerando que o ritmo e a musicalidade dos poemas já estabelecem as pausas e os silêncios necessários para sentirmos o prazer e os incômodos da recepção estética. Aprendeu também que a poesia é a arte da síntese por excelência, extraindo do mínimo de palavras o máximo de expressividade. Este é um artesão, ourives, operário da poesia, e a reconhece como matéria bruta a ser extraída e lapidada, livre de adjetivações inúteis e excessos. O produto final pode ser um poema sintético em sua substantiva versão, mas é produto de um processo, de um jogo repetitivo, do garimpo de sobras, da reciclagem do que foi lixo para outros poemas, anteriormente escritos. É dessa maneira que na sua metapoética afirma: “Acumulo, guardo o jogo repetitivo/ e indigesto na mão, mas não descarto/ o resto que não se resolveu/ Peso morto, inútil, no entanto/ substantivo, sujo, subjetivo”.

Daí ser tão forte o que muitos críticos chamam de “substantividade” de sua poética. Há uma concretude que se realiza nas suas imagens e na maneira como lida com as coisas mais simples do cotidiano, que povoam tanto o presente quanto as reminiscências de um tempo passado. É importante atentar para o valor simbólico com que esses substantivos concretos formam a subjetividade do sujeito lírico, por tratar-se de pontos de vista de uma humanidade latente, através da voz de um sujeito em constante reflexão.

Memória e sentido
O poema Guarda-chuva & pasta remete a uma memória afetiva para falar de uma abstrata saudade e das marcas do passado no presente concreto — através de um gosto esquisito na boca e de uma pasta. “Tanto tempo corrido e a evocação/ que ficou na boca tem gosto/ de cabo de guarda-chuva/ e na mão, a lembrança/ é a do calor da sua mão na alça da pasta.” O tempo passado traz para o presente o gosto desagradável das ressacas e o calor da mão na alça da pasta, tão concretos na lembrança e, ao mesmo tempo, tão perdidos depois dos anos transcorridos.

A primeira parte de Dever, Suíte, é dedicada predominantemente à memória, em uma nova abordagem e em continuidade a Lar, (2009), que se detinha na memória de elementos da casa, do ambiente familiar. Ou seja, mantém o mesmo eixo temático, sob novos enfoques. Os objetos ganham vida e tratamento subjetivo a partir das simbologias ou alegorias que se constroem. O relógio e o tempo têm íntima relação nesse processo. Em Tempo perdido, “O relógio do pai/ desenterrado, automático/ funciona depois de anos/ inerte, inútil/ (…) Tão difícil mantê-lo vivo”. No poema seguinte, Ômega, o relógio parado, sem uso, também lembra o pai e a finitude do homem.

O corpo, esse substantivo sujo, se faz presente tanto nas relíquias da lembrança de Suíte quanto nas duas outras partes, Anexos e Numeral. O corpo dos poemas — vivo, com todos os sentidos apurados — e da tradição que pesa e alimenta essa poética negociam sentidos com o corpo morto dos entes queridos, agora recriados e vivos através da memória e da linguagem. Em Minha mãe, “Ao abrir a caixa de madeira lavrada/ a asa secreta do seu perfume/ voltou a voar, e eu esperei que você/ entrasse, ou os meus sentidos esperavam”. O tato acaricia a caixa de madeira ao abri-la; um novo sentido percebe o seu perfume e suscita o desejo de uma visão mais forte, capaz de trazê-la de volta ao filho saudoso que, contudo, deve se curvar ao inexorável destino. “A caixa de madeira lavrada, onde os anéis/ do dia, da vida e o perfume guardavam/ está aqui — mas os dedos se foram.”

A negociação de sentidos se dá, portanto, em vários níveis e em várias direções, no jogo repetitivo de temas e de problemas suscitados entre a vida e a morte, entre ruídos e silêncios, entre o corpo individual do sujeito e o corpo coletivo da cidade — do mundo, do sistema de crenças, dos sonhos de eternidade frente à finitude da condição humana que nos caracteriza e, que, em última instância, nos possibilita a expressão e recepção poéticas.

Em trânsito
Em Anexo, o poeta percorre variados temas. Parece se ater mais ao olhar de um sujeito observador das ruas e do corpo social em movimento, que se descortina em suas belezas e crueldades. É assim que, em Despertador, anuncia o tempo presente: “Primeiro risco do dia/ a linha de cimento/ do maciço da cidade.// A imundice da morte/ a minúcia de seu ataque/ ao corpo em trânsito”.

Fala-se de um tempo estampado nos noticiários com terror e violência, ressaltando com delicadeza a humanidade brutal de um personagem ligado à realidade de uma nação perplexa. “Belo, Bruno, bronzeado pela cor e pelo sol ardente” é o ídolo decaído de uma “espasmódica, torcida”. Esporte, crime, sujeito de mãos sujas de sangue invisível que tinge e atinge os habitantes — nem sempre inocentes — da cidade. Os ruídos, cheiros e imagens urbanos atravessam as ruas e os poemas, desde os latidos de cães nas noites de insônia até as vertigens da morte dos meninos na Candelária. “Na ilha do asfalto/ cercada pelo tráfego/ marcada pela cruz/ a isca dos corpos/ marchetados na calçada.” Os suicídios anunciados na “morte que vinha a prazo” da poeta amiga e de tantos outros ilustres desconhecidos são edifícios de lembranças carregadas por rios de esquecimento. É assim que, “No meio do impossível, do signo/ o rio passa, parado, paradoxal”.

Numeral, a terceira parte do livro, é formada por fragmentos numerados nos quais o poeta persegue as mesmas obsessões temáticas e formais. O poema 115 assim descreve o projeto: “Numeral é volume sem volume/ Embora longo será sempre breve/ Um número um numerado/ em inúmeros, num instante”. Funciona como um “motocontínuo poético”, em continuidade a um livro anterior (em Dever, inicia-se no 101), e promete prosseguir “na carona de outros livros” que virão, até que “de repente, parará”. Nesse sentido, anuncia sutilmente a morte de uma série que se desejaria infinita, mas que como a vida tem “um dia longe, ou um dia perto”, para na “data certa de um desastre” ter sua interrupção assegurada.

Contudo, a tentativa de agrupar por temas ou problemáticas cada bloco deste livro é, provavelmente, apenas um recurso de estruturação. A discussão do fazer poético é, sem dúvida, o fio condutor que unifica as três partes e sua diversidade de abordagens. Ao mesmo tempo, é o que estabelece o laço dos poemas entre si e o permanente diálogo do sujeito lírico com seus leitores. “Componho para além do fôlego/ da folha, para fora do papel.// (…) Componho/ para frente, onde o leitor, se forma/ no espaço e lê, e leva o que possuiu.”

No mais, é só nos abrirmos para essa troca inumerável de experiências, até quando (“um dia longe, ou um dia perto”) esse privilégio não for mais possível. No meio tempo, mãos à obra.

Dever

Armando Freitas Filho
Companhia das Letras
168 págs.
Armando Freitas Filho
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1940, e estreou na poesia em 1963. Foi pesquisador na Fundação Casa de Rui Barbosa e na Fundação Biblioteca Nacional, secretário da Câmara de Artes no Conselho Federal de Cultura e assessor do Instituto Nacional do Livro no Rio de Janeiro e do gabinete da presidência da Funarte. É autor de Palavra, 3×4 (Prêmio Jabuti, 1986) e Fio terra (Prêmio Biblioteca Nacional, 2000), entre outros livros. Reuniu sua obra poética em Máquina de escrever (2003).
Vilma Costa

É professora de literatura.

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