Em 1981, como agora, o leitor de Sibilitz não sabe o que tem em mãos. Se ali encontra fábulas sem moral, poemas entre o espanto e o riso, pequenas histórias desconexas, se ali encontra personagens e antipersonagens que têm e trocam as propriedades da natureza, dos animais, das coisas, se ali encontra, enfim, prosa de estranha sintaxe, poesia de metro infatigável e ilustrações de Ricardo Reis que parecem recriar os textos, em uma mistura de diálogo e disputa pela narrativa, tal leitor tem, enfim, diante de si, uma tarefa impossível para o pensamento. É precisamente deste não saber que depende a experiência do texto de Leonardo Fróes.
Saudado, com o tempo, como um livro experimental, dentro da obra já experimental de Fróes — que, até ali, 1981, segundo alguns comentadores, não havia optado por uma voz, por um estilo (pois, para a história ingênua da literatura, os estilos são a qualidade do fazer do escritor) — Sibilitz é, certamente, uma coisa estranha. Não é por acaso que um jovem escritor neodadaista, Reuben da Rocha, celebrou o “coração radical” de Fróes, que originou um “livro das lâminas de um instante tal de intensidade vida arte prática 1981 no meio da saída da cidade sua ida para o mato onde (ele disse) poderia esculpir com mais afinco”.
Em entrevista a Fabrício Carpinejar, Fróes declarou que antes da mudança da cidade para a serra “falava de ‘labirintos de argamassa’, de ‘ruas entupidas’, de angústias e vivências urbanas. Passei, aqui, a falar do que me cerca, de bichos e plantas, de morros e estradas”. A formulação mais interessante (e menos mitificada) desse movimento é a do crítico Luiz Guilherme Barbosa, que afirma que, no poema A poesia e a matança dos mosquitos, do Anjo tigrado (1975, livro que antecede Sibilitz), o leitor lê, de fato, “a máquina que se esconde no mato, uma forma de vida”. O poema homônimo do mesmo livro termina com a confissão-promessa: “um dia cismei/ (…) fui pro mato/ de onde só sairei como um tigre.” Este é, certamente, o movimento da poesia de Fróes desde então. No mesmo poema, despedia-se ainda da multidão, petrificada em forma de retratos. No entanto, a arquitetura ambígua de seus escritos, em torno da multidão e da solidão — que sempre lhe emprestou o que havia de mais forte em seus primeiros livros (e possibilitou versos arquetípicos, como “E todos em si nos somos/ qual forma que se reparte/ e é uma: a laranja e os gomos”, em Vida comum, de 1969) — não se desfaz facilmente. Sibilitz, considerado por muitos como ponto de inflexão, guarda ainda essa secreta presença da multidão; tem ainda o ritmo acelerado, que diminuiria aos poucos com os livros subsequentes. A transformação em animal na montanha (como aparece no documentário de Gabriela Capper, Sérgio Cohn e Alberto Pucheu, 34 anos depois de Sibilitz) viria com calma, com o trabalho de casulo que representou a ida para o sítio (que o poeta considera hoje a sua principal obra, erguida com suas próprias mãos, das paredes às árvores).
A multiplicação
A multidão, no entanto, agora é outra, e exerce uma função diferente. Antes era algo a ser vencido; depois, força produtora de imagens. A multiplicação é tema corrente no livro, como no primeiro poema-fábula, O desdobre das bonecas, que narra a história das mulheres-miniatura que surgem do corpo de Ecila e ganham, aos poucos, características eróticas ou sentimentais. Já no poema Arroz de olhos a multidão se revela nitidamente:
As pessoas então estão voando encantadas, não convém estacionar sentimentos, é inútil querer sugar numa esquina os rostos provisórios, apenas o movimento contínuo se estabelece.
O mesmo poema anuncia a conversão da multidão, de tema para forma interna dos textos: “O que existe nessa hora não são corpos tangíveis, é um monte fenomenal de areia elétrica que vaza em sucessivas cortinas e jamais se deposita numa construção exclusiva”. Da mesma forma, o tema da solidão, irremediavelmente ligado ao da multidão, como no célebre poema em prosa de Charles Baudelaire, se transforma em forma interna, e gera produtos como Afanasy Nikitin, “um homem completamente vento”, cuja via solitária o tornou inidentificável: “Era por isso impraticável dar uma conformação ao seu rosto”. Essa solidão, no entanto, perdeu a função negativa que tinha nos livros anteriores, de desencaixe infeliz, para produzir afetos mais alegres: “Dizem que assim ele passou por numerosos países (…) não era um super-homem. Mas comia bem, dormia bem, olhava muitas coisas ao longo do dia, com atenção e curiosidade”. Mais do que personagens felizes, a partir daí a alegria da solidão será uma máquina analógica em Fróes.
É por isso que o poeta Ricardo Domeneck ressaltou os “momentos de grande força imagética, de uma poesia fanopaica, quase surreal”. Referia-se, então, às três dimensões poundianas da poesia: a qualidade sonora, a capacidade de criação imagética e a formulação de ideias ou pensamento (melopeia, fanopeia e logopeia). Histórias algo orientais envolvendo um burro falante que opta pela mudez diante da multidão, deformações, nas coisas e nas pessoas, que se transformam em bichos e outros seres, um herói que assiste ao e participa do espetáculo da transmutação das letras e o perspectivismo que achata e torna normal um mesmo sapo — tudo isso é matéria quase cinematográfica de Fróes, é claro. No entanto, a sua capacidade fanopaica está a serviço de uma força maior de sua poesia, a de formulação de pensamento.
o que eu chamo de deus é bem mais vasto
e às vezes muito menos complexo
que o que eu chamo de deus. Um dia
foi uma casa de marimbondos na chuva
Justificação de Deus é uma projeção do eixo fanopaico sobre o logopaico. Isto é, uma produção imagética com conteúdo sintático, que a eleva à condição de pensamento. No documentário citado, Fróes afirma não ver diferenças tão grandes entre o trabalho do filósofo e o do poeta; isso aclara as coisas. A faculdade imaginativa, nos seus poemas, renuncia ao excentrismo barato da mera diferenciação aparente, para se tornar o modo pelo qual o pensamento realiza as suas experiências significativas.
As vantagens deste processo para o pensamento são enormes: a imaginação se duplica, no eixo textual e no das aparições, que interferem umas nas outras, o que se manifesta na frequência do recurso à paronomásia e à aliteração, ou ainda, como percebe Domeneck, no encavalamento de sintagmas. Esses versos parecem falar da relação, em sua poesia, da razão lógica com o pensamento analógico: “nos intervalos é que está a centelha/ que acende por exemplo entre duas caras se olhando”.
Na antiguidade, o espanto foi compreendido como a atitude originária da filosofia. Sibilitz é a encarnação textual dessa atitude. Em Fróes, ela origina um conúbio entre as formas do pensamento. O poema Tîe-sangue o eterniza na forma de um pássaro:
existe uma infinita uma fita imensurável, a quinta
pérola do alfabeto dentário do Cadmo plantando palavras
numa brincadeira atônita
de dizer que existem o Infinito e a Água.
um tiê-sangue bem bonito suspirado parando
como a atingir na ponta-do-galho o Momento Extremo