Para Milan Kundera, o termo que melhor pode definir romance é, certamente, ambigüidade. Com efeito, em sua antologia de ensaios e entrevistas sobre literatura A arte do romance, ele afirma:
Compreender com Cervantes o mundo como ambigüidade, ter que afrontar, ao invés de uma só verdade absoluta, um monte de verdades relativas que se contradizem (verdades incorporadas em egos imaginários chamados personagens), possuir portanto como única certeza a sabedoria da incerteza exige uma força não menos grande.
À vontade inerente ao homem de julgar antes de compreender, vontade sobre a qual se fundam as religiões e as ideologias que reduzem a compreensão do universo a fórmulas maniqueístas e dogmáticas, o romance responde com a relatividade essencial das coisas humanas. Ele propõe um tipo de reflexão que se traduz como sabedoria da incerteza, capaz de confrontar a implacável necessidade humana de ler o mundo sob o prisma do bem ou do mal, como se fossem entidades nitidamente discerníveis. Assim é que, exemplifica o autor, essa forma de concepção induz a reducionismos: “é sempre necessário que alguém tenha razão: ou Ana Karenina é vítima de um déspota obtuso ou então Karenin é vítima de uma mulher imoral; ou K., inocente, é esmagado pelo tribunal injusto, ou então atrás do tribunal se esconde a justiça divina e K. é culpado”. Ao que poderíamos acrescentar a famosa polêmica ao redor da personagem Capitu de Machado de Assis: ou Capitu traiu Bentinho e é culpada ou tudo não passou de elucubrações da mente atormentada do narrador e a ré é inocente.
No fundo, forjamos um estar sempre diante de um imenso tribunal que nós mesmos criamos e no qual imperam os veredictos dos que, com o dedo em riste, julgam, ao pé da letra, a lei da alternância do ou isto ou aquilo, e não exercitam o dom abrangente da compreensão.
Daí porque os totalitarismos jamais podem se conciliar com o espírito do romance, cuja base reside na interrogação e na complexidade.
Para Kundera, ao aprendermos a exercitar esse dom, entraremos em contato com o que só o romance nos pode oferecer: a liberdade e a leveza de estar no mundo, iluminados pelo riso de Deus, que é o que retira o peso da gravidade que nos prende racionalmente ao chão.
Abaixo os agelastes
Contra a severidade extremada do “penso, logo existo” cartesiano o romancista checo retoma um interessante neologismo de François Rabelais, a palavra agelaste, do grego “aquele que não tem senso de humor”. Tal como o brilhante autor de Gargântua e Pantagruel, Kundera teme os agelastes, já que não existe paz possível entre eles e o romancista:
Não tendo nunca ouvido o riso de Deus, os agelastes são convencidos de que a verdade é clara, de que todos os homens devem pensar a mesma coisa e que eles mesmos são exatamente aquilo que pensam ser. Mas é precisamente ao perder a certeza da verdade e o consentimento unânime dos outros que o homem torna-se indivíduo. O romance é o paraíso imaginário dos indivíduos. É o território em que ninguém é dono da verdade, nem Ana nem Karenin, mas em que todos têm o direito de ser compreendidos, tanto Ana como Karenin.
Melhor dizendo, a falta de capacidade de compreender o mundo por meio da relativização da verdade gera a homogeneização que só aceita o igual ou parecido, vetando o que seria a rica experiência de assimilar o diverso, rechaçando as idiossincrasias individuais.
Dissonância necessária
Justamente porque escapa ao senso comum, alargando os processos de apreensão da realidade, o romance cria a dissonância. Esta é, inclusive, uma das características constitutivas que, segundo o autor, não permitirão que ele pereça.
De fato, em tempos como os nossos, em que se fala em “crise do romance”, em que se diz que “o romance morreu”, Kundera reverte a questão ao afirmar que não é que esse gênero literário esteja no fim de suas forças, mas que se tem esforçado para encontrar lugar num mundo que não é mais o seu. E acrescenta que se a razão de ser do romance é manter “o mundo da vida sob uma iluminação perpétua e nos proteger contra o esquecimento do ser”, então sua existência, hoje, é mais do que necessária.
O espírito do romance, que é de complexidade, se contrapõe ao espírito comum da mídia que caracteriza o nosso tempo. O problema se agrava uma vez que toda cultura, de modo geral, encontra-se nas mãos da mídia que, como agente de unificação planetária, amplifica e canaliza o processo de redução. De fato, ela tem o poder de distribuir no mundo inteiro os mesmos clichês e simplificações suscetíveis de serem aceitos pelo maior número, por todos, pela humanidade inteira.
O coração das coisas
Uma possível reação a esse processo de uniformização é criar uma espécie de despojamento, indo direto ao “coração das coisas”.
Nesse caso, Kundera toma o exemplo do músico que tanto admira: Leos Janacek, que fugiu das regras “cibernéticas” da composição, em que a originalidade perece em detrimento de esquemas preconcebidos.
O que Janacek ensina é que somente a nota que diz alguma coisa de essencial tem o direito de existir. Esse ensinamento também deve se aplicar ao romance, para que sobreviva em meio ao atravancamento criado pela “técnica”, pelas convenções que trabalham em lugar do autor. Em resumo, é imperativo desembaraçar o romance do automatismo da técnica romanesca.
Da leveza
Quanto mais o homem pensa, mais a verdade lhe escapa. Daí porque a sabedoria do romance seja diferente da sabedoria da filosofia.
Ao enaltecer a arte de Rabelais, Kundera revela o que lhe é mais admirável: o fato de que sua vasta erudição nunca franze o cenho, já que nesse autor temos a exemplificação mais fidedigna de que o romance nasce não do espírito teórico, mas do espírito do humor.
O que pode conciliar a seriedade das profundas questões existenciais humanas com esse espírito é a forma da leveza, pois a arte inspirada pelo riso de Deus é, em essência, não tributária, mas contraditória das certezas ideológicas.
Não parece ser outra a fonte na qual se nutre o autor de A insustentável leveza do ser ou de Risíveis amores, que, mesmo quando se propõe a teorizar sobre seu ofício, busca argumentos claros e uma tal leveza que o leitor dos textos desta antologia mal se dá conta de estar entrando em contato com famosos paradigmas das chamada “teoria da literatura”.
A obra, dividida em sete partes, trata de conceituar o romance, lançando mão de artifícios que vão desde a constatação desse universo de incertezas, a partir da análise de Cervantes até a leitura atenta de Os sonâmbulos de Herman Broch, passando por lições de composição musical — que teriam interferido em toda a produção do romancista — até um denso capítulo dedicado a Kafka. Finaliza com um pequeno dicionário de verbetes de 64 palavras, chaves de entrada para a compreensão do universo ficcional.
Em todos, inclusive, diante dos temas mais exigentes, tais como os da arte da composição e da tradução, respiramos a leveza, no tom com que desfilam diante de nós os mais variados assuntos que povoam os estudos literários.
Desse modo, Kundera põe em prática uma de suas crenças fundamentais, não só como ficcionista, mas também como ensaísta, nessa exímia capacidade de refletir sobre o fazer literário: a da harmoniosa convivência entre a erudição e o leve riso dos que não precisam asseverar verdades, mas sim ancorar-se em incertezas:
Unir a extrema gravidade da questão e a extrema leveza da forma é minha ambição desde sempre. E não se trata de uma ambição puramente artística. A união de uma forma frívola e de um assunto grave desvenda nossos dramas (os que se passam em nossas camas assim como os que representamos no grande palco da história) em sua terrível insignificância.
Explorador da existência
Ao tratar da imagem do romancista, o autor esclarece que este é, acima de tudo, um explorador da existência e não um historiador ou um profeta.
Ao definir o romance como o gênero literário que se dedica a examinar não a realidade, mas a existência — na perspectiva heideggeriana de “ser-no-mundo” —, Kundera crê que o romancista toque de perto o campo das possibilidades humanas, tudo aquilo de que o homem é capaz, tudo aquilo em que pode se tornar.
Nesse sentido, tece crítica ferrenha contra alguns escritores que se deixam fascinar pela estética “massmidiática”, aparecendo e se projetando mais do que suas próprias obras. Retoma de Flaubert a idéia de que “o romancista é aquele que quer desaparecer atrás de sua obra”, o que significa renunciar ao papel de homem público:
Não é fácil hoje, quando tudo que é muito ou pouco importante deve passar pelo palco insuportavelmente iluminado dos mass mídia que, contrariamente à intenção de Flaubert, faz desaparecer a obra atrás da imagem de seu autor. Nesta situação, da qual ninguém pode escapar inteiramente, a observação de Flaubert me parece quase uma advertência: prestando-se ao papel de homem público, o romancista põe em perigo sua obra que corre o risco de ser considerada como um simples apêndice de seus gestos, de suas declarações, de seus pontos de vista. Ora, o romancista não é o porta-voz de ninguém e vou levar esta afirmação até dizer que ele não é nem mesmo o porta-voz de suas próprias idéias.
Em tempos em que tudo se espetaculariza — como já percebera G. Debord —, de fato, a imagem do ficcionista tornou-se demasiadamente pública. Basta que lembremos, por exemplo, do grande espetáculo em que se têm transformado muitos dos eventos e feiras de livros. Até os mais renomados e famosos escritores, hoje, mais do que em outros tempos, precisam “dar o ar de sua graça”, acompanhando uma estratégia de marketing em que, para verem suas obras vendidas, precisam seguir a lei do mercado que exige deles ampla exposição pública.
O risco é que, no mundo super carregado de imagens, a excessiva luminosidade acabe por ofuscar a obra em detrimento da aparição de seu autor, que também sofre um significativo desgaste, uma vez que tudo que é muito visto, em pouquíssimo tempo, é posto de lado, assim como o resto de um universo em que as coisas e os seres, simplesmente, se descartam.
O espanto de Kafka
Entre todos os nomes admirados e analisados por Kundera, a maior reverência é a destinada a Franz Kafka.
Ele o considera como uma verdadeira revolução estética, pois o que o torna único é que ele não se pergunta — como os demais — quais são as motivações interiores que determinam o comportamento do homem. O tipo de pergunta que faz é radicalmente outro:
Quais são ainda as possibilidades do homem num mundo em que as determinantes exteriores tornaram-se tão esmagadoras que as causas interiores não pesam mais nada?
Esse espanto de Kafka diante da opressão das ciladas do mundo externo assemelha-se ao que, de modo análogo, afirma o autor checo em A insutentável leveza do ser: o romance não é uma confissão do autor, mas uma exploração do que é a vida humana, na armadilha em que se transformou o mundo.
Em Kafka, essa armadilha tem nome: o universo burocratizado. O escritório, nesse sentido, não aparece como um fenômeno social entre outros, mas como a essência do mundo. E o mundo que oprime é aquele em que se abolem as fronteiras entre o público e o particular.
Talvez aí esteja a chave de compreensão do universo kafkiano, que toca de perto o problema da violação da intimidade, em que as duas esferas da vida, a íntima e a pública, se espelham.
Riso de Deus
A sétima parte desta antologia encerra o livro com o discurso proferido por Kundera, por ocasião do recebimento do Prêmio Jerusalém em 1985.
A partir do aprendizado que o autor nos proporciona, concluímos, lançando mão de uma sua poética afirmação, extraída do provérbio judaico O homem pensa, Deus ri:
Agrada-me pensar que a arte do romance veio ao mundo como o eco do riso de Deus.
Em tempos apocalípticos como os nossos, de fim das utopias e morte da arte, ao menos há ainda quem acredite no romance como uma pincelada de vibrante leveza, na tela opaca das mesmices e superficialidades cotidianas.