Já amadurecido, Wolfgang escuta que nunca estará em casa. Este espaço de pertencimento, para o narrador de Os órfãos, é o passado. A sentença define a tônica do romance de Bessora, escritora de tripla cidadania: gabonesa, suíça e francesa. Wolfgang está preso em 1948, ano em que ele e sua irmã gêmea Barbara são levados à Cidade do Cabo. Órfãos alemães da Segunda Guerra Mundial, os irmãos integram um grupo de 83 crianças, selecionadas para um programa de caridade que visa a adoção destes por africâneres — sul-africanos brancos descendentes de europeus.
A iniciativa não esconde as afinidades com o nazismo, uma vez que objetiva embranquecer a África do Sul com o sangue ariano. No âmbito nacional, o país africano debatia-se com o apartheid — política de segregação racial que se alastrou até a década de 1990. O panorama oferece uma âncora histórica à narrativa de Sandrine Bessora Nan Nguema; que assina simplesmente como Bessora.
De modo mais próximo, Os órfãos é apoiado na vida dos irmãos gêmeos Peter e Brigit Ammermann. O livro é dedicado a Peter e sua esposa Rabia. Uma foto dos irmãos — duas crianças, no dia do embarque para a África do Sul — ilustra a capa do romance.
Na narrativa, Wolfgang e Barbara são adotados por Michèle, de ascendência francesa, e Lothar, descendente de alemães. A menina, em primeiro momento, tenta agradar aos pais adotivos, enquanto Wolfgang permanece esquivo. Logo, as afinidades do casal com a hegemonia branca são evidentes. Eles vivem na fazenda Terre’Blanche, que pertence ao pai de Michèle, Jacob. Com a demora do casal em oferecer um herdeiro, a adoção torna-se uma alternativa para satisfazer esta necessidade. Ao arranjo da propriedade, junta-se Graça, a ama de leite de Michèle e seu filho, Thando, que se torna melhor amigo de Wolfgang.
Rejeitada por Jacob desde o nascimento, que culminou na morte da mãe, a dura Michèle não mede esforços para agradar ao pai. Lothar mantém um caso extraconjugal, além das insinuações de que ele assedia Barbara sexualmente. A vida dos gêmeos em Terre’Blanche torna-se turbulenta, de modo que Wolfgang traça planos que os permitam voltar à Alemanha. A trajetória dos irmãos é entrecortada por vislumbres da situação de um Wolfgang idoso, que agoniza no hospital após ser baleado na cabeça.
Arbitrariedade
A arbitrariedade da classificação racial — que reside no âmago do apartheid — é evidenciada quando, na adolescência, uma namorada de Wolfgang deixa de ser considerada branca, sendo remanejada para uma escola exclusiva para “pessoas de cor”. Com este episódio, Wolfgang, reprodutor do discurso de que fora enviado à África porque os africâneres “não têm como substituir sozinhos os negros”, começa a repelir efetivamente os ideais de hegemonia racial.
De modo inesperado, Michèle engravida, o que a torna mais fria com relação aos gêmeos. O nascimento de Wilhelm, contudo, marca mais um desequilíbrio. Mais pendido para o lado dos irmãos do que ao dos pais, o filho biológico desafia o casal. É com ele que uma traição do passado é revelada. O golpe é demais para Jacob. Tomado pela cólera, a mente do homem torna-se perturbada. Antes, entretanto, ele denuncia o neto para as estritas normas do apartheid.
As origens de Wilhelm são reveladas por meio de um ritual do povo zulu. “Eis Wilhelm encontrando-se a si mesmo”, percebe Wolfgang. Anos antes, o narrador passa pelo mesmo rito, no qual tem um vislumbre de Frieda, a sua mãe. Na África do Sul, os vínculos mais íntimos de Wolfgang são com aqueles que a hegemonia branca busca eliminar O narrador alia-se às pessoas repelidas pelos supremacistas, que enviaram crianças como ele e a irmã para “embranquecer o país”.
Tanto Wolfgang quanto Barbara cometem uma subversão: eles não produzem uma nova leva de africâneres com sangue ariano. O narrador tem dois casamentos. Da união com Frances, cantora de origem judia, nasce Rosie. O vínculo se dissolve quando, em busca do passado irrecuperável, Wolfgang retorna à Alemanha. Lá, ele reencontra Heidi, paixão dos tempos da infância, passada no orfanato.
Já o segundo casamento de Wolfgang é duradouro. Com Arya, advogada islâmica, ele tem Marianne. Em uma reviravolta, descobrimos que a mulher é aparentada com Michèle. Inicialmente, Arya planeja reivindicar a casa do avô, tomada por Jacob. Mas, a união com Wolfgang é sincera. Os órfãos revela, assim, uma eletrizante narrativa, repleta de segredos familiares que evidenciam as contradições do apartheid sul-africano.
Barbara encontra conforto em Samora, filho de Thando; criança para quem a sua atenção é voltada. Ela revela a Wolfgang o relacionamento falido com uma colega de faculdade. Barbara se preocupa, afinal, a homossexualidade era crime na África do Sul. Do matrimônio heterossexual com um antigo colega, ela dá à luz um feto natimorto, símbolo das falidas pretensões hegemônicas. Assim como ocorre com Wolfgang, a sua subjetividade é um desafio à normatividade esperada do “sangue ariano”.
Quando uma tragédia se abate sobre Terre’Blanche, Thando é preso injustamente, acusado pelo depoimento de Michèle. As tensões retratadas no livro alcançam o ponto máximo. O aparente equilíbrio das estruturas que regem a sociedade sul-africana, condensado no microcosmo da fazenda, é rompido. As disfunções estruturais, contudo, são destacadas por Bessora desde a chegada dos gêmeos.
Entrelaçamento de vozes
O episódio em Terre’Blanche revela um dos mais notáveis aspectos formais do livro: o entrelaçamento de vozes narrativas. Embora Wolfgang seja o narrador, podemos ouvir os sussurros de Barbara. É ela, via carta, que narra a violência ocorrida na fazenda. Se em primeiro momento, esta resenha se concentra no conteúdo do romance, é porque a narrativa de Bessora tem reviravoltas surpreendentes.
A autora olha para as instabilidades, o que é evidenciado pelo retrato dos momentos de crise de Wolfgang. Em coma, são estes episódios que ele recorda, em profundo diálogo com o que há de mais entranhado nele: a irmã gêmea. Uma vez que Barbara divide o mesmo passado — e os mesmos genes — que Wolfgang, ela é o estandarte do tempo perdido que o narrador busca incessantemente.
Mas é em seu aspecto formal que o livro chega à potência de sua originalidade. Não é arriscado dizer que Os órfãos é um dos romances mais originais que chegaram ao Brasil nos últimos tempos. Os capítulos, entrecortados por flashes difusos, traduzem esteticamente os lapsos da memória de Wolfgang — os momentos marcantes que constituem uma vida. Assim, Bessora cumpre a realização artística: a integração entre forma e conteúdo
Os órfãos revela, acima de tudo, as contradições no cerne de ideologias supremacistas. No romance, os personagens encontram vizinhanças, e até mesmo familiaridade, naquilo que repelem. Da mesma forma, o ódio irrompe as relações de afeto. Esfumaçar essas categorias resvala na alteridade, com um profundo questionamento de políticas nefastas como o nazismo e o apartheid.
O que está em jogo é a identidade. Wolfgang e Barbara são vítimas dessas políticas. Os gêmeos passam a vida tentando encontrar um espaço de pertencimento. Possibilidades de subjetividade foram retiradas dos irmãos, submetidos à vontade do apartheid — em gesto semelhante ao que ocorre com grupos oprimidos. De maneira simbólica, Wolfgang é baleado em seu aniversário, também o centenário imaginado de Nelson Mandela, principal voz contra o regime de segregação da África do Sul. Wolfgang escuta, comovido, que é a hora de expurgar as suas culpas: ele não é uma representação do nazismo ou do apartheid.
Os órfãos é uma realização. Na obra, Bessora combina um episódio histórico pouco explorado na literatura e uma narrativa repleta de reviravoltas. A escritora parte de um drama familiar, o microcosmo de Terre’Blanche, para tocar as feridas da África do Sul pós-Segunda Guerra Mundial. Contudo, o livro não causaria tamanho impacto, não fosse a forma encontrada por Bessora, que traduz esteticamente a desorientação no centro do romance. Os diferentes elementos narrativos d’Os órfãos confluem para seu êxito. Uma realização artística.da no peito delas.