O crescimento da cidade de São Paulo se fez com a segregação espacial entre pobres e ricos. Nada muito diferente do resto do país. Os palacetes foram ocupando o alto das colinas, lugares mais secos, arejados e iluminados, sobrando para os pobres as terras baixas, úmidas e pantanosas. Com a chegada dos imigrantes, as vilas operárias passaram a seguir padrões regulados pelo Código Sanitário e se inaugurou um novo capítulo da história da urbanização da cidade. Mas, no início do século 20, era possível andar pelo centro sem avistar casebres, habitações coletivas ou cortiços.
Gente rica convida o leitor para um passeio por esse espaço físico e social da cidade, especialmente as ruas 15 de Novembro, São Bento e Direita, com suas praças, cinemas, cafés, teatros, bares e restaurantes — lugares dos ricos, nos quais fervilhava a vida cultural das elites do estado. A sensação é a de que o narrador caminha ao lado do leitor e o entretém com sua voz bem-humorada, contando histórias que satirizam a elite abastada local.
Publicado originalmente em 1912, o romance critica os modos de vida urbano no início mesmo da urbanização da cidade, num país ainda predominantemente agrícola. São Paulo estava conhecendo o progresso econômico com o ciclo do café, mas sem a elegância e a pompa do Rio de Janeiro, capital do país.
Esse é o contexto em que o livro é escrito: início da urbanização e do processo industrial com a formação do proletariado e da classe média. Contudo, pelo recorte temático e a localização, a incipiente classe média e o operariado não fazem parte da história. O período precede a Segunda Guerra Mundial, quando São Paulo ainda era conhecida como “metrópole do café” ou “capital dos fazendeiros”.
Dez anos depois da publicação da obra, em 1922 (impossível passar por essa data sem evocar a Semana de Arte Moderna), a cidade tinha cerca de 580 mil habitantes, dos quais 240 mil eram analfabetos. Segundo o historiador Elias Saliba, São Paulo já tinha uma imprensa irreverente (O Pirralho, por exemplo), mas os livros eram praticamente cariocas, e os pouquíssimos publicados em São Paulo não chegavam a ter projeção “nacional”. Os escritores valorizavam uma boa história, com começo, meio e fim, e contada com bom humor, características que posteriormente a vanguarda modernista de 1922 irá rechaçar e demolir.
Forma e personagens
Gente rica tem a estrutura de pequenas crônicas que se estendem na forma de um romance por 21 capítulos. Alguns escritos num tom mais teatral ou anedótico, outros bem descritivos ou com muitos diálogos. Nesse sentido, não há equilíbrio nem consistência formais e o livro também pode ser lido como um folhetim.
Os personagens são tipos sociais caricaturais da elite e do nacionalismo paulista, que exaltam a galhardia dos fazendeiros bravos e corajosos, capazes de definir o que é progresso para o Brasil, assim como o preço que ele impõe e que todos estão dispostos a pagar.
Os diálogos, no formato de uma prosa antiga, trazem alguns comentários sobre pobres negros e mulheres que podem ser tachados atualmente de, no mínimo, preconceituosos. Referência aos pretos: “preguiçosos e loucos por cachaça”. Referência às mulheres: “há dois tipos de mulher, as verticais e as horizontais (que se deitam com homens)”.
Escrito na terceira pessoa do singular, com um narrador muito próximo do protagonista Juvenal Leme, o livro traz uma sucessão de “causos”, desses que se ouvia, até meio século atrás, saindo naturalmente da boca de avós e bisavós.
Juvenal Leme, presente em todos os capítulos, nasceu na capital de São Paulo, numa família próxima ao poder desde o Império. Escreve para jornais com o pseudônimo de Juvenal Paulista. Tem aproximadamente trinta anos e é solteiro. Orgulha-se de ser descendente de Bandeirantes e atribui aos paulistas o mérito pela abolição da escravatura e a formação da república federativa.
Leiva, um homem feio e pobre, chega em São Paulo com a ambição de subir na vida. Anos depois, com o diploma de engenharia, conquista a filha de um rico cafeicultor. Diferentemente dos amigos, ele se considera um self-made man e critica o “filhotismo” que vê espalhado por todo canto, mas defende o mérito inquestionável dos bacharéis. Com a ajuda do sogro, elege-se prefeito no interior e ambiciona uma carreira política mais robusta na capital do país.
Futuro do Brasil
A reunião para a criação de uma sociedade talvez seja a parte do livro onde os tipos sociais da elite paulistana sejam melhor caracterizados. São treze homens “escolhidos a dedo”, ávidos por levar vantagem em tudo. São fazendeiros latifundiários, profissionais liberais, industriais incipientes e, sobretudo, herdeiros. Homens ricos querendo ser ainda mais ricos, e que nasceram sabendo o modo certeiro de alçar tal intento: por meio de herança ou do casamento.
Na reunião para a criação da sociedade mútua (pensão de vinte anos e um pecúlio por morte), todos os presentes acreditam que São Paulo será o futuro do Brasil. A discussão sobre o projeto se inicia com uma menção de um clamor popular nas ruas contra a carestia e com a escassez de casas de aluguel, ambas consequências do progresso. O progresso impõe seu preço como um imperativo inevitável e os presentes o aceitam com enorme naturalidade.
Dentre os homens presentes na reunião se destacam: o médico próspero de São Paulo, com teorias mirabolantes sobre o poder saltitante das pulgas; o herdeiro de uma das mais sólidas fortunas de São Paulo, que evitava ostentações porque não era suficientemente bonito nem inteligente; um empresário que foi obrigado a se casar com sua credora rica (imposição dela, economicamente vantajosa para ambos); um imigrante italiano já enriquecido, casado com uma mulher pobre, mas bonita e fogosa, usada por ele para angariar privilégios e a proteção de um político a seus negócios; um jornalista que vende suas opiniões; e, como não poderia faltar, um coronel.
Gente muito rica, geralmente com filhos medíocres, falastrões e galanteadores. A maioria de inteligência média, segundo o narrador, mas formuladores de altas teorias como, por exemplo, sobre a originalidade dos povos como o principal atributo de uma grande nação, pois a imitação resultou na falência moral de todos os impérios.
Tentativas de sedução e adultério ocupam a segunda parte do livro. Mas a mulher assediada, uma atriz, manda enviar à mulher do assediador a jóia que ele lhe mandara na expectativa de um encontro erótico. Especialmente nessa parte se observa uma malícia típica dos “causos” contados para salientar algum aspecto ético ou estético, com o objetivo de fazer com que o leitor deduza, por si mesmo, a moral da história ou a falta de moral dos personagens.
O livro permite ao leitor fazer uma comparação entre o início do Brasil moderno (representado por São Paulo) e o Brasil atual, para constatar linhas de continuidade e poucas rupturas, especialmente com referência à elite econômica e aos políticos, igualmente corruptos. Uma sucessão de casos costurados com ironia sutil, outras vezes com alfinetadas diretas e sem dó, sobre as transformações econômicas da cidade e a manutenção de uma mentalidade onde “cada um que salve o seu”, com muita pose e ostentação.