À revelia da tristeza

Conjunto de versos do angolano Ondjaki funciona como um caderno de exercícios poéticos e cria imagens que vão contra o cinza do mundo
Ondjaki, autor de “Materiais para confecção de um espanador de tristezas”
01/12/2021

A poesia pode fazer uma coisa estranha com o tempo: levá-lo simultaneamente para trás e para frente. Quem o diz é a poeta argentina Diana Bellessi, que compara o poema ao colibri, único pássaro capaz de voar também para trás. Os aborígenes acreditam, escreve a brasileira Carola Saavedra, que o mundo físico é uma caligrafia do mundo espiritual. Pensar a criação poética observando o funcionamento da vida humana ou animal é algo que também pode ser notado no livro de poemas Materiais para confecção de um espanador de tristezas, do angolano Ondjaki, em que a escrita imita o gestual de plantas, da chuva, de animais e de objetos para formular a si mesma, como nos versos “na falta de dedos/ a lesma fez adeus com o corpo./ e veio a chuva” ou em “os poemas eram restos de lixo que ele colecionava/ no quarto ou no coração das mãos”.

O livro foi publicado pela primeira vez em Portugal em 2009 e está sendo editado pela primeira vez no Brasil este ano. É composto por 57 poemas, divididos em três seções: A noite seres, Imitação de madrugada e Três poemas verticais. Logo na epígrafe, escrita pelo próprio autor, lemos uma espécie de nota sobre os poemas que virão:

tinha aprendido que era muito importante criar
desobjectos.
certa tarde, envolto em tristezas, quis recusar
o cinzento. não munido de nenhum artefacto
alegre, inventei um espanador de tristezas.
era de difícil manejo mas funcionava.

ondjaki
julho/2002

Aqui começam os indícios de que Materiais para confecção de um espanador de tristezas é marcado por uma série de procedimentos que aludem a um caderno de exercícios: datas da escrita dos poemas, comentários do autor em notas de pé de página, grifando pensamentos à parte dos poemas. Esses elementos conferem ao livro o aspecto de conjunto de exercícios poéticos. Como no poema Bagagem, que ao fim da página traz, em asterisco, nota que dá continuidade ao poema, na forma de um pensamento avulso que se preferiu não esquecer: “na vida acostamos e abandonamos portos e cais. para não olvidar uma bagagem convém pegar em catorze alforrecas encantadas e [com elas] atar a bagagem ao pulso — até o ardor não arder mais. [a vida é o peso do ausente sobre o resto da vitória, noves fora o sal das lágrimas. a cicatriz também.]”

É como se os materiais para escrever os poemas aparecessem como rastro do trabalho do autor e suas formulações poéticas estivessem disponíveis, na mesa de trabalho, prontas para o uso. Porque além das datas, notas de pé de página e anotações sobre poesia, também é possível reparar que a composição de certas imagens poéticas se articula diante do leitor, em estado de manual de instruções, como quando lemos, no poema Pequeno espanador de tristezas: vou encher-me de silêncios e imitar as pedras. adormecer entre as pedras pode ser que me contagie delas. depois de conseguir ser pedra vou exercitar o sorriso dessa pedra que eu for. com esse sorriso vou iniciar uma construção…/ uma construção pode ser bem o lado avesso de uma certa tristezura”.

Ondjaki formula seu espanador de tristezas e compartilha essa formulação com o leitor, deixando à mostra aspectos do funcionamento de sua “máquina criativa”: os processos de criação de imagens, metáforas, pensamentos, alusões. Se logo de cara, na epígrafe, avisa sobre a criação de “desobjetos” que se seguirão, quando avançamos na leitura vemos os andaimes de sua construção poética, e assistimos à elaboração que está em curso. Por exemplo, no poema intitulado Fogo [ondalu] [27/8/02], lemos: “acontecia-me/ perdoar mais as falhas do meu lápis/ que as minhas”. E ainda: “se eu fosse realmente dono do poema/ demitia-me da minha obrigação de pessoa/ — não escolhia caminhos”. Há, nos poemas, uma consciência sobre a sua própria formulação, que faz do processo de escrita um modo de testar caminhos, falhar com o lápis e tomar todo o processo como a confecção das metáforas que resultarão, afinal, nos poemas que lemos.

Polpa da língua
O escritor brasileiro Paulinho Assunção escreve no posfácio ao livro que Ondjaki, além de promover, no espaço do poema, encontros literários entre autores como Mário de Andrade, Guimarães Rosa e Luandino Vieira, faz o leitor “apalpar a polpa da língua angolana-brasileira-portuguesa”.

Esse encontro entre nacionalidades pode ser notado não somente nas muitas citações a autores como Carlos Drummond de Andrade (“[o poema] longe dos pensamentos/ imitava uma pedra/ [aí as palavras drummondeavam]” e Adélia Prado (no poema De Adélias e prados), como também pelo uso de vocábulos da língua banta Umbundo, falada em regiões de Angola (como no poema citado aqui anteriormente, intitulado [Fogo [ondalu], sendo “ondalu” a palavra em Umbundu para “fogo”).

Essa “polpa da língua angolana-brasileira-portuguesa” também pode ser notada quando o autor tematiza ou menciona Luanda, como em Escrevo a palavra Luanda [3/5/03]: “todas pessoas/ muitas/ todas estórias bonitas/ amanhã/ vão acontecer de novo/ [a beleza das estórias, gasta?]// Luanda// és uma palavra deitada/ nas cicatrizes/ de uma guerreira bela”.

O poema faz lembrar do histórico de dominação colonial vivido pelo país, que culminou, já no século 20, na guerra civil de Angola. O conflito, que durou de 1975 a 2002, é considerado como a guerra civil mais longa e mortífera do continente, tendo se iniciado após a Revolução dos Cravos em Portugal, quando o país europeu deixou de comandar o governo de suas colônias, havendo a partir daí uma série de disputas internas em Angola pelo comando do país.

Neste livro de poemas, o autor se debruça não tanto na guerra, mas sobre uma Luanda que existe apesar das violências, habitada por outras paisagens e afetos, como no poema Confissões: “aqui é Luanda — terra das gentes várias e o carnaval das árvores”. Ou em Corpo, no qual lemos: “em cima do que foi olhado/ pela poesia// estendo meu luando// empresto o meu corpo ao chão/ e adormeço”.

O que nos leva de volta ao início do livro, quando Ondjaki avisa que, por não possuir artefatos alegres, inventou um espanador de tristezas — “era de difícil manejo — mas funcionava”. Desse modo, é possível ler Materiais para confecção de um espanador de tristezas como um caderno de exercícios praticados à revelia da tristeza. Nesse sentido, ao confeccionar “desobjetos”, os poemas usam a língua — ou as línguas — para imitar aquilo que está alheio à tristeza — o movimento das lesmas, um espanador de pós, a chuva — e com isso criam — constroem, confeccionam — lugares habitáveis dentro de outros lugares, sucessivamente, em um contínuo exercício de traçar e desfazer caminhos.

Materiais para confecção de um espanador de tristezas
Ondjaki
Pallas
80 págs.
Ondjaki
Nasceu em Luanda, capital da Angola, em 1977. Transita pela prosa para jovens e adultos e pelos versos. No Brasil, seus livros A estória do sol e do rinoceronte, Verbetes para um dicionário afetivo, Os da minha rua e Há prendisajens com o xão (o segredo húmido da lesma & outras descoisas) foram publicados, ou voltaram a circular, recentemente.
Ana Luiza Rigueto

É poeta, jornalista e especialista em literatura brasileira. Atualmente, é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, com pesquisa em poesia contemporânea. Publicou Entrega em domicílio (Urutau, 2019) e tem poemas em diversas revistas online.

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