A repactuação do romance histórico

Laurent Binet usa efeitos da própria ficção para questioná-la e buscar a realidade, mais do que a verossimilhança
Laurent Binet, autor de “HHhH”
01/05/2013

Na abertura de Como funciona a ficção, James Wood cita uma entrevista que W. G. Sebald lhe concedeu: “Para mim”, diz Sebald, “a literatura que não admite a incerteza do narrador é uma forma de impostura muito, muito difícil de tolerar”. Wood toma essa afirmação como um comentário sobre narração confiável e não confiável. “Para Sebald, a narração onisciente padrão, em terceira pessoa, é uma espécie de trapaça que não se usa mais” — o que seria um modo impreciso de abordar a questão. “Na verdade”, escreve Wood, “a narração em primeira pessoa costuma ser mais confiável que não confiável, e a narração ‘onisciente’ na terceira pessoa costuma ser mais parcial que onisciente”.

Mas há algo que o comentário de Wood apenas tangencia: a historicidade da forma literária. Pois não se trata, para Sebald, de uma decisão isolada, a de trapacear ou não o leitor por meio de uma escolha técnica. O que está em jogo são as condições históricas — as mudanças estruturais — que levaram a um novo pacto entre autor e leitor, impuseram uma nova ética de leitura. “Acho meio inaceitável”, diz Sebald, “qualquer forma de escrita em que o narrador se estabelece como operário, diretor, juiz e testamenteiro. Não agüento ler esse tipo de livro”. “Acho que o curso da história nos fez perder essas certezas.”

Romance contra a ficção
Publicado em 2010, HHhH é um romance sobre a Operação Antropóide e o atentado que tirou a vida do oficial nazista Reinhard Heydrich — um “homem com coração de ferro”, na definição do próprio Hitler. Ao mesmo tempo, é um romance sobre si mesmo, sobre o processo de sua escrita, em que o personagem central é o autor-narrador, Laurent Binet. A tensão dramática do livro é sustentada de duas maneiras. Num primeiro plano, pelo desdobramento da vida de Heydrich e dos paraquedistas que realizaram o atentado, o tcheco Jan Kubiš e o eslovaco Jozef Gabčík — um relato próximo da escrita biográfica convencional. Num segundo plano, pela forma como o narrador define obstáculos imensos para a escrita do romance e é capaz de superá-los, virando o jogo no que parecia um “combate perdido de antemão”.

O combate: depurar a literatura da ficção, para tornar o passado presente. Para Binet, onde começa a ficção já não está a verdade. Se um autor faz uso livre da imaginação, ele é um farsante, um “prestidigitador”. Nenhum ficcionista é digno de confiança. Binet desdenha dos gestos mais corriqueiros da literatura, como nomear personagens, inventar diálogos, construir verossimilhança. E se propõe uma tarefa kamikaze: escrever um romance histórico isento de atos de fingir. Que não reduza o homem, no que tem de humano, “à condição de um vulgar personagem”. Em um nível mais estrutural — um terceiro plano de leitura —, HHhH é um romance sobre a (im)possibilidade do romance, sobre o esgotamento de sua “necessidade vital”, como escreve Óssip Mandelstam no ensaio do qual Binet retira a epígrafe do livro: “De novo o pensamento do prosador põe manchas na árvore da História, mas não cabe a nós descobrir a artimanha que permitiria recolocar o animal na sua jaula portátil”.

Os paradoxos de Binet
“É uma história cativante, muito bem contada”, escreve James Wood sobre HHhH, na The New Yorker. “O tom é inteligente, espirituoso, casualmente pós-moderno”, e o livro demonstra “uma vitalidade muito diferente daquela da maior parte das ficções históricas”. Mas há um caráter paradoxal, a alternância entre impulsos contraditórios, que incomoda a Wood: “curiosamente, embora Binet atue como um pós-modernista, ele age como um positivista do século 19, com um respeito quase religioso pela ‘realidade’ e pela pureza imaculada das ‘coisas como realmente aconteceram’”. O que seria uma ingenuidade: Binet “desconfia da ficção, mas não desconfia suficientemente da ficcionalidade do registro histórico”. Ele é um pós-modernista de araque.

Para ilustrar seu ponto, Wood recorre a Austerlitz. Ainda que o romance de Sebald seja “tão autoconsciente quanto o de Binet”, ele possui uma “dificuldade formal, mesmo uma qualidade proibitiva” — uma “maior intensidade literária” — que Wood atribui ao fato de Sebald ser “mais profunda e ansiosamente pessimista sobre as dificuldades da pesquisa histórica”. A ficção é a principal ferramenta desse grande laboratório moral que é a literatura, cujo potencial cognitivo é descartado por Binet em sua suspeita infantil do ficcional: “há momentos”, escreve Wood, “em que o emprego de personagens inventados e fatos inventados pode ser moralmente produtivo”.

A surpresa do presentismo
Binet “não é um neopositivista em luta contra as trapaças do romance realista”, escreve Alcir Pécora na Folha de S. Paulo. A historiografia interessa a ele como repositório de informações e argumento de autoridade. Não é seu propósito refletir sobre os limites da escrita da história. Binet é um “presentista, alguém que pensa o passado não como uma ocorrência dotada de factualidade em si mesma, mas como internalização subjetiva no presente”.

Nem por isso o passado é como cera mole, que só adquire contorno quando manejado por uma subjetividade hipertrofiada. “Li num fórum”, escreve Binet sobre As benevolentes, “um leitor muito convicto que dizia, a propósito do personagem de Littell: ‘Max Aue soa verdadeiro porque ele é o espelho da sua época’. Não! Soa verdadeiro (para certos leitores fáceis de enganar) porque é o espelho da nossa época: niilista pós-moderno, para dizer em duas palavras”. Uma projeção do presente no passado que não se reconhece dessa forma. Um narrador excessivamente convicto de suas incertezas. Um facilitador. Mero truque de aproximação. “As benevolentesé, muito simplesmente, ‘Houellebecq entre os nazistas’!”

Uma nova sensibilidade do tempo: é o que está em jogo no presentismo. Constante mediação de contradições, ir e vir entre presente e passado. Do “futuro presente” — o conceito moderno de História — ao “passado presente”, esvaziado de expectativas redentoras. Restaurar o passado, em vez de vasculhar a memória com distanciamento. Revirá-lo até que isso seja possível, em benefício dos vivos. “Estou em Praga, não em Paris. Em Praga. Estamos em 1942. É o começo da primavera e estou sem casaco.”

É recorrente o argumento: os escrúpulos de Binet não se sustentam, pode-se derrubá-los com um sopro. Não há crítica documental. As fontes são elididas. Mas fatos e interpretações interessam a Binet como meios, não como fins. “É a História, sei muito bem” — ele cita Flaubert — “mas se um romance for tão chato quanto um livro científico…”. Não é um “estilo acadêmico deplorável” (ainda Flaubert) que vai restaurar a aura do passado. Muito menos a dicção cheia de tiques, barateada, dos romances históricos tradicionais. “Sei mais ou menos tudo que se pode saber sobre esse vôo e me recuso a escrever uma frase como: ‘Eles verificaram maquinalmente o mecanismo e as correias de lançamento automático de seu equipamento de paraquedistas.’ Embora o tenham feito, com toda a certeza.” Algum ponto entre a ostentação blasé do aparato crítico (manter o leitor a uma distância segura) e os efeitos de real banalizados (um leitor despreparado, fácil de enganar).

A suspeita da ficção, em Binet, é diretamente proporcional ao desejo de presença. Binet quer varrer a história a contrapelo, trazer de volta à vida Kubiš e Gabčík, fazer justiça ao que considera um ato de heroísmo impensável no mundo atual (o presente vazio, fechado em si mesmo, livre do fardo da História). Mas ele não deixa de se espantar com a precariedade — e com o poder — dos meios que a literatura dispõe para realizar essa operação. “Digo que inventar um personagem para compreender fatos históricos é como maquiar as provas. Ou melhor, como diz meu meio-irmão, com quem discuto essas coisas, introduzir elementos de acusação no local do crime quando há provas abundantes no chão…

Epistemologicamente, é uma batalha perdida. Mas é uma questão ética, a que Binet apresenta. Que postura adotar ao revirar tumbas, ao profanar o sossego dos mortos? “Que imprudência, transformar em marionete um homem morto há tanto tempo, incapaz de defender-se! Fazê-lo beber chá quando é possível que só gostasse de café.” “Sinto vergonha.” A suspeita da ficção como respeito à diferença irredutível do passado, como premissa para a humanização da história. Tratar o morto como se trata um vivo. Um gesto moralmente produtivo.

O método Binet
“Talvez esta longa estação na antecâmara do meu cérebro lhes restitua um pouco de realidade e não apenas uma vulgar verossimilhança. Talvez, talvez… mas nada é menos certo!” Como enganar leitores hiperconscientes? Como trapaceá-los? Colocar a questão de outra forma: por que trapaceá-los? “A troco de quê?” Conquistar a confiança do leitor, ao invés. Discutir com ele os termos do pacto narrativo. Dirigir-se a ele como se fala a um amigo. Torná-lo dócil. Minar sua reserva cética. E então revelar o “incomensurável e nefasto poder da literatura”. Bruxaria.

Construir o autor como se constrói um personagem: um indivíduo médio, de esquerda, engraçado, charmoso, cheio de boas tiradas. Não um erudito enclausurado, mas alguém que vê os filmes que você vê, lê os livros que você lê, faz pesquisas na internet, dá informações erradas apenas pelo prazer de se corrigir (a pesquisa como processo). Um homem comum, que nada tem de especial, fora o extraordinário talento literário. Alguém que se interessa pelo que efetivamente aconteceu, mesmo que os entendidos assegurem que o passado é uma terra estrangeira.

Amplificar os truques para evidenciar o ilusionismo, abusando de índices de aproximação (“como nós”, “gosto de penetrar o máximo possível na intimidade dos meus personagens”), argumentos-tipo retirados da opinião comum (“é como se a estupidez de Chamberlain fosse contagiosa”), a retórica elevada dos historiadores tradicionais (“Jan Kubiš pode fazer sua entrada no grande palco da História”), ou mesmo clichês deslavados (“o julgamento da História é o mais terrível de todos”).

Guiar o animal para dentro da jaula portátil sem domesticar sua natureza. Não a presença, mas efeitos de presença. “Alquimia infame, mas que posso fazer?” A condução para o centro de outras vidas, pelo único caminho possível: a ficção. Atravessar “o espelho de duas faces da realidade histórica”, mas só depois de conquistar o direito de trapacear.

HHhH
Laurent Binet
Trad.: Paulo Neves
Companhia das Letras
342 págs.
Laurent Binet
Nasceu em 1972, em Paris. Publicado em 2010, HHhH recebeu o prêmio Goncourt para romances de estréia. Binet é formado em literatura, e ensina na Universidade de Saint-Denis. É autor, ainda, de dois livros de não-ficção: La vie professionnelle de Laurent B e Rien ne se passe comme prévu, sobre a campanha presidencial de François Hollande.
Felipe Charbel

É professor de Teoria da História na UFRJ. Autor de “Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini“(Editora da Unicamp, 2010), atua também como crítico literário. Colabora ocasionalmente com o suplemento Prosa (O Globo) e publicou ensaios sobre ficcionistas contemporâneos como Philip Roth, J. M. Coetzee e Cees Nooteboom.

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