Bendito assalto, de Domingos Pellegrini, gira em torno de um plano de assalto, envolve personagens com perfis bem distintos, unidos entre si apenas pelo amadorismo profissional de criminosos em potencial. Num primeiro momento, essas criaturas se apresentam mais como tipos do que, propriamente, como personagens em perspectiva. Isso porque todo o esforço narrativo parece estar em priorizar a ação e a maneira como essa ação se desenvolve. Esses tipos só vão dizer a que vieram no desenrolar da trama. Esta, assumindo formas diferenciadas, em referência a outras linguagens, como a da entrevista jornalística, do cinema, do teatro, da música e até da poesia, vai se constituindo a partir de fragmentos e montando seu tecido em mosaico.
A promessa de surpresas entra em tensão com conflitos sugeridos a partir do título: Bendito assalto. Do ponto de vista moral e ético, como um assalto pode ser bendito? Seria ele um assalto bem-sucedido, no qual seus autores realizariam todos os seus sonhos e seriam felizes para sempre? Seria um plano mirabolante do crime perfeito no qual todos os passos e indícios se apagam na impunidade preponderante da conjuntura política em que vivemos? Seria uma ação frustrada na qual a justiça se faz e os “criminosos” sobreviventes são devidamente punidos ou premiados e aprendem a lição de que “o crime não compensa”? Ou seria tudo isso, e nada disso? Como isso tudo seria possível?
Não nos resta outra saída senão embarcarmos na aventura e avançar na leitura virando a folha dura de capa atentando para todos os sinais gráficos, título, autor, editora e imagens. Quatro elementos da quadrilha caminham um ao lado do outro, não se sabe para onde. Bendito, está inscrito em preto, assalto em branco, sobre um fundo azul. Uma pequena borboleta (ou será uma mariposa?) sobrevoa o título em vôo aberto para a imaginação de autor-narrador e leitores que se pretendem cúmplices.
A história começa, portanto, antes propriamente do primeiro capítulo. Já na capa surgem as primeiras indagações que suscitam as primeiras curiosidades para se garantir o suspense e as promessas de movimentada ação. Não se trata, entretanto, do que se pode chamar de romance policial no sentido tradicional. Não há cadáver, arma do crime, detetive investigador racionalmente munido de ferramentas e com uma imunidade garantida. Ou melhor, não há enigma a ser desvendado acerca de um crime já acontecido num passado próximo ou remoto. Tzvetan Todorov, no seu estudo Tipologia do romance policial, investiga diversos tipos de textos do gênero. Ao romance de enigma, segundo suas definições, contrapõe-se o romance negro, no qual o tema assume um aspecto principal: “O romance negro moderno constitui-se não em torno de um processo de apresentação, mas em torno do meio representado, em torno de personagens e costumes particulares; por outras palavras, sua característica constitutiva são seus temas”. Enquanto no romance de enigma o detetive estava imune centrado nos recursos de sua racionalidade para descobrir o mistério do crime, no romance negro tudo é possível, o detetive se arrisca: “Aí encontramos a violência — sob todas as formas… A imoralidade está ali à vontade, tanto quanto os bons sentimentos”.
Sem gênero
Em Bendito assalto, apesar de a variedade de linguagens e discursos conspirar para uma seqüência vertiginosa de ações, há, subjacentemente, uma discussão temática sob o pretexto da história do assalto propriamente dita. A violência não é o tema central, pelo contrário, há uma perspectiva de busca de paz e harmonia, apesar dos conflitos que isso implica. Nem tudo é permitido. Apesar de estar a ação voltada para um assalto, há um código predefinido de moralidade ética que pretende frear a banalização da vida e a violência gratuita. Basta dizer que a primeira pretensão do mentor do assalto era executar uma ação sem arma de fogo e, portanto, sem derramamento de sangue.
Ou seja, apesar de se diferenciar do romance de enigma, o livro também não se situa dentro do âmbito do romance negro moderno ou contemporâneo. Dele se distingue por uma linha da proposição ética que estabelece limites e oferece perspectivas mais promissoras, como se verá no desfecho da história. Mantém, entretanto, desses tipos de texto, algumas linhas de construção que garantem o interesse permanente do leitor: “Não há história a adivinhar; não há mistério ou enigma. Mas o interesse do leitor não diminui por isso”. Há aqui uma forma de interesse que garante o envolvimento do leitor: segundo Todorov, “é o suspense (…) mostram-nos primeiramente as causas, os dados iniciais (gangsters que preparam um golpe) e nosso interesse é sustentado pela espera do que vai acontecer”. Aliado a tudo isso, os diferentes pontos de vista problematizados pela condição social e emocional de cada personagem, assim como as suas diferentes formas de expressão, inibem qualquer tentativa de enquadramento do texto em algum gênero cristalizadamente consagrado. No seu conjunto, o livro transita sob diversas formas e utiliza-se de vários aspectos e recursos de gêneros e linguagens, sem, contudo, limitar-se a algum modelo específico. Sabemos tratar-se de um romance pela discreta inscrição que vem na capa acompanhando o título.
Há a promessa de um bendito assalto, o plano e a ansiedade da espera. Não há sequer, explicitamente, um narrador exclusivo, onisciente e detentor de todos os caminhos da ação com suas verdades. Há fragmentos que, como fotogramas, vão constituindo a narrativa cinematográfica através de diferentes câmeras ou pontos de vista. No caso do romance em questão, a linguagem escolhida para cada um dos fragmentos diz respeito à construção de cada personagem, suas aptidões, paixões e maneiras de encarar a construção do seu mundo particular a partir do seu estar no mundo ou da sua inadequação ao mundo vivido, num plano da realidade político social presente.
Neste sentido, a atenção sobre o texto de orelha do livro é de fundamental importância. Tanto pode funcionar como uma introdução à leitura, como uma conclusão da narrativa. Como um prefácio, tenta estabelecer uma explicação “autoral” da estrutura fragmentada da narrativa. Mas vai mais além, na medida em que pretende garantir a verossimilhança da trama, associada ao “descompromisso” do autor-narrador-diretor com as possíveis incoerências das ações. Se a narratividade é construída por pontos de vistas e códigos de linguagens tão diferentes, não há porque o diretor do espetáculo assumir as incongruências de um enredo que parece estar se desenrolando à revelia de sua direção ou condução.
Cabe como jornalista forjar uma objetividade ou, na posição de diretor de um espetáculo, apresentar os fatos e os atores em suas falas, estabelecendo os efeitos de cor, som, cenários e tempo através de recortes necessários para viabilizar a encenação. Na orelha do livro, intitulada A quadrilha e a partilha, o autor-narrador apresenta os personagens e o projeto de construção do romance. Faz a “partilha” da responsabilidade de cada ator-personagem com o que irá se desenrolar a partir daí, como se desse “crime” pudesse sair de mãos limpas. “Dos quatro da quadrilha, o primeiro que conheci foi Guto (…), jornalista, durante vários encontros contou com objetividade e muitos detalhes sua participação no assalto, que procurei narrar com objetividade.”
Em que consiste a pretensa objetividade desse autor-narrador? A reprodução do texto falado pelo jornalista Guto não é suficiente para garanti-la. É apenas um dos pontos de vista dentro de tantos outros. Outras questões borram a tal da narrativa jornalística “objetiva”. Esta está contaminada, inegavelmente, pelas paixões e pelos interesses do personagem em questão. Destacam-se aí a paixão de Guto por Lara e os recursos poéticos que tira do fundo do baú da memória na tentativa desesperada de sensibilizá-la. Segundo o narrador, o jornalista estava “interessado em contar a história do assalto para ganhar algum dinheiro”. Paixão e interesses econômicos também configuram um sujeito em sua subjetividade. Isto impede a objetividade jornalística de se manter exclusiva.
Mário, bancário, viciado em álcool e cocaína, idealiza o assalto, “inspirado num filme baseado no conto The killers, de Hemingway”. A paixão por cinema do personagem justifica a forma textual de um roteiro cinematográfico, que muitas vezes é expressa na história. A sensibilidade feminina e esotérica de Lara é trabalhada através de um texto carregado pelo fluxo de consciência ou apelos poéticos e existenciais, graficamente marcados por um tipo de letra diferenciada. Toninho, em sua condição homossexual, é sensível e apaixonado pela arte dramática. É assim que “várias passagens são narradas em linguagem teatral”. Em meio a tudo isso, o segurança José Ferreira, o Lampião, no seu jeito estabanado de ser, entra em cena disposto a cumprir o seu dever a qualquer preço. Surge como signo do imprevisto e da ironia do acaso conspirador e soberano. Suas impressões e falas também são marcadas por destaques gráficos que propiciam sua identificação.
Lucros e prejuízos
Em linhas gerais, o livro se divide, além da introdução e da capa, em quatro capítulos. No primeiro, O plano, o mais extenso, são apresentados os personagens, seus dramas de vida e de consciência na participação do assalto e a proposta do plano em si. A seguir, em A espera, dando continuidade a trama, os personagens vivem um período de transição e preparação para o passo seguinte. Em O assalto, a tão esperada ação se realiza. E no último capítulo, A partilha, acontece o desfecho no qual cada personagem, de uma maneira ou outra, recebe sua parte na distribuição dos lucros e prejuízos da ação.
Como se vê, esses capítulos não serão aqui comentados nos seus curiosos detalhes. Em parte, por questão de espaço, há um limite de linhas a cumprir. Mas, principalmente, por não ser justo com tanto engenho do autor para manter o suspense da trama, um estraga-prazeres adiantar fatos que merecem ser apresentados no seu tempo, com o prazer da espera, sob o calor do suspense.
Não podemos esquecer que o escritor de Bendito assalto é chamado a participar da narração da trama a convite de Guto, o jornalista. No próprio romance, está sendo representado como um escritor de livros infanto-juvenis, como o próprio Domingos Pellegrini. Em entrevistas, o autor costuma afirmar: “A língua com que escrevo um livro é basicamente a mesma com que conto um caso para um amigo. Minha meta é escrever como quem fala a uma criança”. A vasta obra premiada em vários gêneros traz a marca da simplicidade de uma fala de contador de histórias com uma carga significativa da oralidade do cotidiano popular e a curiosidade da criança e do artista, que lançam o olhar para cada acontecimento do mundo com o fascínio da primeira vez. A simplicidade no dizer não impede a complexidade nas questões levantadas do ponto de vista temático e formal. Ao mesmo tempo em que resgata formas e conteúdos da nossa tradição literária, inova com uma postura experimental na composição de seus textos.
Ainda com relação ao aspecto temático, parece que Pellegrini caminha na contramão de uma literatura contemporânea de radicalização da desesperança de uma violência urbana desenfreada, sem perspectiva de superação. Resgata para isso elementos aparentemente ingênuos de uma esperança pautada na ética do trabalho, que pressupõe o prazer de fazer o que se gosta e de uma expressa solidariedade coletiva.
Está claro que o mais importante não é a história em si, mas sim como ela se permite contar e ler. Num texto como este tudo importa. Nada é gratuito para o poeta fingidor. É pautado em fatos de uma realidade palpável e complexa que ele reinventa com simplicidade desencantos, esperança, sonhos e quimeras.