A reflexão de Daibert sobre Macunaíma

A arte de Arlindo Daibert, oito anos após a morte do artista plástico mineiro, é o testemunho vivo da ousadia e da inventividade de quem sempre encarnou a criação como um desafio e um estímulo
01/10/2001

A arte de Arlindo Daibert, oito anos após a morte do artista plástico mineiro, é o testemunho vivo da ousadia e da inventividade de quem sempre encarnou a criação como um desafio e um estímulo, além de um compromisso com a produção do saber. Ao lançar o livro Macunaíma de Andrade, de Arlindo Daibert (1952–1993), um verdadeiro mergulho na essência de Macunaíma, de Mário de Andrade, a Editora UFJF — com apoio da DaimlerChrysler — presta não só um tributo à memória de um dos mais significativos artistas contemporâneos brasileiros como reafirma a intenção de manter ao alcance do público uma obra instigante e impregnada de inquietação do primeiro ao último traço, da primeira à última linha.

A relação essencialmente inventiva expressa pelo artista plástico nos desenhos e colagens de sua reflexão sobre Macunaíma acaba por reafirmar a criatividade de Arlindo Daibert. Toda a força criativa desta interpretação aberta da obra de Mário de Andrade pode ser percebida e acompanhada no Diário de Bordo, que revela como o artista juizforano iniciou um estudo detalhado da obra de Mário de Andrade e passou a se enveredar nas artimanhas de Macunaíma, entre 1981 e 1982, para elaborar uma de suas mais intensas séries. Como muito bem ressaltou o jornalista e crítico de arte mineiro Walter Sebastião, ao escrever sobre Imagens do Grande Sertão – Arlindo Daibert (Editora UFMG – Editora UFJF), lançado em 1998, a incrível rede de significados elaborada por Daibert exprime a síntese de toda a sua inteligência no manuseio de signos/símbolos e toda a sua habilidade artesanal. Tanto ao se enveredar pela rapsódia de Mário de Andrade quanto pelos caminhos do Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, Daibert assume riscos, enfrenta o desafio de peito aberto e cria uma obra maior, na qual a reflexão marca presença em cada momento, com a interpretação do artista plástico abrindo perspectivas novas sobre o original de escritos tão díspares e tão contundentes.

Um artista capaz de deixar fluir uma forte crença na responsabilidade cultural de sua arte, Daibert sempre se recusou a ser um mero “produtor de imagens” e defendia como compromisso do artista a produção do saber. Assim, Arlindo não levou em conta o contexto pessoal do escritor Mário de Andrade e não fez uma releitura técnica de Macunaíma. Afinal, não se trata de uma ilustração para a obra marioandradiana. Na verdade, Arlindo ousou criar sem limitações, tendo como ponto de partida o estímulo literário.

No livro Macunaíma de Andrade, o artista plástico mineiro conseguiu, mais uma vez, romper limites e refletir sobre a linguagem do desenho. O desafio da criação nunca intimidou Arlindo Daibert, pelo contrário, sempre serviu como estímulo. Ao criar as imagens, Arlindo Daibert explorou toda a diversidade de situações presente na obra-prima de Mário de Andrade, deixando muito claro que, ao realizar seu trabalho, seja em desenho seja em pintura, ou ainda em colagem, o fundamental era exercitar uma linguagem de encarar o mundo. E ressaltava que não se podia confundir um método de raciocínio com apenas uma produção de imagens. A característica da linguagem gráfica de Arlindo Daibert não poderia deixar de ser a criação da imagem, mas sempre como conseqüência e não como fim de seu projeto. E o artista plástico explicitava este ponto de vista: “O meu projeto não é criar imagens, o meu projeto é refletir sobre as coisas através das imagens”. Isso criou uma dinâmica capaz de não prender a criação de Daibert a nenhuma fórmula gráfica, a nenhum estilo gráfico.

O artista plástico ainda confidenciou: “Eu tenho um estilo de raciocínio e não um estilo gráfico. Os meus estilos gráficos se adaptam às problemáticas que eu estiver refletindo em cada momento”. Este era o grande trunfo de Arlindo Daibert como um artista afiado e afinado como seu tempo. Avesso a concessões e a limitações, Daibert fazia da ousadia de dar um passo à frente o estímulo para continuar caminhando até o infinito. Essa percepção mágica diferenciava Arlindo e está viva e presente em sua arte.

“Um franco atirador que jamais erra o alvo”. Assim, o jornalista, crítico de arte e secretário estadual de Cultura em Minas Gerais, Ângelo Oswaldo, define o artista Arlindo Daibert, lembrando que ele enfatizava a individualidade como condição imprescindível numa época de padronização e massificação da própria subjetividade. “Incentivador de projetos à sua volta, na qualidade de professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e curador de exposições, alimentava o crescimento de valores novos, ao mesmo tempo em que reabastecia para o desafio da criação”.

Amigo particular e apreciador de sua obra, Ângelo Oswaldo considera Arlindo Daibert um dos mais importantes artistas da contemporaneidade brasileira. “A morte dele interrompeu uma trajetória que nos levaria definitivamente a uma das obras mais significativas do século 20”. O secretário ressalta, ainda, que o artista foi responsável por ter colocado Juiz de Fora como um centro de referência de vanguarda no cenário artístico nacional.

A interação entre literatura e visualidade, ponto essencial da proposta artística de Arlindo Daibert, é apontada por Ângelo Oswaldo como uma contribuição ímpar: “Há um processo de integração entre a literatura e a visualidade — que ele soube resolver muito bem — em que a força da linguagem se transforma na grande energia autônoma da expressão visual. Ele conseguia extrair a poética da literatura e dar suporte à sua expressão visual, sem violentar a autonomia da imagem”.

Segundo Ângelo Oswaldo, a obra visual de Daibert deve um tributo à literatura, mas é também autônoma, pois cria sua linguagem própria a partir de símbolos literários. “Dentro das artes plásticas brasileiras, talvez seja a obra mais intelectualizada, porque Arlindo trouxe para o campo da criação plástico visual toda a sua rica cultura nas áreas de literatura , lingüística e filosofia”.

Daibert abordava de maneira singular, como desenhista, pintor, criador de objetos e instalações, obras de autores como Mário de Andrade, Murilo Mendes, Guimarães Rosa e Lewis Carol, entre outros. Além do legado artístico, em termos de acervo, Arlindo deixou um trabalho muito importante para a cultura de Minas e do Brasil, contribuindo, de modo especial, para a revalorização da presença do poeta Murilo Mendes (1901-1975) no país e para a instalação em Juiz de Fora do Centro de Estudos Murilo Mendes, que abriga a obra e a pinacoteca do poeta juizforano.

Já o colecionador Gilberto Chateaubriand, amigo de Arlindo Daibert e guardião de suas três mais importantes séries — Macunaíma de Andrade, Imagens do Grande Sertão e Alice —, ressalta a genialidade do artista plástico mineiro: “Arlindo, no seu período de vida, foi talvez o mais completo desenhista que nós tivemos, porque ele aliava não só a habilidade e a técnica do traço, mas também a cultura e a pesquisa. Basta conferir os desenhos surrealistas do início da carreira, como também os de fundo mais histórico e narrativo, e até os que traziam um contingente autobiográfico”. Em seu pouco tempo de vida, Arlindo deixou uma obra expressiva e consistente tanto qualitativamente quanto quantitativamente. É justamente aí, segundo Chateaubriand, que se observa sua genialidade, porque era um criador frenético e sempre decidido.

Ao receber da família de Daibert a série Imagens do Grande Sertão, após a morte do artista plástico, complementando o acervo em sua coleção de arte contemporânea, Chateaubriand revelou: “É com muita emoção e muita saudade que recebi esta obra, porque uma das últimas visitas, senão a última visita, que recebi de Arlindo foi justamente para me dizer que fazia absoluta questão que a série sobre o livro Grande Sertão: Veredas, finalmente, compusesse a trilogia com os trabalhos que eu já tinha dele. E que eu destinasse sempre os trabalhos para o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o MAM, onde ele sempre mereceu uma acolhida generosa”.

O poeta e pesquisador Júlio Castanõn Guimarães afirma, em Caderno de Escritos (Sette Letras), que o artista, tendo iniciado brilhante carreira no início dos anos 70, impôs-se logo pelo virtuosismo de seu desenho. “Nos cerca de 20 e poucos anos em que desenvolveu sua atividade, incorporou a esse traço inicial uma série de outras peculiaridades, em que se destacava a permanente discussão da própria criação artística”. A importância de Arlindo Daibert como artista plástico, segundo Júlio Castanõn, já foi devidamente — embora não suficiente — ressaltada, não só pela sua curta trajetória, mas também pelo reconhecimento dos principais críticos de arte do país. O legado de Arlindo Daibert deixa explícita a inquietação, a precisão e a afiada percepção de um artista em permanente processo de reflexão sobre a linguagem do desenho.

Sua intensa e múltipla produção era acompanhada de (e refletia) uma permanente preocupação com questões que ultrapassam os limites da técnica, ressalta Castanõn: “A reflexão, a indagação, a especulação sem dúvida foram determinantes em seu percurso. Dos bicos-de-pena iniciais, ligados a uma tendência ao fantástico, até os objetos de fria e violenta elaboração conceitual, o caminho não envolveu apenas um arrojo de pesquisa, mas também um embate com a noção mesma de produção artística”.

Jorge Sanglard
Rascunho