A realidade implacável

Na obra de T. S. ELIOT, ironia, paródia e incorporação de tradições díspares se fundem num peculiar questionamento moral
Ilustração: T. S. Eliot por Osvalter
01/10/2014

O último ato é sangrento, por mais bela que seja a comédia em todo o resto. Lança-se finalmente terra sobre a cabeça e aí está para sempre.
Pascal, Pensées

1.
As peças de T. S. Eliot não causam tanta admiração no meio literário como seus poemas e seus ensaios. Desconhece-se o motivo; certamente, Murder in the cathedral não tem o impacto estético de The waste land, mas não se pode negar que The cocktail party possui trechos que ficam lado a lado com certas estrofes de Four quartets. Eliot era um poeta completo e um escritor cauteloso; além disso, sua preocupação moral o levava à procura de novas formas de expressão para que a mensagem transmitida em sua obra fosse a mais clara possível. O teatro foi apenas mais um meio encontrado para o drama que já existia em seus versos e suas reflexões.

Isso não significa que Eliot encontrou sua forma dramática plena e acabada — como, por exemplo, ocorreu com sua estréia na poesia com The love song of J. Alfred Prufock, em 1915. Um dos elementos mais comoventes na leitura das suas peças é o modo como Eliot luta para encontrar uma forma adequada e também diferente de expressar o mesmo drama que o obceca há anos. Se, ao lermos The waste land ou Ash-Wedensday, temos o sentimento de um vento gelado que trespassa nossos ossos, como as palavras de aviso de um profeta dos velhos tempos, em The cocktail party, por exemplo, temos um dramaturgo querendo nos chocar no meio de uma simples comédia de costumes, mas repleta de avisos e sobressaltos. É como se o profeta Jeremias simplesmente tivesse se transformado em Noël Coward, com um pouco de sotaque cockney no vaticínio.

E este é um procedimento tipicamente eliotiano. A ironia, a paródia e, sobretudo, a incorporação de tradições díspares — como a comédia de costumes e a tragédia grega — se fundem em um questionamento moral peculiar. Aqui germina a intensidade única do teatro de Eliot; na poesia o significado de seu discurso pode ser cifrado; mas, no palco, as suas intenções são concretamente dramatizadas.

Qual seria este drama moral que Eliot procura retratar com tamanha precisão, na poesia ou nas peças? O eixo temático de toda a sua obra sempre foi a restauração da realidade perante os olhos do homem. Desde The waste land (1922), poema que simbolizava o desencanto da Primeira Guerra Mundial, Eliot sai em busca de uma solução quase desesperada para o fato de que, como o próprio descreveu em um verso lapidar, “human kind cannot bear very much reality” (O gênero humano não suporta tanta realidade). Este, aliás, é o mote não só de Four quartets (1935-48), o grande poema final de sua carreira de onde sai essa sentença, mas também das três peças escritas na mesma época: Murder in the cathedral (1935), The family reunion (1939) e The cocktail party (1948). Para Eliot, o ser humano não consegue compreender a realidade que o cerca e, por isso, também não consegue comunicá-la aos seus semelhantes. E uma das formas de se atingir um resultado minimamente satisfatório perante este problema é por meio do labor poético ou do drama teatral, expresso em personagens concretos dentro de situações cotidianas.

2.
Em Murder in the cathedral, Eliot contrapõe explicitamente a lucidez dolorida de Thomas Becket, arcebispo de Canterbury em conflito com o Rei da Inglaterra, com o common sense de sua paróquia (dramatizado em um coro inspirado nas tragédias gregas). Becket assume o seu futuro martírio com todas as consequências ao voltar após sete anos de exílio na França. O povo clama: “Tememos um medo que desconhecemos, que não conseguimos encarar e que ninguém compreende”.

O verdadeiro drama, segundo Eliot, não é a incapacidade do ser humano em perceber a realidade, mas justamente a sua incompetência. O homem sabe exatamente o que é o real e o que é a ilusão, o que é a verdade e o que é a mentira; ele apenas cria várias formas de fuga, diversas maneiras de autoengano para não encarar, com uma coragem mínima, as trevas que escondem a luz feroz. A persistência em manter uma forma aparentemente ordenada para compreender a ambiguidade da existência é aquilo que Bernard Lonergan chama de “flight from understanding” (fuga da compreensão) e que impossibilita captar o mundo em seu habitual mistério. O resultado óbvio é um escotoma (skotosis, na terminologia de Lonergan), uma vida vivida em meio a brumas e sonhos, em que a consciência nega constantemente as coisas mais simples que estão à sua frente e a própria estrutura da realidade. Como Eliot, pela boca de Becket, afirma: “Este é um único momento, mas saiba que outro o ferirá com uma alegria surpreendente e dolorosa quando o desenho do propósito de Deus tornar-se-á completo. Então tudo parecerá irreal, pois o gênero humano não suporta tanta realidade”.

Ora, se o homem não suporta tanta realidade, como esta pode ser explicada ao seu semelhante — enfim, ser devidamente compreendida dentro dos limites da linguagem humana? Não existe uma solução fácil. O trecho acima de Murder in the cathedral tem seu complemento com a seguinte estrofe de Four quartets, que aliás usa como refrão a sentença de que “o gênero humano não suporta tanta realidade”: “A Palavra no deserto é atacada pelas vozes da tentação, a sombra que chora na dança do funeral, o lamento agudo da quimera sem consolação”.

A incompetência de aceitar a realidade em sua síntese de trevas e luzes leva à incapacidade de exprimi-la com alguma exatidão. Na verdade, para superar o impasse é necessário o apoio das virtudes (aretê), em especial a da coragem. A restauração da verdadeira ordem do real somente acontecerá com um ato libertador, uma ação que implica em sofrimento, sem dúvida, mas que será, no final, um sofrimento que dará origem a uma alegria perpétua, como explica Becket à sua paróquia relutante: “Eles sabem e não sabem o que é agir ou o que é sofrer. Eles sabem e não sabem que toda ação é sofrimento e que o sofrimento é ação”.

Aceitar a realidade como ela se apresenta — e não conforme os desejos humanos — implica em um posicionamento moral perante a própria vida. Em outras palavras: deve-se ter a coragem para aceitar o mundo da forma mais objetiva possível e assumir a sua parcela de responsabilidade. Assim, não se deve entender que o drama que Eliot nos apresenta terá sua solução numa resignação próxima à pusilanimidade. Tanto nas peças como nos poemas ele acredita que somente a ação que se origina do sofrimento fértil restaurará a ordem do real. Porém, antes, temos de ver o que seria a realidade apresentada em sua obra.

3.
Poucos sabem que Eliot formou-se em filosofia antes de se aventurar na poesia e na crítica literária. Portanto, a natureza do real — e suas representações dentro da consciência humana, sobretudo na arte — sempre estiveram no centro de suas preocupações. Afinal, ele era um estudante da gnoseologia pragmática de George Santayana e da tênue fronteira entre aparência e realidade, tema desenvolvido nos estudos de seu mestre, F.H. Bradley. Era lógico que ele levaria essas preocupações no centro de sua poesia; e isso é mais do que nítido em The waste land, The hollow men e, claro, nos Four quartets. Com o passar do tempo, Eliot acumula não somente suas observações filosóficas sobre a natureza do real, mas cria uma síntese própria ao uni-las com os testemunhos dos santos e dos místicos cristãos.

A grande influência neste aspecto foi a de São João da Cruz, em especial com sua noche escura del alma, a noite escura da alma. No Eliot de Four quartets e no São João de A noite escura, a realidade é sempre um manto obscuro, em que a alma deve passar por uma purificação dos sentidos e, depois, do próprio espírito, para então ter a descoberta plena do sentido integral das coisas do mundo.

Trezentos anos separam os versos do místico espanhol e do poeta anglo-saxão, mas a experiência é a mesma. Os paradoxos existem porque o real só pode ser apreendido em uma via negativa; as coisas perecem, terminam e se afogam no mar do tempo; e, a partir desta experiência de precariedade — em outras palavras: uma experiência de morte —, a consciência humana se enreda numa trama de ansiedade e desejo, culminando na fuga da compreensão.

Entretanto, Eliot não chega a ponto de criar uma armadura ascética perante aos paradoxos da existência humana. Sua visão sobre a realidade é mística, pois quer penetrar no cerne do mistério que envolve o homem, mas ela é de um misticismo incorporado de um certo charme secular. O real se manifesta não somente no rigor, mas também na incapacidade cotidiana de entendê-lo. Surge daí a descrição eliotiana da condição humana como algo repleto de uma ambiguidade monstruosa, na quais as trevas, o desespero, a falta de sentido, o vazio existencial e, sobretudo, a incomunicabilidade são constantes.

O teatro dá a oportunidade de Eliot dramatizar esse conflito dentro de um ambiente secular. Ele usa e abusa da tragédia grega para transmutar elementos pagãos em conflitos declaradamente cristãos; aproveita-se de peças recentes da sua época, como Saint Joan, de Bernard Shaw, e as de Noel Coward, para refutar justamente o ceticismo e o hedonismo que estas defendem; e, pouco a pouco, abandona o diálogo poético, que caía no risco de ter uma única voz, para metrificar a oralidade de seus personagens e assim criar diversas vozes que se entrechocam e provam a impossibilidade de comunicação essencial entre os seres humanos.

Mas engana-se quem pensa que Eliot derrapa num pessimismo de carteirinha. A escuridão, a noche escura, é apenas um aspecto do real. Eliot apenas denuncia o fato de que o ser humano não tem coragem de encará-la em todo o seu horror. Seria isso necessário para escapar do escotoma, do flight from understanding? Eliot e São João da Cruz concordam que a passagem pela noite escura não somente é necessária, mas fundamental, para que o homem entenda o sentido de sua vida em sua integridade. Ela não se reflete somente no problema de como corrigir um mundo através das virtudes, da aretê; reflete-se também em como superar a realidade incompleta que se apresenta perante os nossos olhos. Afinal, a existência aqui na Terra é muito parecida com o Inferno, ainda mais se tivermos a coragem de perceber isso sem pestanejar, como diz a personagem Harry em The family reunion: “Aqui estava à procura de uma desgraça há muito esquecida e de uma nova tortura, a sombra que se esconde atrás de nossa tímida infância, alguma origem de nossa maldade”.

Esta é a fala de um homem que, apesar de se encontrar no mesmo local onde nasceu e foi criado, descobre que sua vida passada era uma completa ilusão. Harry tem a coragem de admitir isso, consegue ir até a origem de seu inferno, mas não consegue ir além dela, ultrapassá-la — enfim, atingir a transcendência. As três primeiras peças de Eliot têm a mesma preocupação ética-gnoseológica dos Four quartets: Pode a ordem do real ser restaurada aos olhos da raça humana? A resposta é positiva — mas não menos problematizadora.

4.
Em Murder in the cathedral, Eliot conta sobre os últimos dias de Thomas Becket, arcebispo da Cantuária que, após um exílio de sete anos na França, volta à sua terra natal, mesmo sob a tirania do Rei da Inglaterra. Becket sabe que morrerá assassinado; ainda assim, ele insiste em voltar para casa e esperar o momento em que se entregará à vontade de Deus, apesar dos avisos do povo e da paróquia.

Na verdade, Eliot cria um esqueleto de peça para meditar sobre o martírio — e sobre o fato de que o ser humano não suporta algo tão escandaloso porque a consciência sequer imagina que de tal “horror” possa florescer uma nova vida. Mas a verdadeira história de Becket apresenta um problema dramático que Eliot não conseguiu resolver: a questão de que se o martírio do arcebispo realmente pode ser considerado um exemplo de santidade.

Em The family reunion, Eliot cria uma peça de acerto de contas entre os membros de uma família tipicamente inglesa. O cenário é uma casa de campo decadente onde Amy, a líder, manipula todos os parentes, em especial o filho Harry, para que aceitam a realidade como algo ordenado e planejado, um perfeito sistema sem sombras ou fantasmas. Ocorre que os fantasmas invadem as relações desgastadas entre os parentes o tempo todo. Harry, o suposto sucessor do legado da família, está traumatizado justamente porque viu muita realidade: sua esposa morreu misteriosamente durante uma tempestade no mar e ele carrega uma culpa secreta dentro de se coração que reduz sua consciência a um estado de perfeito inferno.

O processo atormentado da mente de Harry, segundo Eliot, é um purgatório, um inferno passageiro que ele terá de passar para se arriscar na aventura da incerteza e do mistério. A estrutura da peça é a de um drama burguês, muito similar a de um Ibsen, mas Eliot usa o procedimento do coro e do aparecimento das Eumenides, como o uso simbólico de uma tragédia que está prestes a bater na porta. Falta a coragem necessária a Harry para aceitar o fato de que a realidade percebida com a morte trágica de sua esposa não é a única possível. Para isso, ele terá a ajuda da tia Agatha que, como a verdade que está dentro do seu próprio nome, o indica o absurdo de sua situação e o traz para a libertação do círculo vicioso que Amy, sua mãe, criou: “O que escrevemos aqui não é uma história de descoberta, de crime e castigo, mas de pecado e de expiação”.

A peça termina com Harry decidindo ir embora do círculo vicioso de sua família, que termina exatamente com a morte súbita de sua mãe. Não sabemos se ele irá às últimas consequências; quando lhe perguntam se ele se transformará em um missionário, Harry hesita e nega definitivamente. Qual seria a sua vida de aventura? Será que ele encarará a realidade com suas trevas e suas luzes? Ou terminará numa apatia de ficar numa procura recorrente, sem fim claro e definido? Parece que, para Harry, a visão da realidade implacável o levou a uma aporia de ação e pensamento. O mesmo pode se dizer do talento dramático de Eliot; seu desejo de retratar o martírio como a única forma de superar a ambiguidade monstruosa do real parece cair na mesma incapacidade de comunicá-la que ele critica tanto no mundo moderno. Como superar tal obstáculo?

5.
Eliot vencerá suas limitações com o engenhoso The cocktail party. Inspirado na Alceste, de Eurípedes, e emulando ironicamente as peças de Noël Coward, Eliot conta a história de Edward e Lavinia, um casal que se separa após cinco anos de casamento. Famosos por suas festas na sociedade londrina, o casal enfrenta uma situação exemplar de vazio existencial, agravada pelo adultério de Edward com Célia Coplestone. A peça tem início com uma dessas festas, em que os amigos de Edward perguntam incessantemente sobre Lavínia, que simplesmente abandonou o apartamento sem dar nenhuma notícia. Eliot faz que o primeiro ato seja um exemplo impecável de como a incomunicabilidade é o mote em qualquer festa; os diálogos são entrecruzados, cortados ou truncados; ninguém se entende, nem mesmo sobre um pequeno detalhe de uma historieta de viagem.

A estrutura de The cocktail party é de uma simetria calculada para depois desestabilizá-la de uma vez por todas: tanto a primeira cena como a última terminam com uma festa preparada por Edward e Lavinia. Mas o arco dramático, sem dúvida, é outro — e assim a aparente simetria da realidade foi virada pelo avesso. Em ambas há também a presença de um convidado misterioso, que será reconhecido depois como o Dr. Henry Harcout-Reilly, famoso psiquiatra, uma das criações mais geniais do Eliot dramaturgo. Ele faz o papel paralelo de um Hércules moderno, se voltarmos ao paralelo com a Alceste, de Eurípedes. Na tragédia grega, Alceste, esposa de Adámeto, se oferece em sacrifício para evitar a morte de seu amado, já acertado em uma aposta entre a Morte e o deus Apolo. No dia do funeral, Hércules aparece e se oferece para salvá-la do Hades, o que é plenamente alcançado.

Os paralelos são claros na peça de Eliot. O mundo onde Edward, Lavinia, Julia, Alex, Peter, Célia Coplestone é o próprio Hades, o Inferno do vazio existencial, ampliado por um flight from understanding de proporções inimagináveis, culminando na incapacidade de comunicação que terminará na falência de uma civilização. E o Dr. Henry é o Hércules que recuperará a Alceste que se ofereceu em sacrifício ao Hades. Mas quem será a Alceste de Eliot?

Eliot manobra os diálogos de uma comédia de costumes e o paralelo com a tragédia de Eurípedes com uma perícia invejável. The cocktail party se torna progressivamente cada vez mais sombria a cada ato que o espectador participa. Edward se dá conta do inferno de sua consciência, um inferno muito parecido com o de Harry em The family reunion. Lavinia percebe a sua incapacidade em amar qualquer pessoa, não só o seu próprio marido. E, no meio desta crise, há a paixão não correspondida de Peter por Célia, a única pessoa que acreditava ter tido uma verdadeira comunicação, mas que o abandonou para investir no adultério com Edward.

Se há uma Alceste na peça, ela certamente é Célia Copelstone. A conversa entre ela e o dr. Henry é um dos momentos mais comoventes da peça. Estamos diante de uma alma verdadeiramente perturbada; Célia não apenas tem noção de sua crise, mas deseja mudar sinceramente, naquela força de vontade que, como diria o cardeal Newman, quer que o velho ser morra para nascer uma nova criatura.

Será que Celia conseguiu realizar essa mudança? Saberemos isso apenas no terceiro ato, que ocorre dois anos depois dos acontecimentos narrados. O dr. Henry conseguiu que Edward e Lavinia ficassem juntos, pois ambos descobriram o terrível fato de que a união deles se deve ao elo de jamais serem amados e de jamais amarem alguém. E, de certa maneira, a situação de vazio existencial continua; Edward, Lavinia, Alex, Julia e o dr. Henry se reúnem em um ambiente em que domina a frivolidade. Mas onde está Célia? E onde está Peter?

Enquanto Alex conta sobre uma revolta ocorrida no povoado africano de Kakania, em que os pagãos nativos sacrificaram missionários cristãos por causa de uma peste mortal originária de uma proliferação de macacos, Peter aparece subitamente, alegando que voltou da Califórnia. Agora é um importante roteirista de cinema e sua primeira pergunta é sobre Célia Coplestone. “Ela sempre quis ser atriz”, Peter afirma, “e agora consegui um papel para ela”. Obviamente, Peter ainda não se esqueceu de sua paixão malograda. Mas eis que Alex dá a notícia de que Célia Coplestone está morta. Ela foi uma das missionárias cristãs assassinadas em Kakania e o povo pagão a crucificou brutalmente em um formigueiro. A notícia é chocante e logo o horror da morte de Célia invade o que era para ser uma simples festa entre amigos. É nesse momento que a engenhosidade de Eliot surge sem subterfúgios: numa situação tipicamente secular, a grande surpresa não é um caso de infidelidade conjugal ou de roubo entre parentes safados (típicos exemplos de Noël Coward), mas o martírio de uma mulher aparentemente normal.

A morte de Célia é vista pelos amigos, em especial Edward e Lavinia, como algo absurdo, desprovido de sentido, uma vez que tanto os missionários sobreviventes e a população pagã de Kakania morreriam pela peste, como depois informa Alex. O martírio é uma ferida que abre torrentes de culpa e ressentimento; Edward e Lavinia se sentem responsáveis de alguma forma, assim como Peter. O assombro permite que cada um que se envolveu com Célia repense toda a sua vida passada; mas Lavinia também percebe que o único que não está surpreso com a morte de Célia é justamente o dr. Henry Harcoutt-Reilly. E assim ele assume o seu verdadeiro papel na história de Célia Coplestone e Eliot mostra ao espectador o verdadeiro tema de toda a sua busca dramática: “Eu diria que ela sofreu tudo aquilo que deveria ter sofrido no medo e na dor e no nojo — tudo isso junto — além de relutar de transformar o seu corpo em um objeto. Diria também que ela sofreu mais porque ela tinha mais consciência do que todos nós. Ela pagou o preço mais alto no sofrimento. E isto era parte do desígnio”.

As palavras de Reilly são como uma epifania para as pessoas presentes naquela festa. Elas possuem uma claritas que ilumina a morte de Célia; não, sua morte não foi um fracasso; ao contrário, foi o triunfo mais perfeito que alguém já fez. A partir deste momento, cada um dos personagens consegue se comunicar com propriedade; Edward e Lavinia descobrem a sua responsabilidade; Peter enfrenta a perda de Célia com a coragem necessária; e Alex, Julia e o dr. Harry continuarão com a objetividade de serem os guardiões em ampararem pobres almas como a de Célia Coplestone.

Em The cocktail party, Eliot dramatiza o terrível fato de que, para escapar do inferno da precariedade humana, a única forma é aceitá-la de bom grado, como se fosse um presente, um verdadeiro dom, e praticá-la como um ato constante de julgamento. A cada minuto a morte nos confronta e devemos fazer o possível e o impossível para morrer bem, mesmo quando tudo leva ao contrário. Viktor Frankl chamava isso de “otimismo trágico”: todos nós morreremos e isso será uma experiência aterrorizante; a única coisa que podemos fazer é extrair um sentido objetivo desse fato e viver com essa tragédia iminente como se estivéssemos não só em constante julgamento, mas também em constante alegria. Isto é a imitatio Christi, o martírio para o qual não só um cristão, mas qualquer ser humano, deve estar preparado; porque a presença de Deus vem no momento da morte e a integridade da criatura aparece somente na Encarnação tantas vezes negada pela consciência humana.

O martírio de Celia Coplestone é a Encarnação reencenada no século 20, o ato correto que liberta o passado, o presente e o futuro; ele também liberta o anseio dramático de Eliot ao retratar numa forma correta um modo para a libertação da realidade implacável. Um artista mostra a sua grandeza quando expõe aos olhos de seu público não um ou dois lados da existência humana, mas todos os lados. E Eliot faz isso como poucos. O propósito moral de sua obra não o transforma em um divulgador de normas; ele prefere encontrar uma solução problematizadora, uma solução que desperte novas perguntas e novas buscas. Porque somente dessa forma, através da incessante procura pela ordem da realidade — afinal, não foi Eliot quem escreveu que “para nós só existe a tentativa”? — que venceremos as trevas da realidade implacável. Mas a busca através da obra de arte não existe para aumentar a ansiedade e, consequentemente, ampliar o escotoma que marca a fuga da compreensão da precariedade terrestre. Ela tem o projeto primordial de restabelecer a harmonia entre o homem e o mundo onde vive. Como o próprio Eliot escreveu em um trecho que serve como uma profissão de fé, publicado na introdução de seu Published essays: “Pois esta é a função última da arte, a de impor uma ordem crível sobre uma realidade comum, e a partir daí atiçar alguma percepção de uma ordem na realidade e nos levar a uma condição de serenidade, quietude e reconciliação; e então nos deixar, assim como Vírgilio deixou Dante, em direção a uma região onde não precisamos mais de nenhum guia”.

Mas, quando Vírgilio deixa Dante, eles estão na entrada do Paraíso, onde Dante encontrará Beatriz, já morta há muito tempo. Ora, não seria essa região a própria morte? As peças de T. S. Eliot cumprem exatamente o que toda obra de arte deve sugerir: preparar a alma para a colheita da morte e preparar o homem para que, enquanto a indesejada não chega, faça somente o Bem, por mais dolorido que isso pareça. Somente assim o homem viverá a realidade implacável com alguma dignidade. A presença de Deus se dá quando se é julgado o tempo todo no presente, especialmente no momento de sua morte, abolindo as amarguras do passado e as incertezas do futuro, pois a vida aparecerá neste instante em toda a sua integridade, em toda a sua completude e, em especial, em toda a sua beleza.

T. S. Elliot
Nasceu em 1888. T. S. Eliot redefiniu a poesia inglesa, com obras como Terra devastada e Os homens ocos. É considerado um dos grandes nomes da literatura do século 20. Como crítico literário, foi responsável por revelar James Joyce e apoiou outros nomes modernistas. Em 1948, ganhou o prêmio Nobel de literatura. Morreu em 1956.
Martim Vasques da Cunha

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista, doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade de São Paulo, autor de Crise e utopia: O dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e de A poeira da glória – uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record).

Rascunho