A realidade em xeque

Em "Urgentes preparativos para o fim do mundo", o real finca raízes no absurdo
Inácio Araujo, autor de Urgentes preparativos para o fim do mundo
07/02/2015

Segundo um antigo senso comum (que tem lá sua parcela de preconceito — como, aliás, ocorre em grande parte deles), o crítico em seu ostensivo e implacável exercício é, no fundo, um artista frustrado. Maneja arbitrariamente suas noções de determinada área da arte a fim apenas de desancar qualquer eventual candidato à láurea desejada.

É uma ideia curiosa, sobretudo se levarmos em conta que todo o artista, seja na leitura de outra obra, seja na produção da sua própria, lida com os meandros dessa arte, faz escolhas criteriosas, reflete sobre as implicações delas ou de suas impressões, enfim: o artista é ele próprio um crítico. E a crítica pode, ela própria, ser uma arte, pois se bem praticada permite vislumbrar num filme, num livro ou pintura uma dimensão de significado que por nós mesmos não teríamos alcançado (como o escritor que, através de sua arte, faz o mesmo em relação à existência).

É o caso de Inácio Araújo, nome caro à crítica cinematográfica brasileira, como o são Luiz Zanin Oricchio, Sérgio Alpendre e mais recentemente, com seu Na sala escura, Chico Lopes, entre outros. O leitor habitual de suas críticas na Folha de S. Paulo constatará a continuidade existente, em termos de sólido conhecimento sócio-histórico e da psique humana, entre suas análises de cinema e sua prosa, em seu mais recente livro de contos Urgentes preparativos para o fim do mundo.

É boa oportunidade para conferir o que o crítico tem a oferecer no campo artístico, ainda que num âmbito diverso ao de seu trabalho mais conhecido.

Alteridade
O livro é constituído por treze contos de temática variada, mas uma linha sólida une as partes: a decomposição e o desregramento íntimo do indivíduo em face de um mundo com valores voláteis, fugazes ou duvidosos. Esses alicerces da sociedade são retratados em níveis crescentes de absurdo, como é o caso dos contos Os conspiradores, onde grupos sociais hostilizam um suposto “delator” que ironicamente lhes fundamenta a existência, e Kafka, o terrível e onírico relato de um desafortunado cujo nome é o mesmo do grande escritor tcheco, e que trava uma batalha jurídica inútil com o fim de mudá-lo.

Os relatos ganham em força pelas opções formais deliberadas de Inácio Araújo. A fim de intensificar as experiências pelas quais passam seus personagens no espírito do leitor, o autor seleciona criteriosamente o foco narrativo, seja utilizando o narrador em primeira pessoa (em Os insepultos tal foco expressa bem a consciência de desintegração de valores no tempo e espaço), seja utilizando o narrador/testemunha (que, em A parte da sombra, é capital para estabelecer a incógnita do personagem principal bem como a alienação de seus entes e do narrador em face de sua singular percepção da existência). Nesse quesito sobressai outra das qualidades do volume: a alteridade do autor com os personagens.

Atualmente é moeda corrente na crítica literária a ideia de que a grande incidência de narrativas em primeira pessoa corresponde ao advento da autoficção, que é o recriar em bases ficcionais experiências particulares do mesmo autor. Mas na obra, onde predomina esse foco narrativo em grande parte dos contos, constata-se o inverso: o narrador em primeira pessoa aliena a figura do autor, plasmando sentimentos e reflexões dos personagens de forma bastante convincente, fugindo do pedantismo onde este mais espreita, ameaçador (por exemplo, nos contos cujo contexto remonta a grandes fatos históricos nacionais). Essa alteridade é o principal trunfo em contos como Os pequenos, onde o leitor imerge, por força da autoridade estética, no íntimo do anão da estória, concebendo a existência pelo filtro de suas limitações, observando a sordidez dos homens de um outro ângulo.

Talvez por tal motivo o jogo de xadrez seja presença recorrente em alguns contos. Este não demanda, em sua essência, uma sintonia fina com o outro, a fim de captar sua linha de raciocínio e sua visão de jogo?

Da história ao absurdo
O leitor que se aventurar por essas páginas de uma prosa enxuta e fluente, sem experimentalismos, irá identificar, sob o motivo maior da análise humana no aspecto social e intimista (dimensões essas não excludentes), duas variações: os contos que se alicerçam em eventos históricos expressivos, e os mais ligados à vida cotidiana, envolta por instituições cujas demandas, sempre alheias às particularidades dos homens, se impõem numa intensidade tal que converte a realidade em absurdo.

São os casos de Kafka, onde o absurdo se materializa na procrastinação burocrática do processo no fórum; Procura-se uma virgem, onde a moralidade repressora da instituição familiar, na figura do pai autoritário, não se contenta apenas em conseguir um partido ultracatólico para a filha liberal, mas também lhe impõe uma cirurgia para reimplante do hímen; e de O recluso, onde o leitor compactua da solidão de um preso que é repelido pelos colegas de cárcere e pelos guardas, numa pena que se prolonga indefinidamente, a tal ponto que o próprio condenado mal se lembra da transgressão que cometera, etc.

Digno de nota ainda é A parte da sombra, fantasia que parece unir A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, com O artista da fome kafkiano, onde se relata o progressivo isolamento de um cientista inconformado com as pífias conquistas da ciência em face do universo incomensurável. Verdadeira elegia aos limites cognitivos da humanidade.

Nos contos que dialogam com fatos marcantes do passado histórico há uma tendência paradoxal: à concretude desses fatos opõe-se o equívoco de identidade dos personagens que ali desempenharam algum papel. No homem de negócios alemão que no Brasil é tido por um nazista facínora, em O carrasco alemão; no religioso católico cuja ladainha triunfalista, “a guerra nós vencemos” (contra o comunismo e as tendências liberais), torna-se o único consolo em face do que, na prática, precipitou o mundo numa degeneração maior, menos aceitável sem dúvida que a moralidade militar da ditadura com a qual ele próprio compactuou (como isso nos soa atual nesses dias!); por fim, em Os insepultos, todas as convulsões político-sociais antes e depois da revolução constitucionalista de 32 são meros detalhes para a obsessão de um rapaz por uma jovem ativista pró-revolução, o que torna irônica sua condecoração após um ferimento causado por um ataque aéreo, porque nesse conto é Eros, e não algum senso de heroísmo, quem dita as ações, mesmo do ativista mais empedernido.

Em todos esses exemplos, as motivações íntimas e mundividências chocam-se com a interpretação oficial cristalizada pelos compêndios de história.

Entrecortando essas pequenas narrativas sobre os rumos dos homens, tem-se ainda reflexões dessa natureza:

E nós não encontramos nada, nada, só um nada depois de outro nada, um vazio depois de outro vazio.

Essas máximas parecem sintetizar o livro que nasce sim de um implacável exercício, não do crítico ressentido, mas do observador cáustico da existência.

Urgentes preparativos para o fim do mundo
Inácio Araujo
Iluminuras
160 págs.
Inácio Araújo
É crítico de cinema do jornal Folha de S. Paulo. Foi montador, roteirista e, eventualmente, diretor de cinema. Casa de meninas (1987) foi sua estreia na ficção, romance laureado com o prêmio de autor revelação pela Associação Paulista de Críticos de Arte. Sobre cinema, publicou Hitchcock, o mestre do medo, O cinema – O mundo em movimento e A crítica de Inácio Araújo.
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

Rascunho