Um homem aproximou-se do vendedor, entregou-lhe dois livros e também algumas cédulas. Sem que o livreiro perguntasse, ele respondeu: “Vivo recomprando, porque, sempre que escritores iniciantes me pedem dicas, eu empresto esses romances. Nada que eu possa ensinar vale mais do que umas duas horas diárias dedicadas a ler Saul Bellow”.
Aquele senhor falou alto, queria que eu ouvisse. Decerto, não desperdiçava chance de predicar. Eu jamais soube quem era, onde lecionava ou se possuía obra publicada, mas foi por causa dele que li e estudei Bellow. Neste centenário do autor de Herzog e O legado de Humboldt, eis que tenho oportunidade repassar a crença: nos romances de Saul Bellow, o aprendizado que vale por dezenas de oficinas e manuais!
Suas criações também nos levam à necessária e negligenciada indagação: “os ficcionistas contemporâneos têm feito da literatura pelo menos metade do que ela é capaz?”. E não se trata de pergunta retórica, que sugere resposta negativa, mas sim de manter saudável questionamento. O próprio trabalho de Bellow reflete um espírito inquieto, que jamais se rendeu à tentação das fórmulas exitosas, de deitar nas soluções que ele conquistou a cada título publicado.
Não que sua produção seja tão diversa que impossibilite identificar linhas de força. Apesar de pouco estudado no Brasil, em outros países ele possui respeitável fortuna crítica, com dezenas de livros e centenas de resenhas, ensaios e pesquisas acadêmicas. Seus comentadores costumam frequentar os mesmos tópicos: as fissuras do humanismo e das teorias do século 20, a condição do pós-guerra, a questão dos imigrantes, religião, alteridade, tragicomicidade, ambiguidades, contradições, etc. A afinação e a vibração dessas cordas, no entanto, variam enormemente — algo que se coloca à mostra de modo decisivo na construção das personagens.
É provável que você já tenha se encontrado algumas vezes com o ensaio Relendo Saul Bellow, do também renomado escritor Philip Roth. Entre outros tantos meios, esse texto já foi veiculado na Folha de S. Paulo, no livro Entre nós: um escritor e seus colegas falam de trabalho, e como introdução à recente edição brasileira de Herzog. A popularidade da exegese se repete em outros idiomas, o que se justifica pelo acerto do método: costurar as análises a partir das tão aparentadas e tão diversas personagens de Bellow.
Desde logo, Roth cita a grandiosidade de As aventuras de Augie March, com sua representação de um mundo ainda capaz de animar, deslumbrar, fascinar; com seu protagonista disposto a viver esse mundo para além das limitações que lhe suspeitam, anunciam ou entregam como herança ancestral. Augie se declara americano nascido em Chicago, e não reconhece qualquer autoridade que constranja sua demanda por cidadania e realização — nem mesmo a da própria vida, quando esta transcorre aquém das pretensões.
A ousadia do personagem filho de imigrantes não é outra coisa senão a expressão do próprio sonho americano. Como ressalta o prefácio de Christopher Hitchens: “As duas palavras-chave que resumem as ambições do romance de Bellow são democrático e cosmopolita. Não inteiramente por coincidência, essas são também as duas grandes esperanças da América”.
Dois trechos do romance expressam a condição social de seu autor, marcado pelo pertencimento a uma família de imigrantes na América da primeira metade do século 20, e movido também pela superação de tais grilhões! Em algum momento do livro, o narrador constata que “Todas as influências estavam enfileiradas, esperando por mim. Eu nasci e lá estavam elas para me formar, e é por isso que eu falo mais delas do que de mim”. Na abertura da obra, contudo, Augie anunciara sua postura altiva: “faço as coisas do jeito que aprendi sozinho a fazer, estilo livre”.
Como quase todos os seus demais livros, As aventuras de Augie March tem muito de autobiográfico — o que, no caso de Bellow, não assoma como fragilidade, pois talvez sua maior personagem não seja senão o próprio Saul Bellow.
A invenção de um cidadão escritor
Filho de judeus russos que emigraram de São Petersburgo dois anos antes, Saul Bellow nasceu em 10 de junho de 1915, na cidade canadense de Lechine (hoje, bairro periférico de Montreal). Aos oito anos, uma infecção respiratória forçou a reclusão que o aproximaria dos livros. No ano seguinte, sua família mudou-se para os Estados Unidos, mais especificamente para o bairro de Humboldt Park, em Chicago — cenário de muitos dos seus principais escritos.
Nos anos 1930, dois fatos marcaram sua biografia: o falecimento da mãe e o ingresso no curso de Literatura na Universidade de Chicago, onde sentiu de maneira mais intensa os ares de antissemitismo — o que o levou a se transferir para a Northwestern University, na qual estudou Sociologia e Antropologia. Depois de casado (primeiro de cinco matrimônios), chegou a lecionar, antes de se dedicar à carreira literária. O primeiro livro (The Dangling Man, de 1944) foi escrito durante as horas vagas da Marinha Mercante, porque, com o advento da Segunda Grande Guerra, fez questão de se alistar.
Após publicar aquele livro de estreia e também o segundo trabalho (A vítima, de 1947) — que, embora raros exegetas afirmem serem desprezíveis, não se pode equiparar às obras seguintes –, Bellow recebeu bolsa da Fundação Guggenheim, o que possibilitou sua residência por dois anos na Europa, período em que escreveu As aventuras de Augie March (1953), seu primeiro grande sucesso de público e crítica, vencedor do National Book Award (o qual, de forma inédita, ele obteria em outras duas oportunidades).
O próprio Bellow declarou que, com este romance, sua intenção foi “uma rebelião contra a arte de público restrito e as inibições que ela impunha”. Com este desejo de ampla aceitação, chegou ao “novo modo de fluir”, uma escrita onde trabalhou a influência da cultura judaica ancestral, do inglês padrão e do coloquialismo das ruas. Hoje, tal construção formal pode parecer óbvia e até vereda bastante percorrida pelos ficcionistas americanos; mas, nos anos 1950, ela foi recebida — nem sempre de forma entusiasta — como uma revolução na linguagem romanesca.
Sua demanda por rebelião, entretanto, não se esgotou na busca de maiores público e liberdade formal. As aventuras de Augie March é marco também de sua afirmação como verdadeiro escritor americano, ao invés de alimento para o lugar-comum e redutor de filho de judeus que pouco pode expressar além do problemático existir em nação estrangeira. Nas palavras de Hitchens, “essa foi a primeira vez na literatura americana que um imigrante agiu e pensou como um legítimo descobridor ou pioneiro”. Ao se reinventar como romancista, Bellow ajudou a reinventar a cultura de cidadania dos descendentes de imigrantes nos EUA; mais do que isso, tornou-se parte fundamental na reinvenção da própria literatura do país do qual fez questão de se tornar efetivo cidadão.
O próprio trabalho de Bellow reflete um espírito inquieto, que jamais se rendeu à tentação das fórmulas exitosas, de deitar nas soluções que ele conquistou a cada título publicado.
A multidão de grandes personagens
No trabalho imediatamente posterior (Agarre a vida, de 1956), Saul Bellow não só rejeitou a manutenção da fórmula, ele se decidiu por um protagonista que navega em maré contrária. Como explicou Roth, “Enquanto o ego de Augie é sustentado em triunfo e carregado pelas correntezas fortes da vida, o de Tommy é esmagado sob o fardo que carrega — sua sina é ‘arcar com um ônus que era seu próprio eu, seu eu característico’”.
Embora não estejam entre os títulos em catálogo no Brasil (pela Companhia das Letras), dois livros são essenciais para os interessados em conhecer e refletir sobre o legado de Bellow: Agarre a vida, que testemunha a característica aversão do autor à monotonia das fórmulas, e Ravelstein (de 2000), por ser um breve e vigoroso adensamento das diversas (e muitas vezes contraditórias entre si) jornadas empreendidas pelo romancista. No caso deste, um relançamento poderia oferecer alternativa à desastrosa tradução que a Rocco lançou em 2001.
Mas estão nas prateleiras das lojas os seus demais livros considerados obrigatórios. Em Henderson, o rei da chuva (1959), como destaca Philip Roth, o autor de As aventuras de Augie March demonstrou sua capacidade de unir o sério e o não sério, numa realização “que pede uma leitura acadêmica e ao mesmo tempo ridiculariza e parodia tal leitura”. O romance traz o que muitos exegetas apresentam como versão tragicômica de O coração das trevas, de Conrad: o rico, temperamental e beberrão Eugene Henderson resolve se aventurar pela África, onde personifica o clássico tema do choque de culturas. Apesar desse enredo, o livro possui muito de autobiográfico: Henderson é divorciado, vive conflitos familiares e foi combatente na Segunda Guerra (algo que Bellow tentou, apesar de ter servido na Marinha Mercante).
Os outros títulos em catálogo também são profundamente inspirados na biografia do autor: há dois anos, a Companhia das Letras publicou O legado de Humboldt (de 1975), cujo personagem título foi criado a partir do poeta e crítico Delmore Schwartz — que, embora desconhecido no Brasil, foi espécie de mentor de sua geração. Com expressivas nuances ficcionais, o romance traz a paixão do protagonista Charles Citrine (Bellow) pela obra de Von Humboldt Fleischer (Schwartz). E, como em outros momentos, o romancista desenvolveu projeto que, hoje, figura como algo até banal (e muito desse juízo da banalidade se deve às realizações exitosas do próprio Bellow): narrar a jornada pessoal de seus personagens de maneira a cerzir simultaneamente um grande painel da cultura de seu país.
Antes, a editora havia recolocado à disposição dos leitores o Herzog (de 1964), que é considerado por muitos como clássico maior de Saul Bellow. O pensador e professor universitário Moses Herzog é um homem de meia-idade, em crise na profissão e nos laços familiares, cujo sentimento de instabilidade e até de enlouquecimento se transformam em força criativa. “Se estou fora do meu juízo, tudo bem para mim”, anuncia a famosa primeira linha do romance.
Herzog se nos apresenta como muito de outros personagens do autor, e bastante do próprio Bellow, e também de cada um de nós — mergulhados que somos em profundas contradições, saberes e ignorância. Deste Herzog “palpitando de sentimentos e no entanto de uma simplicidade desconcertante”, Philip Roth ressalta a mente “tão vigorosa, tão tenaz, muito bem equipada com o que de melhor já foi pensado e dito, uma mente que emite com elegância as generalizações mais bem informadas a respeito de boa parte do mundo e de sua história”, e que “questiona sua faculdade mais fundamental, a própria capacidade de compreender”.
A melhor e única família de literaturas grandiosas
Tendo formulado desde muito cedo a esquisita e arriscada hipótese de me tornar crítico literário, ouvir aquele senhor na loja de livros usados, o homem que recomendava a vasta obra de Saul Bellow, foi momento fundamental para minha posterior visão das possibilidades — nem sempre valorizadas — do romance contemporâneo.
Em As aventuras de Augie March, encontrei a disposição para contar histórias com altivez, algo que foge à tendência teórica e literária de se debruçar em ruínas, em fragmentos, dúvidas e pessimismo. Mesmo com a influência que exerceu sobre alguns importantes romancistas da segunda metade do século 20, grosso da produção contemporânea não faz coro àquele livro de linguagem e protagonista exuberantes.
Em um Brasil onde a busca de identidade nacional é traço tão definidor e corriqueiro, Augie March (e o próprio Bellow) era testemunho também de que é possível ir além da tentativa de decifração. Ele se desenrolava para mim como a própria identidade em processo de se reinventar e afirmar — literatura não como chave de interpretação da nação, mas como verdadeiro ressignificar/agir que se inscreve e até transforma as dinâmicas com que as identidades culturais são conformadas.
Não demorou, todavia, para eu descobrir que Bellow trilhou caminhos bem díspares, o que me deixou fortemente impressionado pela inquietação do romancista — dramaticamente destoante da monotonia de boa parte dos livros nos quais eu me aventurava. Descobrir os universos de Saul Bellow funcionava como alerta contra os perigos do ânimo sossegado e das fórmulas que transformam uma atividade eminentemente criativa em mais uma fonte mercantil de produtos pasteurizados, que vestem um ofício de tanto potencial provocador em mais uma lida preguiçosa e empobrecedora.
Outra convicção que Bellow me reafirmou foi a da excepcionalidade que sustenta os grandes escritores. Nenhuma técnica ou rotina de trabalho pode oferecer a sensibilidade e a bagagem necessárias para erguer monumentos como Herzog. Em tempos de “pós-modernidade”, a tentativa de problematização das personagens, por exemplo, frequentemente sucumbe diante da superficialidade com que as contradições são apresentadas. São incontáveis as teorizações e debates sobre o sujeito cindido, sobre questões de identidade, de estar ou mover-se em um mundo fragmentado e mercantilizado; mas, paradoxalmente, as personagens parecem saídas de uma máquina, como se resultados de algoritmos. Porque, na ausência daquelas sensibilidade e bagagem, muitos autores recorrem a maçantes combinações de clichês, atalhos e falta do que dizer — calcanhares disfarçados de simplicidade, despretensão e desejo de expressar o sentimento de vazio da contemporaneidade.
Sem fugir às contradições, ambivalências e desejo de processos reflexivos mais densos, Saul Bellow criou personagens que trazem — sem apelar para embustes teóricos e técnicos — o cerne da angústia de nosso tempo: a demanda por um humanismo que, ainda fundado na dignidade do homem, também dê conta das inquietações que resistem, das ansiedades que as conquistas de maiores liberdade e autonomia não foram capazes de vencer (muito pelo contrário, elevou-as ao limite de nossas forças). E essas criaturas de Bellow são como a maioria de nós, imersos em sentimento (não raro desesperador) de que algo nos falta, mas nem por isso se rendendo e entregando as pontas. Quando especialistas resolveram decretar a morte do heroísmo na literatura, o autor de As aventuras de Augie March ofereceu novos, diferentes e tão contemporâneos heróis — protagonistas que insistem na caminhada, apesar das neuroses e assustadores impasses de nosso tempo.
Saul Bellow morreu em 5 de abril de 2005. Agora, que vivemos um século de seu nascimento e uma década de sua despedida, fica ainda mais nítida a impressão de que suas personagens são mais reais do que nós mesmos, e que não cessam de nos inquietar e indagar se temos feito da literatura o que ela já provou ser possível. Mais: elas perguntam se buscamos fazer de nossa humanidade tudo aquilo que tanto sonhamos e teorizamos. Bellow nos deixou exemplares da melhor e única família de literaturas grandiosas: aquela que nos faz despertar (altivos ou angustiados), ao invés de adormecer sobre os falsos ossos que, cotidianamente e pelo preço mais alto, estamos sempre comprando.