A química do diabo

Trilogia ficcional de Hilary Mantel se vale de apurada pesquisa histórica para refazer a trajetória do estadista inglês Thomas Cromwell
Ilustração: Oliver Quinto
30/08/2021

“Derrubado, atordoado, em silêncio, ele caiu; estatelado nas pedras do pátio. Sua cabeça vira de lado, seus olhos se voltam buscando o portão, como se alguém fosse chegar para ajudá-lo. Um só golpe, bem dado, poderia matá-lo ali mesmo.” É o ano de 1500. Trata-se de Thomas Cromwell, então um garoto de 15 anos, espancado por seu pai, um bêbado violento. Ele iria sobreviver e fez mais: tornou-se ministro do rei Henrique VIII e um dos homens mais poderosos da história da Europa.

Essa é a primeira vez que podemos ver Cromwell de tão perto. Quem assim o apresenta é a autora inglesa Hilary Mantel, duas vezes agraciada com o Booker Prize. Em uma trilogia de quase 2 mil páginas, composta por Wolf Hall, Tragam os corpos e O espelho e a luz, ela reconstrói um dos períodos mais turbulentos do Reino Unido, usando uma combinação inovadora de pesquisa detalhada e uma câmera imaginária que segue Cromwell desde a cena reproduzida na abertura deste texto, como se estivesse encostada no chão, até o auge de sua carreira, quando sua cabeça estaria bastante próxima à do rei, e depois, em sua queda meteórica, que culminaria com sua cabeça mais uma vez indo ao solo — desta vez, separada do corpo.

Dotado de inteligência e visão muito além da média, e uma determinação que lhe dava coragem para enfrentar seus maiores inimigos, Thomas Cromwell arquitetou nada menos do que a mudança no equilíbrio de poder do continente. Em 1529, quando o cardeal Wolsey o designou como membro de seu conselho, a Inglaterra era uma nação periférica subserviente a Roma; menos de 100 anos mais tarde, o Reino Unido era o grande senhor dos mares. As circunstâncias ajudaram, mas a atuação de Cromwell foi decisiva.

Há séculos entendemos que somente um homem cruelmente ambicioso e traiçoeiro poderia tanto. A execução de seu inimigo Thomas More, canonizado pela Igreja Católica em 1935 e eternizado no filme de 1966 O homem que não vendeu sua alma, era vista até pouco tempo atrás como a perfeita medida do mal causado por Cromwell. E eis que chega a trilogia de Hilary Mantel para inverter tudo isso. Ela retrata um novo Cromwell, que transpira, raciocina, sangra.

Perdas e fé
Após a abertura do primeiro volume, Wolf Hall, no qual o jovem Cromwell é espancado pelo pai, Mantel o acompanha à França, depois à Itália e Países Baixos, onde vai aprendendo tudo que pode: idiomas, modos, finanças, técnicas militares e engendra o networking dos sonhos de todo millennial. De volta à Inglaterra, em 1515, casa-se e tem 3 filhos.

Enquanto sua carreira de advogado progride, o personagem sofre terrível revés: perde, em 1529, a esposa e duas filhas para a epidemia de sudor anglicus, a “doença inglesa do suor” — provavelmente causada por um hantavírus e transmitida por ratos, que causava a morte em poucas horas e sem qualquer possibilidade de cura.

Para um homem acostumado a manter a vida sob controle, essas perdas poderiam levá-lo a abandonar a fé. Em vez disso, o que se vê em suas atitudes a partir de 1529 é uma maior aproximação — ainda secreta — à fé protestante, com distanciamento da Igreja Católica. É emblemático seu decreto de 1538, de que toda igreja na Inglaterra deveria ter uma Bíblia em inglês, pela primeira vez em tradução técnica e completa do latim ao inglês por ele patrocinada. Uma bíblia em inglês poderia ser lida diretamente pela população sem a intermediação do clero, dando-lhes acesso ao que realmente estava escrito ali. Dispensada a intermediação do clero entre homem e Deus.

É um pensamento deveras revolucionário: cada um é responsável pelo salvamento de sua alma. À medida que o cristianismo distanciou-se de suas origens no judaísmo, onde não existe hierarquia clerical, gradativamente deu ao papa e ao clero crescentes poderes semidivinos.

Agora Cromwell estava, pouco a pouco, introduzindo o protestantismo na Inglaterra, até então profundamente católica. O próprio rei não estava preparado para tanta mudança e esse atrito contribuiu, em parte, com a queda de Cromwell. Mas não antes que a transformação fosse irreversível.

Potencialmente maléfico
Tudo começou com Anne Boleyn. Para forjar uma aliança entre os reis espanhóis e a Inglaterra, o rei Henrique VIII havia sido obrigado, aos 12 anos, a comprometer-se em casamento com Catarina de Aragão, viúva de seu irmão, o príncipe Arthur. As bodas naturalmente só aconteceram alguns anos mais tarde, mas o ressentimento já era profundo. Dos seis filhos que Catarina teve, só uma menina sobreviveu. Com o pretexto de buscar uma esposa que pudesse “dar-lhe um herdeiro masculino”, Henrique escolheu para ser sua segunda esposa Anne Boleyn, cortesã bem mais jovem do que a rainha. No entanto, o cardeal Wolsey não conseguiu convencer o papa a conceder a anulação do casamento com Catarina. Henrique VIII decidiu que não precisava mais do papa para casar-se com Anne Boleyn: declarou-se chefe supremo da Igreja da Inglaterra. Simples? Nada simples.

Ele jamais teria sido capaz de arquitetar o plano complexo de marketing da ideia — estamos falando de fé —, implementar sua logística, administrar as operações financeiras desde cunhar moedas com a efígie da nova rainha até confiscar, registrar e trancafiar as fortunas em pedras e metais preciosos acumulados nos mosteiros. Para supervisionar uma operação dessa magnitude, Henrique deu a Cromwell controle total da impressão da Bíblia, da compra e venda das terras da Coroa, da adminsitração da Casa das Jóias da Coroa e da Abadia de Wesminster; passou-lhe a supervisão dos bosques Reais e, talvez o mais importante, nomeou-o o receptor das petições no Parlamento. Tudo passaria pela mesa de Cromwell, ou não passaria de jeito nenhum.

Esse jogo de xadrez não precisa ser maléfico, mas tem potencial. Hilary Mantel delineia meticulosamente os movimentos através de diálogos ficcionalizados, mas tudo que Mantel narra tem sólida base factual. O que poderia tornar esses volumes profundamente entediantes é transformado com sutileza, mas sem pretensa neutralidade, em leitura envolvente.

Segundo a própria autora, o que a cativou foi justamente a história não contada, quando descobriu que boa parte do trabalho biográfico sobre Cromwell tinha muitas imprecisões. Ao longo dos séculos, a história do antagonista Thomas More roubou a curiosidade sobre esse outro Thomas; até recentemente, Cromwell pouco aparecia na ficção e no teatro. Mantel decidiu voltar ao material original, cartas, éditos, certidões. Ela não esconde uma simpatia semiobjetiva pelo sujeito de sua pesquisa, mas não permite que isso a leve a omissões ou à criação de fatos inverídicos.

Decisões essenciais
A autora tomou duas decisões essenciais que dão aos livros o batimento cardíaco. Primeiro, optou por narrar em terceira pessoa, mas como se filmasse tudo desde o ombro de Cromwell. Isso dá ao leitor a proximidade espacial, permite que se olhe nos olhos de seus interlocutores, inclusive nos olhos de Sua Majestade, o que seria proibido no mundo real. E a segunda decisão é do uso dos verbos no presente: a ação se desenrola na presença do leitor. Mesmo sabendo o final — todos sabem que o mocinho morre —, a sensação de surpresa é constante.

Em vez de um manipulador sem escrúpulos, o que se vê é um homem brilhante, com o olhar no longo prazo e continuamente surpreendido por obstáculos. E ele nem precisou ler manual de autoajuda para saber que todo obstáculo é uma oportunidade. Para vencer, o Cromwell de Hilary Mantel precisa ser onisciente — sabe de tudo, tem espiões em toda parte.

Nos três livros há momentos em que a questão é sobrevivência. Como escreve a autora, “nenhum de nós é um estranho à luta por vantagem”. No nosso mundo, porém, as lutas são por um emprego, um parceiro, moradia. Entre os Tudors, por outro lado, perder a luta resultava em perder a cabeça. Literalmente.

Hilary Mantel retrata um novo Thomas Cromwell, que transpira, raciocina, sangra.

Antagonistas
A trilogia está dividida por antagonista. O primeiro volume, Wolf Hall (2009), cobre a rápida ascensão de Cromwell a partir de sua adolescência, entre 1500 e 1535, com clímax no julgamento pró-forma e execução de Thomas More, o primeiro de vários políticos poderosos a ser destruído por Cromwell. Em vez de santo, More surge aqui como defensor fanático da Igreja Católica Romana e da autoridade absoluta do papa, fundamentalista e sanguinário. Em contrapartida, Cromwell é alguém ansioso por servir ao rei, à nação e à família.

O título, Wolf Hall, é altamente significativo. É o nome da propriedade dos Seymour, família de Jane Seymour, que viria a ser a terceira esposa de Henrique VIII. O enredo começa quando o rei está determinado a anular seu primeiro casamento para casar-se com Anne Boleyn, mas o título do livro é como um aviso para a própria Anne Boleyn de que seu fim virá, quando o rei passar a se interessar por Jane Seymour, de Wolf Hall. Também é uma alusão ao provérbio em latim homo homini lupus, (“o homem é o lobo do homem”). O oceano onde grandes homens navegam é perigosamente oportunista.

Em 2012, Mantel lançou Tragam os corpos, segundo volume da trilogia. O título é um aviso: estamos em um campo de mortos.

Suas filhas estão despencando do céu. Ele as observa montado no cavalo, a imensidão dos campos da Inglaterra às suas costas; elas arremetem para baixo, as asas douradas pelo sol, ambas com o olhar sedento de sangue.

Cromwell observa seus falcões, que receberam os nomes de suas filhas mortas, agora transmigradas. É um romance focado quase exclusivamente nos acontecimentos que levam à execução da rainha Anne. Tudo se passa em menos de um ano. Mais uma rainha precisa ser descartada, mais um julgamento deve ser encenado. E dessa vez Cromwell se esmera. Arrasta junto os supostos amantes da rainha, entre eles seu próprio irmão, torturados até “confessar”. Trata-se de uma vingança. E como seria de se esperar, esse ato rende a Cromwell um título de nobreza. É o pináculo de poder para um plebeu. Dessa altura só se pode ir em uma direção: para baixo.

Nesse mar de sangue começa o terceiro volume, O espelho e a luz:

Assim que a cabeça da rainha é decepada, ele se afasta, uma pontada aguda no estômago lembra a ele de que está na hora de um segundo desjejum, ou talvez de um almoço prematuro. (…) O pequeno corpo jaz o cadafalso onde caiu: de bruços, as mãos estendidas, ele nada numa poça carmim, o sangue penetrando entre as tábuas.

Cromwell está cada vez mais longe do homem de princípios dos outros dois volumes e mais perto da danação. Após caminhar com esse personagem por cinco anos, tempo que levou para a pesquisa, a autora não dilui as tintas da maldade que surgiu dentro dele. Ele está no auge de sua carreira, em pé no meio de uma poça de sangue de uma mulher frágil, de “pequeno corpo”. Covardia, crueldade, traição. A química do diabo.

Engenharia da escrita
Esse Cromwell é pura engenharia da escrita. A linguagem é mais lenta, desdobra-se sem ser repetitiva. A mística está presente, as bordas do personagem estão menos nítidas para o leitor e para o personagem. Imagens poéticas se sucedem, às vezes em um turbilhão:

Ele vê como eles são visíveis, e como brilham. São destilados em uma faísca, em um instante. Há ar entre suas costelas, sua carne é prismada de luz, e a medula de seus ossos está fundida à graça de Deus.

Na voz de uma terceira pessoa, Mantel constrói a sensação de primeira, coloca o leitor no centro da poça de sangue. E o verbo sempre no presente: o leitor vê tudo em tempo real.

Para multiplicar o efeito, há espelhos em toda parte. Em um rompante de bajulação, Cromwell diz ao rei: “Vossa Majestade é o único príncipe. O espelho e a luz dos outros reis”. Ele mente, é claro, mas o rei fica encantado com a frase. Henrique possuía mais de 100 espelhos, uma preciosidade incalculável à época, onde buscava, sem sucesso, o jovem garboso que fora.

Na ausência de uma imagem que lhe agrade, o rei se satisfaz ao ver-se refletido na força de Cromwell. Mal sabe ele que a esta altura Cromwell se vê refletido em seu passado sangrento. Ora é levado de volta à sua infância, ora aos fantasmas de seus inimigos. “Os mortos perambulam nas alamedas da próxima vida como estranhos perdidos em Veneza. Ao final, na espada de seu algoz está escrito Speculum justiciae, ora pro nobis” — “espelho da justiça, orai por nós”. Espelho em forma de espada.

Marcas da autora
Duplos aparecem em muitas formas nessa trilogia. Há inclusive críticos que enxergam em Cromwell um duplo de Mantel. A autora nasceu em uma cidadezinha perto de Manchester, em família modesta e muito católica. A rígida criação na escola de freiras — que odiava — instigou nela a sensação de culpa desde os quatro anos de idade. Católicos devotos não deveriam esperar uma imagem simpática da igreja em seus romances. Após casar-se, viveu em Botswana por alguns anos; trabalhou como jornalista e assistente social, mas a partir do lançamento de seu primeiro romance, em 1988, começou a receber importantes prêmios literários, até culminar nos dois Man Booker Prize.

Sua marca no romance histórico é profunda. Primeiro pela ausência de julgamento moral — toma muito cuidado para não projetar o que sabemos hoje sobre o que não se sabia séculos atrás. Também por seu esforço em contar uma história familiar de um ponto de vista estranho, e nessa linha não poupar o leitor da maldade e obscuridade dos personagens.

A maneira com que transforma Cromwell em herói trágico é o perfeito exemplo: ele é cego ao modo com que causa sua própria destruição, por hubris ou ignorância. E, finalmente, sua insistência em narrar a história através das frases e ações do protagonista. Quem decide o que o protagonista pensa é o leitor.

Cromwell se presta para essa técnica, porque foi um homem de ação, um grande estadista cujas palavras estão registradas de muitas formas. Sabemos pelos documentos existentes que ele lutou pela criação de hospitais e leis de apoio aos necessitados, instituiu o censo na Inglaterra, decretou que todo nascimento, batismo, casamento e morte deveriam ser registrados em cartório, e com essas medidas semeou um país organizado, com saúde e educação públicas de qualidade.

Hilary Mantel não entra nesses pormenores, mas fornece dados suficientes para o leitor enxergá-lo como um grande homem com suas pequenezes. Restam muitas perguntas. O maior trunfo de Hilary Mantel é justamente não responder a todas as perguntas. Mesmo tendo acompanhado a cabeça de Cromwell do chão às alturas da nobreza e de volta ao chão, ainda é impossível resumi-lo em uma palavra. Ser ambíguo é ser humano.

Wolf Hall
Hilary Mantel
Trad.: Heloísa Mourão
Todavia
544 págs.
Tragam os corpos
Hilary Mantel
Trad.: Heloísa Mourão
Todavia
344 págs.
O espelho e a luz
Hilary Mantel
Trad.: Heloísa Mourão e Ana Ban
Todavia
768 págs.
Hilary Mantel
É uma escritora e crítica literária britânica, cuja obra vai da memória pessoal à ficção histórica. Ganhou o Man Booker Prize, em 2009 e 2012, pelos livros Wolf Hall e Tragam os corpos — primeiro e segundo volume de sua trilogia sobre Thomas Cromwell, que se encerra com O espelho e a luz.
Vivian Schlesinger

Escritora, tradutora e mediadora de debates literários. Autora do livro de poemas Papaya na madrugada.

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