Pego um Uber na Praça Osório. Logo percebo que o motorista, um homem alto e espinhento, como se tivesse saído de uma guerra, tem a face esburacada. Os lábios estão roídos por cortes bruscos, as bochechas perfuradas e, das cavidades, escorre um suor imundo. O cabelo é ralo e parece triturado por alguma máquina antiga. O rosto é estreito e torto. Devo estar vendo coisas.
“O fim está chegando”, o motorista anuncia. Acabei de assistir, desolado, a um noticiário sobre a guerra. Temo que também o motorista esteja tomado pela ideia de que logo chegaremos a um conflito nuclear. “Não serão tão loucos”, eu pondero, sem muita certeza do que digo. “Logo teremos um acordo de paz.” Tento conservar o otimismo, mas o motorista, indignado, me corrige. “Não falo da guerra, meu senhor. Falo do Império Romano.”
Meus pensamentos travam. Um motorista de Uber, no trânsito de Curitiba, em pleno século 21, preocupado com a queda do Império Romano? Pelo pouco que sei, e quase nada sei, os historiadores consideram que o grande império ruiu em 476, ano em que o imperador Rômulo Augusto foi deposto. Rômulo Augusto? Só agora me dou conta de que, quando chamei o Uber, o aplicativo registrou o nome do motorista como Rômulo.
“O senhor pode ir pela Souza Naves”, tento mudar de assunto. “O trânsito estará melhor.” Com uma expressão enojada, o motorista me corta: “O senhor é mais um dos que negam”, diz. Nego o quê? Não sou negacionista, nem terraplanista, sou um homem do progresso. De que esse sujeito está falando? “Como o senhor não consegue ver que só agora o Império Romano chega a seu fim?” — ele insiste.
Em um esforço para pisar a terra firme, pergunto se ele é historiador. Se é, pelo menos, um professor. “Fui, durante muitos anos, agente de segurança”, o motorista rememora. “Aproveitava as horas de plantão para ler.” Leu os clássicos — leu Ana Karenina, que considera um romance fantasioso e mal escrito, e leu também alguns romances de cavalaria, com os quais se identificou. Talvez, como tantos, tenha enlouquecido durante a leitura do Quixote, me ocorre. “Explique-me melhor essa história da queda do Império Romano”, não me contenho e peço. Um calafrio me percorre.
Argumenta Rômulo, meu motorista, que o Direito, a Democracia, o Estado, a civilidade e até os aquedutos, o cimento e os sanitários são invenções do Império Romano. “Agora tudo isso chega ao fim”, ele anuncia, sem disfarçar o desespero. Logo entendo que não está em condições de dirigir. Nas mãos de um motorista transtornado, quem corre o perigo de desmoronar sou eu. “Vá mais devagar, por favor. Não tenho pressa.”
Mas tenho pressa sim — quisera chegar logo em casa, inteiro e são, e me livrar desse louco. “Talvez o senhor tenha razão”, contemporizo, na esperança de que ele se acalme. “Seria o fim do Império Romano, mas não seria o fim do mundo”, argumento, envergonhado. Para Rômulo, o motorista, continuamos todos na Roma Antiga. O que significa dizer: continuamos todos na Antiguidade, só agora a Idade Média se aproxima.
Só agora a Idade Média chega? Não posso negar que talvez ele tenha razão. Há um retrocesso, o mundo inteiro é repuxado para trás. As trevas nos envolvem. Talvez meu motorista esteja certo: só agora o Império Romano termina. Até aqui nos iludimos com a ideia infantil da modernidade. O tal “mundo contemporâneo”, de que todos falam, não passa de uma antecipação da Era Medieval. Deus nos proteja! — penso, já entrando no novo espírito de época.
Para o motorista Rômulo, porém, essa escuridão é a luz. A verdadeira luz. “Dessa escuridão sairá o monstro que nos engolirá”, anuncia. Talvez seja um leitor do Apocalipse. Pode ser que seja só um psicótico que dirige um Uber. “Não sou um saudosista, quero que o império desmorone”, esclarece. Explica que, depois da queda, surgirá um túnel. Uma grande escuridão. “O senhor não deve temer o escuro. Não se comporte como as crianças.”
Já não sei o que dizer. Na altura da Visconde de Guarapuava, ele dá uma freada brusca. “Não tenho pressa”, eu insisto, na esperança de acalmá-lo, mas tenho pressa sim. O motorista não se abala — até porque já está abalado. Não está em Curitiba, está na Roma Antiga. E tem uma missão: confrontar seus passageiros com a dura realidade das trevas. “O império está caindo”, ele insiste. “Isso não o faz estremecer?”
Quando entramos na João Negrão, em um impulso cheio de desespero, anuncio: “Preciso descer aqui. Pare por favor”. Dá uma gargalhada, que é também um grito, uma ordem, uma chamada à razão. “Por que o senhor se recusa a ver?” — estrebucha. “O Direito, a Democracia, os aquedutos, os sanitários, tudo isso está prestes a acabar.” Acelera ainda mais. E buzina, talvez de alegria.
Confiro se meu cinto de segurança está afivelado. Agarro-me ao encosto do banco da frente. Apesar de ser ateu, rezo um Pai-Nosso em silêncio. Entrego-me. Nada há a fazer diante da queda de um império. Ainda mais se é o próprio imperador derrotado, Rômulo Augusto, quem a anuncia. Ou não terá sido Rômulo Augusto, terá sido Constantino? Os nomes se embaralham em minha mente. Sempre fui um péssimo aluno de história.
“De que modo o senhor está se preparando”, meu motorista insiste. E, sem me deixar responder, conta que acumula víveres, guarda na área de serviço dezenas de galões de água, e que improvisou uma horta de sobrevivência em sua banheira. Comprou dois cães de guarda, que talvez o protejam dos ataques inimigos. Reforçou as fechaduras. Agora usa grossas trancas de ferro para sustentar as portas. “Eu estou pronto”, diz, “mas a maior parte das pessoas, como o senhor, se recusa a ver”.
Felizmente, entramos na avenida São José. Estou perto de casa. O império desmoronará, mas eu escaparei. Só consigo pensar nisso. Salto e nem me despeço. Entro no elevador. Assim que abro a porta do apartamento, um alvoroço se instala em minha mente. Largo-me no sofá. Tento tirar um cochilo, não consigo. E se Rômulo Augusto, o motorista, estiver certo? Ligo a TV. Há um noticiário. Lá estão os bombardeios que não param.