Desde o século 6 d.C. os homens de bem fazem de tudo para não cometer nenhum dos pecados que o papa Gregório Magno (540-604) determinou como capitais. (Dizem os etimologistas que “capital” vem do latim caput, que significa cabeça. Esses pecados-cabeça, então, seriam os pais de todos os outros pecadilhos.) Que podem ser também considerados como pecados mortais, porque significariam, de acordo com o representante de Deus na Terra (só para os católicos, é claro), a morte da alma.
Para os que fugiram das aulas de catequese ou para os que não assistiram ao filme Seven (ótima produção americana com Kevin Spacey, Brad Pitt e Morgan Freeman), aí estão os sete grandes pecados que a humanidade deve evitar a qualquer custo, sob a ameaça de ir direto para o quente e vermelho inferno, em vez de ascender ao azul celestial: soberba, avareza, luxúria, ira, gula, inveja e preguiça.
Cheíssimo deve estar o inferno. Não há quem não tenha cometido, pelo menos uma vez na vida, um desses pecados mortais. (Claro que, quem se confessar ao padre mais próximo e cumprir direitinho a penitência assoprada por Deus Todo Poderoso no ouvido do clérigo será redimido. É que tratou de um pecado com um belo antídoto: o poderoso sacramento da confissão — dou uma mãozinha, outra vez, aos fujões das enfadantes aulas da catequese — como eu mesma, mas que acabei estudando em colégio católico — os sacramentos também são sete: batismo, confirmação, eucaristia, penitência, unção dos enfermos, ordem e matrimônio).
Pois bem. O mais horrendo dos pecados é a soberba. Tudo começou com Lúcifer. Anjo dos mais belos, braço direito e esquerdo de Deus, lá no céu. Era tão bom em suas funções, comandando os outros anjinhos, que acreditava merecer um aumento. Como só tinha um superior, queria sê-lo. Ora, ninguém pode ser mais superior do que Deus-Todo-Poderoso. Que história é essa? Deus, o Soberbo, não poderia deixar que isso acontecesse. E expulsou o coisa ruim para o quinto dos infernos. (Na obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, o diabão até pede perdão ao Pai. Mas ele não pôde perdoá-lo. Afinal, como Deus seria tão bom se não houvesse alguém tão mal? Ótima sacada do homem que ganhou o Nobel.)
Lá, no quentinho cheio de fogo, gritos, avarentos, luxuriosos, gulosos, odiosos, preguiçosos e invejosos, Satanás comanda o exército de soberbos que não confessaram seus pecados. Hitler, Nero, Cleópatra, presidentes de grandes potências mundiais, todos ali, fazendo festa, em contraponto a grandes benfeitores, que lindamente tocam suas harpas e valsam sobre as nuvens.
Bem. Soberbo é aquele que quer ser — ou pensa ser — mais que os outros pobres mortais. A soberba originaria, portanto, todos os outros seis pecados:
Avareza: quem se acha o rei da cocada preta deve ser, em algum ponto, um mão de vaca daqueles. Alguém como Harpagon, personagem de O avarento, de Jean-Baptiste Molière, ou a mãe de São Pedro, uma avarenta sem precedentes na história das genitoras dos apóstolos;
Luxúria: o soberbo deve se entregar a todos os prazeres da carne e achar que ninguém é melhor de cama, mesa e banho do que ele. Qualquer personagem interpretado por Michael Douglas é um desses;
Ira: é facilmente aflorada, caso algum enlouquecido ache que está aos pés do soberbo em questão. O malvadão Iago, da obra Otelo, de William Shakespeare é um bom exemplo;
Inveja: mesmo o mais soberbo dos soberbos gostaria de ser ainda mais; é um invejoso compulsivo. Malévola, a bruxa terrível do conto-de-fadas da Bela Adormecida ficou morrendo de inveja das três fadinhas velhuscas que foram convidadas pelo rei Estevão e sua mulher para o batizado da linda Aurora;
Gula: compartilhar a comida não é com ele; nem a bebida, é claro. É alguém como D. João VI, o ávido comedor de coxinhas de galinha ou codorninhas;
Preguiça: ah, a preguiça… o soberbo não está nem aí para nada, não se preocupa com nada e quando faz algo, certamente o faz de má vontade. Apesar de ser um preguiçoso do bem, exemplifico com Macunaíma, que só falou aos seis anos. Sua primeira frase? “Ai, que preguiça…”
A soberba, portanto, poderia ter sido o primeiro de todos os livros da coleção Plenos Pecados, da Objetiva. Mas foi o último. E escrito por um argentino… Tomás Eloy Martínez, que vive nos Estados Unidos há anos. O vôo da rainha, que ganhou o prêmio Alfaguara, na Espanha — um dos mais respeitados prêmios literários daquele país, no valor de US$ 175 mil — é, segundo o autor, levemente inspirado em um caso bastante conhecido dos brasileiros: o assassinato da jornalista Sandra Gomide por seu ex-chefe e ex-amante, Antonio Marcos Pimenta Neves, então diretor de O Estado de S. Paulo.
Como é levemente inspirado na história de Pimenta e Sandra, O vôo da rainha conta a história de Gregório Magno (nome conhecido?) Camargo, o editor do jornal argentino El Diario, o mais respeitado de todo o país. Tudo em ordem. Só que G.M (não gostava que soubessem seu verdadeiro nome) Camargo achava que era o melhor entre os melhores jornalistas de todo o mundo. Sentava-se em poltrona reclinável e colocava os pezões sobre a mesa, estivesse quem estivesse com ele na sala. Dizia conhecer o caráter de todos os jornalistas que trabalhavam com ele. Porque, para ele, o homem é o que escreve. E, é claro, achava todos os repórteres do diário uns medíocres sem imaginação.
Menos Reina Remis, uma jovem bonita, com idéias diferentes sobre a vida e sobre a religião. Não demorou a apaixonar-se pela juventude e idealismo da repórter. Mandava-a em missões importantes, aumentou seu salário e até arrumou um novo apartamento para ela morar. Acreditava que seria irresistível a ela. Ele, um bem-sucedido jornalista, muito rico e belo, aos 60 e poucos anos (acreditava-se belo, pois não via, ao olhar no espelho, que tinha uma senhora barriga, uma papada que balançava com o vento e uma aparência bem mais velha do que se lembrava).
Reina (rainha em espanhol), é claro, apaixonou-se pelo que Camargo representava. Pelo poder. Tiveram um tórrido romance, que durou pouco mais de dois anos, e várias promoções para a jovem jornalista que amava cavalgar. Só que Camargo, que de bobo não tinha nada, seguia todos os passos de sua rainha, como um zangão. Bisbilhotava sua comida, suas anotações, suas correspondências e seus e-mails. Deixou de lado as preocupações com a filha, que morria de câncer em um hospital americano, separou-se da mulher, e alugou um quartinho em frente ao apartamento da mulher que lhe tirava o sono. Espionava a moça com um telescópio moderníssimo. Vigiava todos os seus passos. Descobriu que a descarada o traía com um jornalista colombiano. Tinha de se vingar. Afinal, ninguém descarta assim, sem mais nem menos, o melhor de todos os homens da Argentina — quiçá do mundo inteiro!
Louco de ciúme, enchia a caixa postal da amada de recados. Queria porque queria que se casassem. Ela, nada. Queria apenas viver um grande amor e cavalgar, vez ou outra, no haras em que o pai trabalhava. Da soberba para a ira foi um pulo (não sem antes ter passado pela luxúria, pela inveja do tal colombiano, pela preguiça com o jornal, pela gula com que devorava todos os movimentos da abelha rainha, e pela avareza de não dividi-la com ninguém). Cego de ódio, tramou sua vingança pessoal: fez a moça dormir pesado, com remédios potentíssimos e assistiu, impassível, um mendigo violentá-la e passar-lhe gonorréia. Depois, o golpe de misericórdia. Seguiu Reina até um haras e disparou dois tiros.
Qualquer brasileiro que tenha acompanhado os jornais, há dois anos, lembra bem dessa história. Antonio Marcos Pimenta Neves, diretor de um dos maiores jornais do país, O Estado de S. Paulo, matou a amante e repórter Sandra Gomide com dois tiros, em um haras paulista. Coincidência? Tem mais: o jornalista brasileiro também era casado, sua mulher também estava nos Estados Unidos. Mais? Uma semana antes de cometer o crime, Pimenta Neves ligou para Tomás Eloy Martínez. O escritor até cita o caso do brasileiro no livro. “No domingo, 20 de agosto, às duas e meia da tarde, Antonio Marcos Pimenta Neves, 63, assassinou com dois tiros Sandra Gomide, 32. Ambos trabalhavam no mesmo jornal e mantiveram um romance por três anos. Fazia alguns meses que Sandra tentava romper a relação, mas o obsessivo Pimenta, desesperado e louco de despeito, não permitia. […] bisbilhotava seu correio eletrônico, seguia seus passos […]espionava as sombras de sua casa nas noites de frio […] Quando a viu chegar, sacou seu Taurus calibre 38 […]. Ouviram-se então dois disparos: o primeiro acertou a vítima no pulmão; o segundo, enquanto caía, atingiu-lhe a cabeça, pouco acima da orelha esquerda, e foi dado a uma distância de 40 cm. […] (pág. 49 a 53).
O personagem de Martínez fez o seguinte: “[…] Por prudência, Camargo leva consigo o revólver Taurus calibre 38. […] Tira com naturalidade o revólver do coldre que traz pendurado no cinto, aponta para as costas da mulher e puxa o gatilho. […] Você a vê tropeçar e cair […]. A nuca fica a descoberto e você vê a pinta, que tantas vezes beijou […] E descarrega a segunda bala, agora de perto, sobre a pinta […] (pág. 268 a 272).
No final do livro, Martínez escreve. “Todos os personagens e lugares deste romance, até aqueles que parecem calcados na realidade, correspondem à ordem da ficção. Lê-los de outro modo violentaria sua natureza.” Ainda bem que ele avisou.