O gênio literário de W. Somerset Maugham é bastante conhecido no Brasil a partir de dois livros muito significativos deste autor: O fio da navalha e A servidão humana. As duas obras recebem menção nas listas e antologias de melhores livros do século 20. Ocorre, no entanto, que a produção literária de Maugham não se circunscreve a esses dois títulos. E o leitor se surpreenderá ao saber que, aos 38 anos, o escritor publicou uma obra que, de acordo com suas palavras, era fundamental: “Sempre pensei que seria exasperante para mim se morresse antes de terminar este livro, e assim me pareceu que o que eu tinha de melhor a fazer era começá-lo de uma vez. Quando o terminar, poderei encarar o futuro com serenidade”. Essa é uma das passagens que dá forma às Confissões, obra que ganhou nova edição pela Editora Globo.
Uma das primeiras questões que se deve abordar num texto sobre esse livro é em relação ao título. Vamos pelo início. Em inglês, a obra tem o nome de The summing up, algo que remete à idéia de um resumo, e não de uma confissão. Quem explica essa diferença é o poeta e acadêmico Carlos Vogt, que assina o prefácio. Vogt relaciona o livro de Maugham aos Ensaios de Michel de Montaigne e às Confissões de Jean Jacques Rousseau. Tal referência não acontece por acaso, uma vez que esta obra de Maugham toma emprestado um pouco da forma dos dois autores citados como influência direta e indireta. Por outro lado, também o seu conteúdo merece essa comparação. E o motivo é simples: Maugham trata dos mais variados temas nesta obra, partindo de sua formação intelectual literária até a maneira como se relaciona com a criação artística, passando, como não poderia deixar de ser, pelas relações humanas. Explica-se, então, o motivo da escolha de Confissões como título.
O livro não se divide em capítulos longos. O autor opta por trechos mais curtos. Neles, nota-se um tratamento mais incisivo dos temas; cada qual, porém, a seu tempo. Nesse sentido, no princípio, ele trata de sua formação intelectual, que se confunde com a sua infância. Mas que não se espere aqui uma revelação contínua de possíveis traumas que ele tenha sofrido nesse período. Na verdade, a cada revelação existe uma análise subseqüente, mais extensa, solapando todo resquício de diário íntimo. Sobram, em vez disso, opiniões muito alicerçadas acerca de como sua formação foi essencial para forjar o escritor que estava nele incubado. É nesse momento que o leitor entende por que Maugham decidiu se tornar médico: “A profissão médica não me interessava, mas dava-me a oportunidade de adquirir a experiência de vida que eu tanto ambicionava […] Aquilo tudo falava ao meu instinto dramático. Provocava a minha vocação de romancista”. Esse aspecto da criação foi, com efeito, crucial para Maugham. Não por acaso (novamente) ele foi comparado a outro escritor francês, Guy de Maupassant, cujo realismo chegava a ser incômodo. Maugham fazia uso de sua profissão para adquirir essa natureza descritiva dos diversos caracteres (personagens).
Enquanto isso, o autor relata um pouco acerca de seu estilo, de como construiu uma grife literária ao longo dos anos. A questão merece uma reflexão num período como o atual, mas, como se lê nas Confissões de Maugham, já era bastante pertinente na primeira metade do século 20. Em determinado momento, ele analisa como é relativo o fato de se considerar determinados autores e críticos como referência, sendo que alguns anos depois eles sequer serão lembrados. Entretanto, o que mais chama a atenção são os elementos que ele considera elementares para a concepção de um escritor: clareza, simplicidade e eufonia. Na avaliação dele, alguns autores escrevem de maneira obscura porque nunca tentaram escrever com clareza. Tendência semelhante ocorre hoje em dia. Há uma certa literatura, que se pretende inteligente, mas que não consegue conectar idéias numa seqüência inteligível. Fazem literatice em vez de literatura.
Já no quesito simplicidade, Maugham observa que se trata muito mais de um esforço do que de um mero ato de vontade. Isso porque ela, a simplicidade, não é natural. E o estilo precisa ser adequado, adverte o escritor, para não se tornar excessivamente hermético ou barroco. No tópico eufonia, lê-se que não se trata de qualquer adorno, mas de um detalhe a ser trabalhado pelo exercício da escrita. Não basta rimar palavras, diz o autor, a sentença precisa ser estudada a fim de que o efeito, para o leitor, seja (ou melhor, pareça) natural.
O relato do parágrafo anterior, mais do que um vaticínio aos potenciais novos autores, deve ser entendido como uma explicação do autor sobre sua própria obra. Numa observação acurada, Maugham trata da necessidade de o escritor ter um projeto para sua criação artística. Afinal, a sua obra possui essas características: clareza, simplicidade e, em certa medida, eufonia. Não por acaso a obra do autor carece de recepção mais generosa, se assim se pode afirmar, por parte dos críticos. Fosse por motivos temáticos, fosse por preconceito, Maugham esteve longe de ser uma unanimidade por parte do cânone, que, muitas vezes, prefere os escritores cujos livros não possuem qualquer clareza, simplicidade e eufonia.
Nesse sentido, é correto afirmar que essas Confissões assinadas por W. Somerset Maugham são uma espécie de resposta aos críticos, uma vez que o autor expõe ali a pertinência e os motivos de suas opções autorais. E essa resposta não se dá por meio de uma crítica direta, sistemática. O escritor opta por um ensaio em que passeia pelos vários temas de seu interesse sem que isso se torne enfadonho. Em outras palavras, pode (e deve) ser lido como uma resposta aos críticos, mas ele soube produzir uma obra de alcance também para o leitor comum, de modo que este também compreendesse os detalhes de sua narrativa.
A condição humana
Um ponto crucial nas Confissões é a importância da condição humana para a narrativa de Maugham em particular e para a literatura, num aspecto mais generalista. Isso porque o autor disseca como poucos os meandros do homem e sua condição. A ofício de médico, nesse sentido, deve de fato ter contribuído para tal intento, posto que a partir dos relatos e das muitas histórias ele pôde apreender não somente o argumento (no caso, as falas), mas, sobretudo, a forma como o ser humano comum pensava. E aqui, cabe uma outra revelação: o escritor confessa preferir a história dos homens comuns à narrativa das pessoas célebres, conforme se lê a seguir: “Escrever a seu respeito [das celebridades] é uma aventura que muitas vezes tentou os escritores, mas o fracasso que aguardava os seus esforços mostra que tais criaturas são demasiadamente excepcionais para o desenvolvimento de uma obra de arte. Impossível torná-los reais. Os homens comuns são o mais fecundo campo do escritor”. Em algumas páginas, aprende-se mais sobre o fazer literário que em muitos cursos que prometem formar novos autores.
Se nas Confissões de Somerset Maugham os leitores não têm o autor naquilo que melhor sabe fazer, como nos seus romances, pode-se afirmar, sem qualquer dúvida, que aqui o autor prova que sua capacidade literária vai além dos seus romances. Ou seja, por detrás do romancista, há um escritor com idéias não só sobre literatura, mas também sobre filosofia, religião, e também a respeito do sentido da vida. E, se para o bem e para o mal, essas não são as memórias de uma personalidade literária, neste livro existe uma reflexão acerca da literatura que é fundamental numa época em que muitos se consideram escritores, principalmente porque tem, de uma maneira ou de outra, acesso aos meios de produção e de divulgação — representados, nesse caso, pela internet.
De Maugham, fica a lição de que mais do que querer escrever, é preciso saber como. Mais do que saber como escrever, é preciso saber o quê. E mais ainda do que saber como e o quê, é necessário identificar por que se quer, no final das contas, escrever. Nesse ponto, cabe a lição do próprio autor acerca desse livro: “Arranjar os próprios negócios é uma excelente preparação para passar o resto da vida sem preocupações quanto ao futuro. Quando houver terminado este livro, saberei a quantas ando”. Esse foi Maugham, um servo demasiado humano da palavra.