Hipóteses não faltam pra explicar o descarrilamento do conto logo depois do Big Boom dos anos 70. Há quem atribua o desastre à queda de um meteoro de proporções indizíveis. Há quem ponha a culpa na conjuntura internacional da época, nos árabes e na ex-URSS. Não importa. Coincidência das coincidências: foi nesses dois anos de Rascunho que o conto tupiniquim voltou definitivamente aos trilhos — estava fora deles, perdido sabe-se lá onde, mais precisamente desde meados da década de 80.
É claro que houve coletâneas interessantes nas duas últimas décadas — Garotos da fuzarca, do Ivan Lessa, e O jardim, a tempestade, do Jamil Snege, por exemplo —, mas foram casos isolados, que não chegaram a ameaçar a hegemonia do romance nem da poesia. O que dá pra sentir é que, apesar de uma realização competente aqui e ali, só nos últimos dois, três anos é que a máquina parece ter engrenado de vez, em qualidade e principalmente em quantidade. Na virada do século: coletâneas à mancheia, de norte a sul.
Os veteranos, mesmo os que estavam afastados do gênero há anos, não ficaram de fora desse movimento. Em 1999, Ignacio de Loyola Brandão apareceu com O homem que odiava a segunda-feira, conjunto de narrativas irônicas sobre o cotidiano de figuras irreais e paranóicas, e Ana Miranda alinhavou seus delírios e obsessões dentro das viagens oníricas dos Noturnos. Em 2000, Lygia Fagundes Telles publicou sua Invenção da memória, apanhado de evocações de cenas e sonhos da infância e da juventude, reelaboradas pela imaginação. Ainda nesse ano, Dalton Trevisan, que ao longo da sua carreira em momento algum entregou o ouro ao bandido, veio com O grande deflorador — as remelas da classe média, o mesmo universo dos trabalhos anteriores, sem ser o mesmo. Em 2001, Rubem Fonseca lançou Secreções, excreções e desatinos, reunião de contos líricos e nojentos, em que a fisiologia do corpo humano exibe-se abraçada aos desatinos da alma, e Luiz Vilela, apesar de não trazer nada inédito, organizou sua própria antologia particular com as Histórias de família. Esses são os títulos que li e dos quais, por razões óbvias, me lembro até hoje. Dezenas de outros foram publicados — alguns eu não li; muitos eu li e, também por razões óbvias, deles me esqueci completamente, o que explica as ausências nesse breve artigo. Confirmando ao menos a boa acolhida do público, passada a primeira onda veio a segunda, a das coletâneas temáticas — entre elas O decálogo e 13 formas de amar — e das antologias Os cem melhores contos do século, organizada por Italo Moriconi, e Geração 90: manuscritos de computador, a cargo deste que vos fala.
Antes de mudar de capítulo, é preciso comemorar a dupla surpresa ocorrida nesse período — dois necessários retornos de contistas quase desaparecidos: Antônio Fraga e Márcia Denser. Desabrigo e outros trecos, de Fraga, reapareceu em 1999 e, estranho, não causou corrida às livrarias! Ou talvez isso não seja tão estranho assim. Afinal, quem é que está interessado em ficção de qualidade, de marginal intelectualizado? Toda prosa, de Denser, foi lançada este ano, e traz cinco contos e duas novelas curtas dessa que foi das primeiras autoras na literatura brasileira a enfiar, com sucesso, o erotismo dentro do confessional.
O sexo dos anjos
No saco de gatos do conto brasileiro tem de tudo, sorte nossa. Em vez de arreganhar a boca do saco, vou abrir só um pouco, pra dar uma olhada rápida no que tem dentro. No âmbito desta página, seria impossível passar a lupa pelas coletâneas todas lançadas no último biênio. Por isso vou comentar apenas as dos autores com os quais, também na condição de contista, sinto maior afinidade. Será um comentário rápido, o pente fino fica pra outra ocasião.
A cabeça no fundo do entulho, de Fernando Monteiro
O autor carimbou a coletânea de romance. Fernando Monteiro costuma embaralhar as cartas durante o pôquer, transformando as regras do jogo e sugerindo que o perdedor leve tudo. A técnica é sofisticada, o ilusionismo também. No meu conto predileto (novela?), agentes secretos internacionais (o autor e o editor?) trocam mapas e depoimentos falsos a fim de iludir o leitor (o livreiro?). Esse livro é uma espécie de diário de viagens composto de três narrativas distintas, cujas tramas têm como suporte o deslocamento alucinado das personagens pelo globo terrestre. Elas nunca param por muito tempo no mesmo lugar. Estão sempre metidas em táxis, carros alugados ou aviões, indo a Roma, ao Recife e a uma infinidade de países do Oriente. Apresentado de três diferentes formas, esse discurso dinâmico exibe-se paramentado de novela policial em Átila em Roma, de homenagem a um grande escritor em “Viva o Atlântico!” e de paródia das novelas de espionagem em A cabeça no fundo do entulho, conto de que falei há pouco, o meu predileto.
Amor e outros contos, de André Sant’anna
Jatos minimalistas, de água, sangue e esperma. A editora é portuguesa, Cotovia. A caretice dos lusitanos parece ter deixado de lado o beletrismo e a impostura empostada, pra se esbaldar com o tartamudeio hilário desse colega de quarto do Zé Agrippino de Paula. Colega de quarto, só isso — sem troca-troca (exceto esse a que estamos habituados, o literário). André, como ficcionista, é um excelente músico (isso quem diz é ele). Seus contos têm melodia, harmonia e ritmo próprios, no sentido mais literal da palavra (isso quem diz é ele). Me diverti muito com suas jam sessions, com o papo furado de Duke Ellington e Miles Davis, com as vinte mil léguas submarinas dos Beatles no banheiro do palácio da rainha da Inglaterra, com Jimi Hendrix, Mick Jagger e Charlie Parker comendo, bebendo e fumando as loiras de língua macia.
Angu de Sangue, de Marcelino Freire
Contos com a malandragem dos ritmos populares, mas só dos que pedem o movimento dos quadris, da virilha: frevo, maracatu, samba. Se Marcelino fosse portenho, o tango seria o palco e o cortinado de suas narrativas. O que deixa o leitor cabreiro são os trocadilhos, as tiradas cínicas, as ressonâncias e dissonâncias, os jogos de palavras a serviço do lugar incomum — será que ele está rindo da gente? Marcelino ri do leitor, ri com o leitor e faz o leitor rir de si mesmo e do autor. A maior parte dos contos é feita de discursos furibundos, cuspidos na primeira pessoa. Desabafos, reclamações, encheção de saco de gente miserável e, é claro, “ignorante”, que não tem onde cair morta. Dá vontade de chamar o síndico, a guarda civil, basta conferir Muribeca e The end.
Duas tardes & outros encontros silenciosos, de João Carrascoza
O conceito joyceano de epifania aplica-se muito bem a esses momentos votados ao sublime. Carrascoza, sem pressa, segue construindo sua galeria particular de silêncios. Galeria formada, em geral, de pessoas que encontraram na rotina metropolitana a face luminosa da vida burguesa. Porque, apesar da crise do capitalismo e da permanência das diferenças sociais, essa face luminosa ainda encontra tempo pra se manifestar. Onde? No rosto do menino que espera o pai voltar do trabalho, na visita do casal de amigos, no reencontro de dois irmãos que não se vêem há anos, na entrevista da jornalista com o restaurador de instrumentos musicais.
Frio, de Paulo Bentancur
Elegância pura. Realismo irônico, bem cozido. Do autor, gostei mais desta coletânea do que das duas anteriores, Instruções para iludir relógios e Os livros impossíveis. O mundo é gelado, as pessoas são glaciais. Dos gritos de Bianca empalada por Gabriel (bela imagem erótica!) ao rastro da deliciosa lourinha que passou deixando saudades, do pai diante do túmulo do próprio pai ao rosto das duas mulheres (uma bela, outra feia) na janela, de cabo a rabo o mesmo cuidado e bom gosto no trato com o espasmo ficcional. O que não abole o cinismo, é claro. Que puta cínico Paulo Bentancur me saiu… Nossa obra-prima: curto e grosso — para o editor, do jovem escritor o que interessa é a mulher, às favas os originais. Outro elemento comovente é a melancolia que perpassa os contos, a tristeza, esse “fogo brando”: diante do espelho, “sabemos exatamente o que vamos enxergar”. Não sou Batman nem Robin Hood, mas concordo: a Terra é azul e a carne humana, fria.
Grogotó!, de Evandro Ferreira
Livro pequeno, mínimo mesmo, mas só no formato e no número de páginas. Evandro é desses contistas que já não precisam mais assinar os novos textos, pois seu estilo já virou marca registrada. O uso abusado de arcaísmos e expressões do arco-da-velha, a liberdade com a pontuação e o fluxo de consciência, o temperamento ora ingênuo ora destemperado de seus narradores — quase sempre gente do povo ou da boemia, quando não bichos de estimação —, a rapidez no gatilho, que em dez, quinze linhas apresenta uma novela completa com direito a peripécias e final inesperado: isso é o Grogotó! Evandro pegou o bonde andando — a onda do miniconto explodiu entre 1998 e 2001 — e se tornou o melhor minicontista vivo, ao lado de Dalton Trevisan. Resenha que quisesse dar conta teria que ser tão mínima quanto o livro: “ótimo!”, e ponto final.
Materiaes, de Sérgio Fantini
Este livro é, na verdade, a reunião de duas novelas e diversos contos — estes, por sua vez, enfeixados no bloco Suíte bar. São narrativas meio bêbadas, meio líricas, com um pé dentro e o outro fora do boteco. Fantini sabe falar do vazio. Não do Descomunal Vazio Existencial da filosofia alemã, que é sobre o quê tentam falar os franceses de Minas Gerais e do resto do país. O vazio de Fantini é esse aí, miúdo, o vaziozinho entre o copo e a cerveja, o lábio de cima e o de baixo, o lado A e o lado B entre o vinil e a agulha (ainda não chegamos ao CD). Como esse autor é mão de vaca com a moeda verbal, seus contos resultam em lampejos, minipoemas em prosa. Meus prediletos: o da página 64 e o da 75.
Nada mais foi dito nem perguntado, de Luís Francisco Carvalho Filho
Todas as narrativas obedecem à forma fixa imposta pelo autor: primeiro vem o pequeno texto descritivo, onde são definidos os elementos de cena e as personagens; depois os diálogos de tamanhos variados, como se se tratasse de dramaturgia, não de contística — mas da melhor dramaturgia, de alguém que conhece Harold Pinter o suficiente pra não imitá-lo. Luís Francisco é advogado criminalista e suas parábolas sobre a justiça saíram diretamente dos fóruns, dos tribunais e das delegacias. Juízes, advogados, promotores, réus, escreventes, investigadores, delegados — todos têm um papel a cumprir, e o fazem mecanicamente. Por falar em papel… Dessa mecânica às vezes brota o tédio, outras vezes o pânico, quando não o riso: no conto Papel, um advogado arma o maior escândalo porque não há papel higiênico nos banheiros do fórum.
O herói devolvido, de Marcelo Mirisola
Na minha opinião, o melhor livro de Mirisola, que acaba de publicar seu primeiro romance, O azul do filho morto. Mas é bom frisar que a obra desse prosador não apresenta oscilações. Ela está firmemente posicionada no patamar da literatura de qualidade e se recusa a sair daí, apesar dos insultos que tem recebido de diversas partes. Esses insultos tentam defender, é claro, a literatura letrada, baseada no bom gosto e na reverência a certos cânones positivistas. A linguagem chula e a — apenas aparente — pobreza estilística de Mirisola fazem sinais obscenos pra esses cânones. O que eu vejo nesses contos é uma forma muito sofisticada de humor, que, exatamente por contraste, só faz enriquecer nossa literatura ilustrada. Pra quem não sabe, o “cara que escreve com os culhões”, da tira publicada mensalmente no Rascunho, é o Mirisola. Muitos o amam, muitos o detestam, mas ninguém consegue permanecer indiferente. Não deixe de ler Basta um verniz para ser feliz.
(os sobreviventes), de Luiz Ruffato
O primeiro aspecto que me chamou a atenção neste livro foram as variações tipográficas. Prosadores raramente acham graça nesse recurso largamente usado pelos poetas, desde Mallarmé e Apollinaire. O segundo aspecto foi o regionalismo — veja só, ei-lo de volta! O terceiro, a crítica social sem medo de ser o que é, presente em quase todas as narrativas. Regionalismo e literatura engajada é a combinação mais preocupante que há (no final do livro devia haver o aviso: “Crianças, não tentem fazer isso em casa”). O curioso foi encontrar esses dois elementos formatados pela liberdade, até certo ponto, visual do texto. O quarto aspecto que me chamou a atenção nos contos de Ruffato foi a maneira nova e deliciosa como o autor combinou os outros três. Vá e veja: O segredo.
A quadratura dos anjos
Falei demais, e agora corro o risco de não fazer justiça, por falta de tempo e espaço, a vários outros nomes importantes. São autores de talento, cujas coletâneas, sobre as quais já escrevi em outras ocasiões, têm tanto valor quanto às citadas até agora. Fica aqui o registro, e o aviso: não se faça de cego, se ainda não leu, vá atrás!
A pequena morte e outras naturezas, de Claudia Lage
A urna, de David Oscar Vaz
A vida é fêmea, de Homero Fonseca
Anotações durante o incêndio, de Cíntia Moscovich
As palavras secretas, de Rubens Figueiredo
Brincar com armas, de Pedro Salgueiro
Caos portátil, de Jorge Pieiro
Como se moesse ferro, de Altair Martins
Dez presídios de bolso, de Ronaldo Bressane
Dezembro de um verão maravilhoso, de Cadão Volpato
Elepê, de Luiz Paulo Faccioli
Falo de mulher, Ivana Leite
Faroestes, de Marçal Aquino
Ignorância do sempre, de Juliano Garcia Pessanha
Ilhados, de Lourenço Cazarré
Linha férrea, de Tércia Montenegro
O desterro dos mortos, de Aleilton Fonseca
O filantropo, de Rodrigo Naves
O fluxo silencioso das máquinas, de Bruno Zeni
O pão do corvo, de Nuno Ramos
O visitante noturno, de Carlos Ribeiro
Passaporte, de Fernando Bonassi
Precioso impreciso, de Luci Collin
Trouxa frouxa, de Vilma Arêas
Um pouco mais de swing, de João Batista Melo
O sexo do círculo
O comentário final fica por conta da relação entre a literatura e a internet. Na virada do milênio, esse novo meio de comunicação possibilitou o aparecimento de vários contistas que estrearam longe do livro impresso e das livrarias. No início a internet foi — ainda é? — o campo ideal pra formação de novas tribos. Afinal, o público cativo dos contistas digitais era formado — ainda é? —, na maior parte, por outros contistas digitais, já que o leitor habituado ao livro de carne e osso torce o nariz para o monitor e a impressora. Tanto isso é verdade que as coletâneas de Daniel Pellizzari e Daniel Galera, dois bons ficcionistas da nova geração, só receberam a merecida atenção dos jornais e das revistas depois que migraram da internet para o papel encadernado. Ovelhas que voam se perdem no céu (Pellizzari) e Dentes guardados (Galera) tiveram que abrir mão de parte de sua personalidade ao virarem livro. Os mesmos contos, quando publicados e oferecidos gratuitamente na internet (http://www.cardosonline.com.br), guardam a aura e o frescor da guerrilha cultural, que o livro, enquanto produto do mercado editorial, não tem mais como apresentar. É fato que os dois Daniéis não deixaram a peteca cair totalmente, ao criarem o selo Livros do Mal e se tornarem os editores dos próprios livros — ponto para eles. A rixa entre os novos hábitos e os já estabelecidos terá ainda muitos rounds. Os fanzines virtuais, manifestação típica dos jovens, são mais marginais do que muita publicação lançada comercialmente, como a edição especial da revista Caros Amigos (Literatura marginal), com o objetivo de explorar esse filão. Mas é melhor eu parar por aqui, porque isso já está virando discurso de porta de escola — ou, pior, rascunho de manifesto pós-neo-dadaísta.
Paro com o manifesto e começo com a recriminação. O trabalho da nova leva de contistas que se firmou nos últimos anos não é conhecido no resto da América Latina, muito menos nos EUA e na Europa, e isso não tem nada a ver com juízos de valor, mas de política econômica. Enquanto isso, os próprios contistas — à maneira clássica dos poetas — perdem tempo atirando pedra no telhado uns dos outros. Não chegam ao boicote descarado, mas deixam de escanteio a briga pela autoafirmação da nossa literatura onde ela raramente põe os pés, pelo prazer de passar a perna no adversário. O outro lado da moeda é a língua portuguesa, nossa pátria e masmorra. Uma forma de furar o bloqueio seria canalizar a energia gasta nos qüiproquós internos e empregá-la de duas maneiras: na tradução de nossos contos e na confecção de revistas e antologias bilíngües, trilíngües (ou mais). Esse esforço é necessário, pois os agentes literários internacionais não parecem estar a fim de abrir as asas sobre nós. É claro que o resultado será sentido apenas a longo prazo, daqui a uma década, talvez mais. Nosso saco de gatos precisa urgentemente respirar outros ares, incomodar outros públicos.