Flores das flores do mal de Baudelaire é uma peça para colecionadores. Constitui-se na terceira edição de um conjunto cuja primeira versão é de 1944 (José Olympio) e a segunda, de 1965 (Edições de Ouro). Vem acrescida de algumas das ilustrações que Henri Matisse compôs em 1947 para As flores do mal. Traz, ainda, o texto de apresentação que Manuel Bandeira escreveu em 1965 e um posfácio de Marcelo Tápia, além de poeta e tradutor, diretor da Casa Guilherme de Almeida. Apesar de modesto em extensão, o livrinho apresenta como centro pulsante de sua organização as traduções e notas que Guilherme de Almeida (1890-1969) preparou de um restrito leque de poemas (21) da obra que transformou Charles Baudelaire (1821-1867) em uma referência incontornável para a poesia dos séculos 19 e 20.
Os cem poemas que compõem As flores do mal, de Baudelaire, foram publicados em junho de 1857 em Paris, em uma edição dividida em cinco seções. Uma segunda edição acrescida de 35 novos poemas (e de uma seção inédita, intitulada “Quadros parisienses”) foi publicada em 1868, após a morte do escritor. Baudelaire dedicou um cuidado especial à disposição dos poemas em sua coletânea, o que leva os críticos a usualmente priorizarem, em suas análises, a versão contendo cem poemas. As flores do mal não seriam, nesse sentido, uma sucessão simples de poemas ordenados ao acaso; antes, Baudelaire teria disposto os poemas seguindo um itinerário bem preciso a ser considerado em tentativas de interpretação.
Aclimatando Baudelaire, obra originalmente preparada como tese de doutoramento (1989) é um dos muitos estudos dedicados à análise da recepção que a poesia de Baudelaire teve, no Brasil, entre poetas e escritores. No estudo, Glória Carneiro do Amaral enfatiza o caráter predominantemente temático da primeira repercussão dos versos baudelaireanos, notadamente dos poemas de Les fleurs du mal (1857). Caráter temático, de resto, acentuado pelas numerosas e variadas iniciativas de tradução daquela obra (de modo parcial ou, posteriormente, em seu conjunto) a que poderíamos, talvez, denominar, de modo um tanto impreciso, adaptações, emulações, arremedos, variações, por meio dos quais aclimataram-se possivelmente menos os versos de Baudelaire, mas principalmente sestros baudelaireanos no Brasil, desde os anos de 1870 até o final do século 19.
Ao longo daquele século, afirma ainda a pesquisadora, traduzir poesia era interpretar um escritor, dele fornecendo uma leitura. Para a tarefa lançava mão o leitor-tradutor de critérios pessoais que não deixavam de delinear concepções estéticas discerníveis mediante alguma análise. Além disso, alguns poetas não traduziam efetivamente o mestre francês, elaborando antes versões peculiares de poemas que claramente remetem ao escritor, inserindo, por outro lado, as traduções propriamente ditas (quando as faziam e até onde fosse possível discernir as nuances implicadas) no corpo de seus próprios livros de poemas, sem distinções em relação à produção original, o que de certa forma reforçava as relações com o escritor “apropriado”, no caso, Baudelaire.
Entre nós
A primeira edição brasileira do conjunto da obra de Baudelaire foi preparada por Jamil Almansur Haddad e veio a público em 1958, acompanhada de uma longa introdução e um conjunto de notas em que se realizava, entre outras tarefas (como discussões das ressonâncias que a poesia do francês teve na poesia brasileira), um apanhado das traduções dos poemas baudelaireanos no Brasil (com indicação de um extenso leque de tradutores). Em 1963, Baudelaire em idioma vernáculo, de Cassiano Tavares Bastos, chega a indicar mais de 400 versões de poemas de Baudelaire realizadas por quase 50 tradutores brasileiros diferentes. Descontadas as edições portuguesas, Ignácio de Souza Motta (1971) e Ivan Junqueira também foram responsáveis por edições completas de As flores do mal. Outros inventários e análises das traduções brasileiras daquela obra podem ser encontrados na tese de doutoramento de Clémence Marie Chantal Jouët-Pastre (Jogos de poder nas traduções brasileiras d’As flores do mal), defendida na USP, em 1999, e no estudo de Ricardo Meirelles, intitulado Entre brumas e chuvas: tradução e influência literária, de 2003 (Unicamp).
Que Baudelaire tenha sido lido e traduzido com tanta freqüência, entre nós, é fenômeno por si instigante que fala, a um tempo, da relevância dessa poesia no panorama literário dos séculos 19 e 20 (independentemente de quaisquer balizas geográficas), e de sua relevância para a compreensão dos embates que se travavam na literatura brasileira no século que se segue à publicação da primeira edição de As flores do mal. Em geral, estudiosos de tradução ou de poesia arriscam-se a medir o peso de uma obra pelo interesse que ela desperta em tradutores (sobretudo quando se trate de criadores, no caso específico da poesia).
O que há de peculiar à tradução de Guilherme de Almeida é o modo como seu exercício tradutório, em geral bastante agradável aos ouvidos e demais sentidos, fornece, ainda, alimento consistente para a reflexão sobre o estatuto do fenômeno poético, no período de tempo considerado. As notas com que presenteia o leitor ao final dos poemas em que a voz em português ombreia com a francesa (a edição é bilíngüe) são um dos encantos desse trabalho que Almeida denomina como “colheita livre”, sua seleção particular de flores do conjunto de As flores do mal. Para reproduzir suas palavras, trata-se de poemas que “sempre soube de cor e que, à força de dizê-los, citá-los e recitá-los”, “acabei por me surpreender ouvindo-os de mim mesmo, na minha língua mesma”.
A obra apresenta-se munida desta “bem simples sinceridade” e de uma relutância (a palavra ali grafada é “repugnância”) pelas “desmoralizadas e desmoralizantes” expressões “tradução” e “versão”, impróprias para o “extenuante labor de oito anos” que teria custado aquele minguado ramilhete de flores extraídas das outras, o conjunto tão estimado por Baudelaire. Lança mão, portanto, esse que se recusa a se dizer tradutor, de outra terminologia: recriação, reprodução, reconstituição, restauração, transmutação, correspondência, transfusão. O posfácio de Marcelo Tápia dá conta da atualidade teórica dos esforços de Guilherme de Almeida em considerar efetivamente como “suas” as flores de que se apoderou, em idioma diverso, transfundindo-lhes novo sangue, de tipo equivalente ao do organismo anteriormente existente.
“Caprichosos efeitos”
Um passar de olhos sobre as duas estrofes iniciais de um dos selecionados para essas flores, o poema Le beau navire, talvez ajude a desenvolver algumas considerações sobre o modo como a reflexão sobre o poético permeia o trabalho em discussão. Trata-se de poema que não figura entre os preferidos para tradução da obra de Baudelaire. Guilherme de Almeida, contudo, deixa a suspeita de tê-lo escolhido pela presença de um verso especificamente, o segundo da segunda estrofe que declara ter sido considerado, sem indicar a fonte do juízo, como “um dos mais belos da poesia francesa”:
Longo, enorme, infinito… Há aí um truque de artista, um segredo de joalheiro. Baudelaire, para dar a máxima extensão a este alexandrino, enriqueceu-o de rimas internas, nas habituais sílabas tônicas dessa medida: “fais” com “effet” e “beau” com “vaisseau”. Destarte, tornou-se o verso de uma extraordinária elasticidade, de uma incrível maleabilidade. Alexandrino (doze sílabas), ele pode ser “sentido”, à vontade, como dois versos de seis sílabas, três de quatro, ou seis de duas. Assim:
“Tu fais l’effet d’un beau/ vaisseau qui prend le large” (2 de 6);
“Tu fais l’effet/ d’un beau vaisseau/ qui prend le large” (3 de 4);
“Tu fais/ l’effet/ d’un beau/ vaisseau/qui prend/ le large” (6 de 2).
Ora, considerando não ser honesta uma recriação legítima do verso que não conservasse rigorosamente todos esses mesmos “caprichosos efeitos”, apresenta seu resultado, em que preserva as rimas internas (“tal” com “qual” e “nau” com “ao”), bem como as mesmas possibilidades de divisibilidade, que considera alongadoras: “És tal e qual a nau quando ao mar alto larga”.
Assim, as duas estrofes iniciais ficam:
Em Baudelaire:
Je veux te raconter, ô molle enchanteresse!
Les diverses beautés qui parent ta jeunesse;
Jeux veux te peindre ta beauté,
Où l´enfance s´allie à la maturité.
Quand tu vas balayant l´air de ta jupe large,
Tu fais l´effet d´un beau vaisseau qui prend le large,
Chargé de toile, et va roulant
Suivant um rhythme doux, et paresseux, et lent.
Em Guilherme de Almeida:
Eu quero te contar, ó mole feiticeira,
Todo o esplendor que te orna a mocidade inteira;
Quero pintar tua beldade,
Em que há um misto de infância e de maturidade.
Quando vais bamboleando no ar a saia larga,
És tal e qual a nau quando ao mar alto larga,
Cheia de pano, toda ao vento,
Seguindo um ritmo doce, e preguiçoso, e lento.
De fato, o verso (se foi mesmo a razão da escolha) vale a demonstração de perícia técnica. Em sua apresentação ao livro, Bandeira aludia à dificuldade em “traduzir diamantes”: esse seria certamente um caso assim, e Guilherme de Almeida sai-se primorosamente bem da tarefa. Não passe sem observação que os versos que finalizam as duas estrofes em português não puderam caber na contagem e na técnica do alexandrino (que pressupõe algo mais que as doze sílabas, aí convertidas, aliás, em treze). Nos dois casos, o primeiro hemistíquio conta sete sílabas, ainda que, na segunda estrofe, o ritmo doce, e preguiçoso e lento esteja marcado, a despeito do que talvez pudesse ser considerado um deslize no processo de “transfusão”. O fato que ressalta claramente da leitura do pequeno volume é a constatação de que poesia (em primeira versão, ou transfundida) seja efetivamente um exercício de criação que se move no intervalo entre as possibilidades e as regularidades oferecidas por uma língua. Em tese, um exercício transformador dessas mesmas potencialidades e regularidades, de cuja existência seu poder inventivo, contudo, não pode prescindir.
SOBRE O TRADUTOR
Guilherme De Almeida nasceu em Campinas (SP), em 1890. Poeta, crítico de cinema, jornalista, advogado, tradutor, ensaísta e heraldista, fundou a revista Klaxon e publicou diversos livros, como Nós, A dança das horas, Raça, Encantamento e Acaso, entre outros. Morreu em São Paulo (SP), em 1969.