Elvis & Madona: uma novela lilás, de Luiz Biajoni, baseada no filme homônimo, de Marcelo Laffitte, tem como temática principal uma história de amor. É uma narrativa cercada de surpresas, a partir de um encontro dos personagens em Copacabana, entre sonhos e a violência urbana dos nossos dias.
Elvis, ou melhor, Elvira, é uma jornalista que sonha com o emprego de repórter fotográfico em um grande jornal. Vem de uma família tradicional, já falida, e, para sobreviver, trabalha como entregadora de pizza. É lésbica e resolvida em sua orientação sexual, apesar de toda pressão exercida pela família, vizinhança interiorana e sociedade em geral.
Madona é um travesti que trabalha num salão de beleza e tem como sonho montar um show de teatro de revista. Para tal, guarda seu suado dinheirinho. Relaciona-se com João Tripé, um sujeito truculento, ligado à contravenção, tráfico de drogas e policiais corruptos.
O primeiro encontro das duas se dá no apartamento de Madona, quando esta havia pedido uma pizza. Elvis surpreende a cabeleireira arrasada, depois de ter sido espancada e roubada pelo amante. A partir daí tornam-se amigas e o interesse crescente de uma pela outra vai se intensificando, até se tornar uma forte relação afetiva sexual. A forma como se dá o encontro possui muitos dos elementos de um história romântica, no que tange a suavidade com que se estabelece a construção da relação e a seqüência de obstáculos que os amantes têm de transpor para viabilizar essa afetividade.
Os elementos tradicionalmente românticos param por aí, já que o contexto contemporâneo dramatizado na ficção implode essa perspectiva. Para início de conversa, está sendo questionado o sujeito unificado da modernidade. Para Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade, “‘o sujeito’ do Iluminismo, visto como tendo uma identidade fixa e estável foi descentrado, resultando nas identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas, do sujeito pós-moderno”. Vários fatores contribuíram para isso, vale aqui destacar o papel dos novos movimentos sociais surgidos a partir da década de sessenta, como o feminismo, a política sexual de gays e lésbicas, as lutas raciais e étnicas, pela paz no mundo, pelos direitos civis, etc.
O enredo do romance é praticamente o mesmo da narrativa cinematográfica. A novidade é que estamos acostumados com as adaptações de romances em películas. Aqui se dá o processo inverso: o filme surge primeiro, depois é escrito sob forma de texto literário. Algo parecido aconteceu, por exemplo, com O invasor, sob direção de Beto Brant e roteiro de Marçal Aquino. Neste caso, tanto o roteiro do filme quanto o romance foram escritos pelo mesmo autor. Isso, apesar de parecer mais simples operacionalmente, não impediu diferenças substanciais de abordagens.
O admirável aqui foi a parceria entre Marcelo Laffitte e Luiz Biajoni. Cada um na sua especialidade cumpriu um papel importante. Todos ganhamos, leitores, espectadores, cineasta, escritor e público em geral. Com a novela, o cineasta e o filme, mesmo este saindo de cartaz, serão lembrados. A partir do filme, a literatura registra uma boa história e chama a atenção para a produção do escritor.
Em entrevista, Laffitte comenta sobre alterações do seu roteiro original: é “a vingança da literatura contra o cinema”. Constata: “o Biajoni acrescentou personagens, modificou diálogos e criou todo um universo para o Elvis e a Madona do meu filme. Mas não tive ciúme não… Foi uma experiência interessante”.
O que não podemos esquecer é que se trata de uma mesma história narrada por duas diferentes linguagens: a literária e a cinematográfica. A primeira tem como instrumento fundamental de expressão a palavra em suas articulações e especificidades. A segunda, além desta, conta com a imagem, o som, a música, o movimento, os recortes, a representação dos atores, a direção, etc. A apresentação e a construção dos personagens e do espaço se dão de forma diferenciada. Um olhar do ator sobre um objeto e uma música de fundo, no filme, pode levar três minutos, enquanto a mesma cena para ser representada na escrita pode ocupar páginas e mais páginas e, ainda assim, não dizer a mesma coisa, ou jamais produzir o mesmo efeito. A primeira tem a seu favor o tempo de elaboração e a perenidade da escrita, a segunda tem como característica a efemeridade do cinema, que entra e sai do circuito, dependendo da oscilação do mercado.
Tanto no romance quanto no filme, Copacabana não é apenas cenário, é personagem também. “Copacabana, princesinha do mar/ Pelas manhãs tu és a vida a cantar/ E a tardinha, ao sol poente/ Deixas sempre uma saudade na gente.” A letra da música de João de Barro e outros recursos, por exemplo, são usados para enfatizar o espaço urbano com seus diferentes aspectos, entre encantos e desencantos. É uma parte da cidade “maravilhosa” que tem um caráter cosmopolita, plural, violento e cheio de sedução e beleza. Neste sentido, o espaço narrativo atualiza o mito erótico, implicitamente, enquanto mata a fome de realidade do leitor e do mercado. É um espaço concreto, físico e histórico, mas também simbólico. Funciona como o espaço do desejo e da obsessão pela fusão de corpos e de almas, solidão na multidão de seres perdidos em busca desesperada de completude. Sonhos e realidades adversas disputam, incansavelmente, espaço e poder.
Por um lado, personagens como Elvis e Madona significam na literatura um momento de expansão e legitimidade do sujeito contemporâneo, múltiplo e descentrado, por tanto tempo sem voz e canal de expressão nas artes de modo geral. Falam de um tempo histórico em curso que ganha cidadania nas letras.
Por outro lado, quase que paradoxalmente, a relação estabelecida por Elvis e Madona traz um conteúdo atemporal, pagão, remete ao tempo do mito da Era Clássica. O que são esses personagens, por mais inusitados que possam parecer hoje, senão representantes dos nossos ancestrais gregos, imortalizados no Banquete, de Platão, pelo Mito do Andrógeno? O feminino e o masculino, o corpo e a alma estão aí reunidos num único ser. Mais perfeito, ainda, é o encontro de dois seres tão igualmente completos em si mesmos e entre si. Não seria isso o mito da fusão erótica plenamente realizada, ou seja, a própria felicidade do Amor, prometida por Eros? Mais ideal que o idealismo romântico. Tão simples enquanto desejo, ao mesmo tempo, bem distante da realidade concreta contemporânea de parcos afetos, datada num presente histórico tão complexo quanto o nosso.