“Por um longo tempo, me deitei cedo.” Essa é a frase que inaugura a nova tradução da obra máxima composta por aquele que, para muitos leitores — célebres e anônimos, especialistas e amadores —, mereceu ser chamado de maior romancista do século passado. Após as traduções iniciais da então chamada Em busca do tempo perdido (começadas em 1948), empreendidas por um grupo formado pelo que o país tinha de melhor em literatura — Mário Quintana, Manuel Bandeira, Lourdes de Alencar, Carlos Drummond de Andrade e Lúcia Miguel Pereira — e a versão realizada na íntegra por Fernando Py a partir dos anos de 1990, a Companhia das Letras deu início, em 2022, à publicação integral da obra proustiana, sob o novo título de À procura do tempo perdido, com Mario Sergio Conti e Rosa Freire d’Aguiar assinando respectivamente os dois primeiros volumes.
A frase de abertura da Procura (À la recherche du temps perdu, publicada entre 1913 e 1927) se opõe a outros célebres inícios de romances — como a de A metamorfose (1915) ou de Anna Kariênina (1877) — pelo pouco que pode dizer àqueles que não enfrentaram as mais de duas mil páginas que a ela se seguem — e Proust certamente guarda um lugar especial no grupo de escritores de que muito se fala, mas pouco se lê. Perdida no primeiro parágrafo dos esboços de inícios anteriores, a frase foi realocada com uma vírgula que corta bruscamente um longo tempo. O que ela anunciaria?
Se nos dispuséssemos à ingrata tarefa de resumir esse ciclo romanesco de sete volumes, poderíamos dizer que se trata da descoberta de uma vocação: a de escritor. À procura cobre o arco de uma vida, da infância à idade adulta, contada em primeira pessoa por um narrador anônimo. Em uma forma circular, o que lemos desde o início é o produto literário desencadeado pela revelação, eclodida por acaso, ao final desse ciclo, quando o protagonista supera o que julgou por diversas vezes ser uma incapacidade congênita para a literatura e passa a interpretar e recriar os episódios de sua vida pregressa.
Os obstáculos e desvios para se tornar escritor constituirão a matéria de sua obra, mas somente enquanto pedras no meio do caminho, arduamente reorganizadas na estrutura de catedral dos sete volumes. A angústia insone ao ser privado do beijo de boa-noite da mãe como iniciação a todos os sofrimentos (Para o lado de Swann), os primeiros tormentos e fracassos de uma relação amorosa (À sombra da moças em flor), as idealizações e subsequentes decepções com a mediocridade das figuras dos salões da alta burguesia e da aristocracia (O caminho de Guermantes), a vida secreta relegada à margem e abusos de poder do que chama de inversões sexuais (Sodoma e Gomorra), o amor como pêndulo torturante entre tédio e insatisfação (A prisioneira), a impossibilidade de possuir e conhecer o objeto de desejo em sua integridade (A fugitiva) e a sensação de uma vida desperdiçada em que o Tempo destrói tanto os rastros das lembranças quanto toda e qualquer perspectiva futura (O tempo recuperado): os desvios da vocação de escritor agrupam-se em ciclos de aprendizados paulatinamente deixados para trás. Mas trata-se sempre de um aprendizado negativo: a cada ciclo esgotado, Marcel toma amargamente a consciência de que não estão lá a verdade e o sentido que procura para sua vida e para o mundo. Por meio de uma sistemática análise do funcionamento da destruição operada pelo Tempo, somos testemunhas de uma dessincronia entre consciência, sensibilidade e afeto subjetivos e os eventos apresentados como objetivos e externos.
Intermitências do coração
O mais emblemático desses desencontros talvez seja aquele com as perdas de entes queridos, que ora são percebidas antes mesmo da morte física, ora são compreendidas apenas posteriormente. Estão certamente entre as páginas mais impactantes da literatura universal aquelas presentes na seção intitulada Intermitências do coração (título que fora cogitado para nomear todo o ciclo), constantes da segunda parte de Sodoma e Gomorra — não por acaso localizadas aproximadamente no meio de toda a Procura. Se no volume anterior acompanhamos o assombro de Marcel ao perceber que a senhora enferma e à beira do decesso a quem encontra no seu cômodo em nada faz lembrar a querida figura de sua avó com quem convivera em épocas regressas — em um choque que revela a descontinuidade das imagens que projetamos à identidade dos outros —, será somente anos depois do falecimento que um movimento banal de tirar os sapatos após uma exaustiva viagem evocará a presença da avó em sua absoluta ausência: é por meio do assalto de uma lembrança involuntária, na contramão de uma presença dada inconscientemente como certa — porque tornada habitual — que ele finalmente se dá conta de que aquela que lhe auxiliara anos antes a realizar o mesmo ato, em um momento de exaustão e vulnerabilidade extremas, nunca mais virá em seu socorro. Procurando em terras alheias às limitações da racionalidade, Proust demonstra que as intermitências do coração conhecem outro tempo e outra realidade, mais profunda, porque escondida dos esforços da memória voluntária.
A obra proustiana é conhecida pela exposição das limitações dessa memória, inepta a tais formas de ressureição, que ocorrem precisamente em seus pontos-cegos, mas a Procura também aponta sua produção sem fim de fabulações sobrepostas a cada rememoração forçada, estendendo datas, nomes e fatos no varal dos dias sem que com isso recupere ou evoque presenças por meio da atualização de ausências. Essa denúncia está intimamente ligada à sua extensa crítica à literatura que se atém à superfície descritiva e à concatenação de eventos causais, na qual não se encontra fio solto na orquestração perfeitamente funcional e cronológica de um enredo. A essa tradição, Proust opõe a incorporação da contingência — uma de suas maiores contribuições para o romance. Porque o enredo que fornece todos os elementos com a força do inevitável, desdobrado em explicações, constrói uma verossimilhança afinal pouco crível e pressupõe uma transcendência à qual nada escape e a tudo organize — o cumprimento de um Destino, uma Providência divina ou a implicação de que a realidade pode ser apreendida de modo totalizante por meio da racionalização. Proust faz da incognoscibilidade não somente um eixo temático, mas o próprio procedimento formal com o qual narrador e personagem efetivam suas procuras em frente dupla, no calor dos eventos vividos e em seu esforço de recriação pelo processo da escrita.
Ciúme
É essa impossibilidade de conhecer que constitui o motor falho do chamado ciclo Albertine (A prisioneira e A fugitiva), tormento último e preparação para a conclusão da Procura. No que é provavelmente o maior estudo do ciúme em literatura, o narrador analisa minuciosamente cada passo da relação de Marcel com a amada: as suspeitas do reino lésbico de Gomorra, as mentiras sistemáticas e sobrepostas, os círculos sociais de Albertine aos quais seu acesso é negado. Todo o abuso mobilizado pelo protagonista — prendê-la em seu apartamento, monitorar suas saídas e correspondências — a fim de petrificar seu objeto de obsessão não é o bastante para que ele chegue perto de possuí-la por completo, porque, como aprende e demonstra literariamente, a qualidade estática, seja do objeto, seja da percepção, não pertence ao mundo dos vivos. As mudanças de léxico da amada, suas repentinas incorporações de novas linguagens corporais, as expressões faciais insuspeitas: toda a acuidade da observação revela os indícios de vidas nas quais ele esteve ausente e às quais jamais terá acesso. Não se ama senão sucessivamente, por meio de projeções subjetivas condenadas ao atraso frente à dinâmica dos sujeitos. Esse ciclo não é meramente um laboratório de análise do funcionamento do ciúme in vitro, mas um estudo sobre a problemática da mobilidade da personagem. Sendo a mudança — e o esvanecimento — a lei geral da vida, o romancista que se dispor a manter-se fiel a ela terá de retratar suas criaturas em toda a sua incoerência — e essa não é uma tarefa para os que temem a inverossimilhança. Pelo fato de que os retratos só podem ser produzidos em estágios sucessivos, há algo no momento da transformação que sempre escapa à natureza fixadora da linguagem, e o que o narrador proustiano nos apresenta é o lastro deixado por uma cadeia de imagens que modulam sem previsão de aterrissagem em uma forma final.
Às voltas com essa mobilidade dos sujeitos-personagens, a morte nos é apresentada como um evento que ocorre todos os dias. Mas a angústia dessa ausência de estabilidade identitária é continuamente aplacada tanto pelas fabulações de uma unificação artificial das identidades quanto pelas percepções habituais, formadas pelos pactos entre o sujeito e seus meios, em acordos que devem ser reafirmados diariamente por meio da extensão de uma teia de relações arbitrárias, mas tornadas familiares pela repetição. É assim que algo tão banal, como a proporção entre as alturas de um teto e de uma cortina em um quarto, pode operar uma identificação consoladora para o insone que acorda no meio da noite momentaneamente sem saber onde está ou quem ele é. Ao longo da Procura, é na quebra dos hábitos, os mais corriqueiros, que um dado de realidade ainda não atualizado por nossa sensibilidade vem à tona com todo o peso da verdade da irreversibilidade do Tempo — bastando que nossas percepções habituais se encontrem momentaneamente em guarda baixa. Se é certo que há uma filosofia e uma estética defendidas ao longo da obra, nem por isso Proust conforma o que é próprio da literatura a uma posição de subserviência a exemplificações de conceitos. A mobilidade, a instabilidade de identidades, os espaços vazios da memória voluntária e os assaltos da memória involuntária são elementos articulados por meio do enredo construído pela natureza não-cronológica da rememoração narrativa. O que o leitor acompanha ao longo desse longo ciclo de romances é um aspirante a escritor procurando a matéria e a forma de sua obra à medida que o tempo de sua vida se evanesce, passando pelos pilares que sustentarão essa obra sem ainda percebê-los enquanto tais, até que o acaso de um encontro com um livro de infância lhe revele: és escritor.
Dissolução de identidade
Ele encontrará as leis gerais de seu romance — sua filosofia, sua estética, o valor da arte — em sua vocação, mas a posição a partir da qual irá escrever estará assentada em uma dissolução de identidade. É a esse estado que a frase enigmática de abertura da Procura alude: o momento entre a vigília e o sono, marcando tanto as primeiras angústias da infância quanto a circunstância de recriação de toda uma vida por meio da literatura. A insônia, tão recorrente ao longo dessa obra, instaura aquilo que a crítica chamou de um terceiro “Eu”, criando um tempo intermediário entre o presente do narrador e o passado de Marcel. Mas se ele se estabelece como um entre, esse tempo é também, e talvez principalmente, alhures, pois é nesse limiar entre a consciência e o sonho que personagens fictícios da literatura, figuras históricas e antigos conhecidos ganham o mesmo estatuto de realidade, construindo um relato que embaralha as temporalidades.
Há ainda uma outra forma de escape da linearidade cronológica, esta tornada célebre por Proust. Se o “Eu” insone é um princípio formal a partir do qual se narra, os episódios de memória involuntária formam os pilares que sustentam a estrutura da obra. Alguns objetos dos quais nos esquecemos, deixados pelo caminho da vida, guardam o poder de restauração de todo um tempo, bastando que ele nos cause a sensação vivida de uma época pregressa: sensação intacta, porque olvidada e não reduzida pela inteligência. Pouco importa a natureza desse objeto: pode se tratar do barulho de uma colher, ou do tropeço em um pavimento irregular; o contraste entre sua banalidade e a profundidade da experiencia por ele desencadeada só faz revelar a relatividade dos valores objetivos. Por meio desses encontros, sempre e exclusivamente por acaso, o trivial e o contingente são incorporados a uma descoberta essencial, na qual dois tempos — e dois “Eus” — são sobrepostos. É assim que, ao mergulhar em seu chá um bolinho insosso chamado “Pequena Madalena”, que sua avó costumava servir-lhe quando criança em Combray, todos os elementos da sua infância são reavivados de assalto, em estado puro. Se essas experiências se tornam seus guias rumo a uma essência perdida, elas também lhe colocam o problema central de sua obra: como recuperar e reproduzir seu valor de ressurreição?
Pouso a xícara e me volto para meu espírito. Cabe a ele encontrar a verdade. Mas como? Grave incerteza, todas as vezes que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o que procura, é ao mesmo tempo a região obscura onde deve procurar e onde toda a sua bagagem não lhe servirá para nada. Procurar? Não apenas: criar. Está diante de algo que ainda não é, e que só ele pode tornar real, e depois trazer para a sua luz.
Os episódios de memória involuntária — frequentemente lidos em chave de comparação com elementos de outros escritores modernistas, como os momentos de ser em Virginia Woolf e as epifanias vazias em James Joyce — são etapas de preparação para a revelação guardada no volume final, pela qual descobre sua vocação para a literatura e o valor estruturante que elas terão em sua obra. A tarefa de criar, de tornar reais essas experiências e trazê-las para a luz, também dependerá de um estilo de escrita. Este é frequentemente formado por encadeamentos de orações subordinadas a uma oração principal que funciona como nascente para um rio lento e extenso navegado por seus períodos longos. Se James Joyce sonhava que sua obra pudesse encontrar um leitor ideal sofrendo de uma insônia ideal, o estilo de Proust tem a força de induzir seu leitor a esse estado.
As traduções
O cuidado da tradução de Mario Sérgio Conti pode ser visto logo na frase inicial da Procura: é a primeira versão em português que escolhe a palavra “longo” para caracterizar o tempo, ecoando o longtemps do original em sua sonoridade sugestiva que se perdia com o opaco “durante” de traduções anteriores. O respeito ao ritmo dos períodos, não temendo a ausência de vírgulas do original, é um mérito compartilhado pela tradução do segundo volume feita por Rosa Freire d’Aguiar: são traduções que entendem que tornar a gramática mais palatável e a sintaxe mais organizada é desfigurar o efeito desconcertante do estilo proustiano que produz uma contaminação entre os elementos estendidos ao longo das frases. Se a exímia tradução de Fernando Py contrastou com os primeiros trabalhos de Mário Quintana ao evitar os regionalismos desde último, as novas edições trazem um Proust em toda a sua originalidade de imagens insuspeitas e pontuações peculiares — é o ritmo encantatório do insone.
Ainda mais acertada é a mudança de título do ciclo, que traduz Recherche por Procura pela aproximação do sentido de “ensaiar, tentar, estudar”, em oposição a Busca, cuja origem etimológica remete ao místico. Pois se o personagem Marcel deve sua descoberta de vocação à contingência dos encontros com os objetos que desencadeiam as memórias involuntárias, de efeitos evanescentes, o que o narrador nos apresenta é a revelação profunda de um mundo que não pode ser desvelado pela estreiteza da racionalidade ou por um esoterismo impalpável, mas somente pela concretude da criação literária:
Procurar? Não apenas: criar.