Em um conhecido poema de William Butler Yeats, Sailing to Byzancium (Rumo a Bizâncio), um pássaro quer se unir à eternidade, libertar-se da natureza e do seu corpo condenado a morrer, para, forjado em ouro, cantar o que é passado, o que passa e o que virá. Ele recusa o fim certo e se apega ao sonho de viver acima do tempo e, portanto, acima da morte.
Max Morden — o narrador de O mar, do irlandês John Banville, vencedor do Booker Prize de 2005 —, um diletante estudioso da história da arte, é impulsionado pelo mesmo desejo. Apesar de, semelhante ao pássaro de Yeats, saber que “tudo quanto se engendra, nasce e morre”, seu coração suplica, “doente de desejo e atado a um animal agonizante”, para ser unido ao “artifício da eternidade”.
Perdido entre o passado, o presente e o futuro, acossado pela morte e pela saudade, ele, contudo, não encontra meios para se libertar do tempo, de suas lembranças e de tudo que o transcorrer da vida lhe roubou. Empreendendo um visceral exercício de resgate da memória, Morden apenas descobre, em meio aos vestígios da infância, um passado pronto a esmagá-lo com sua força.
Essa tentativa de retorno no tempo não se restringe, no entanto, a uma forma de escape. Não. Como se estivesse colocado entre dois espelhos, ele pode olhar para si mesmo e encontrar, num plano posterior, o que normalmente não conseguiria ver: facetas talvez desconhecidas e a criança de certo verão longínquo — tendo consciência, ao mesmo tempo, de quem ele é no presente e de quem ele desejou ser no passado.
Morden almeja recuperar aqueles dias de veraneio no litoral — onde, aliás, se encontra enquanto narra —; e a visão das distantes semanas de felicidade traz consigo não só o desapontamento, mas os sonhos de futuro que ele alimentava, nos quais percebe
uma representação daquilo que só podia ser um passado imaginado. Pode-se dizer que eu não estava exatamente antecipando um futuro, mas, antes, assumindo uma atitude nostálgica com relação a ele, uma vez que, nos meus sonhos, o que estava por vir era aquilo que já tinha passado.
Assim, o futuro, visto a partir de um retorno à infância, torna-se, por um lado, mais suportável do que o próprio presente. Por outro, entretanto, nada pode arrancar Morden da opacidade à qual ele está preso, de suas insatisfações e de suas dúvidas: “Será que era mesmo pelo futuro que eu estava ansiando, ou seria algo que estivesse além dele?”.
Às vezes, sem querer, ele conseguiu se aproximar do sonho almejado pelo pássaro de Yeats:
[…] Sentado diante da minha escrivaninha, imerso em palavras, […] senti que rompia a membrana da simples consciência e penetrava num outro estado, num estado sem nome, onde as leis comuns não funcionavam, onde o tempo se movia de um modo diferente, se é que se movia, onde eu não estava nem vivo nem qualquer outra coisa, e, contudo, me sentia mais presente do que jamais pude me sentir nisso que chamamos, já que é preciso lhe dar uma denominação, mundo real.
Mas, logo a seguir, a sombra da morte volta a intimidá-lo, e exatamente quando ele parece se encontrar a um passo de descobrir a fórmula que o libertará do tempo, percebe que “talvez a vida toda não passe de uma longa preparação para o momento em que devemos deixá-la…”.
Em outros trechos, a ruptura desse inexorável encadeamento se dá por meio de uma duplicação da personalidade: “Vejo o navio negro ao longe, assomando imperceptivelmente, aproximando-se cada vez mais. Lá estou eu. Posso ouvir o som da sua sirene. Lá estou eu, quase chegando”. Mas o duplo que ele imagina enxergar não é nada mais que o seu próprio eu dilacerado.
O magnetismo do pretérito possui tal força que Morden chega mesmo a substituir a presença corpórea da amada Chloe, realmente impossível, por sua presença imaginada, de maneira que a existência dela torna-se algo independente do tempo:
[…] Como é que ela podia estar comigo num momento e no outro não? Como podia estar em qualquer outro lugar, de forma tão absoluta? Era isso que eu não conseguia entender; era isso que eu não conseguia aceitar e continuo não conseguindo. Uma vez afastada da minha presença, ela deveria ter se tornado imediatamente pura ficção, uma recordação minha, um sonho meu; mas todas as evidências me diziam que, mesmo longe, ela permanecia ela mesma, de um jeito sólido, obstinado, incompreensível. E, no entanto, as pessoas vão embora, desaparecem. Esse era o maior mistério, o maior de todos.
No entanto, todas as recordações acabam sendo assaltadas pela realidade, que o faz resvalar do seu mundo onírico, acordando para um presente no qual não há certeza alguma: “Tive uma sensação quase de pânico quando o real, esse real indelicadamente complacente, se apoderou das coisas de que eu pensava me lembrar e deu a elas o formato que bem quis”.
E quando seus pensamentos se confundem e ele não sabe mais discernir entre a reconstrução do passado (maculada pelo olhar de um homem envelhecido) e a inatingível recuperação do que experimentou quando criança, Morden se obriga a concluir, melancolicamente: “Se é que é a própria Memória quem está em ação aqui, e não alguma outra musa, mais imaginativa”.
Natureza e morte
Esse narrador acorrentado às suas lembranças gera uma comparação quase que automática com o narrador de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Mas precisamos ser cuidadosos, pois o retorno ao passado não é patrimônio exclusivo de Proust. As idas e vindas no tempo, buscando dar um sentido não só ao pretérito, mas também ao presente e ao futuro, utilizando-se de diferentes focos narrativos, estão espalhadas pela literatura. E, numa rápida lembrança, poderíamos citar Nostromo, de Joseph Conrad, Fim de caso, de Graham Greene, e Angústia, de Graciliano Ramos — romances que não se encontram sob uma esfera de influência nitidamente proustiana.
Max Morden recua, sim, no tempo. E se a memória o prende ao passado, ele também se encontra acorrentado ao presente, lugar a partir do qual narra o hoje e o ontem, lembrando-se, como mostramos acima, do que, imaginava, seria o seu futuro — uma expectativa não realizada. Assim, há a decepção por não reter o passado — e, no entanto, estar atado a ele, às múltiplas e inebriantes sensações que ele lhe proporcionou e que Morden tenta desesperadamente recuperar — e a de, estando no presente, não encontrar nem o futuro imaginado na infância nem a felicidade parcial que ele acreditava ter construído durante o passar dos anos.
Trata-se de um narrador esmagado por uma tripla experiência de morte: a da esposa, Anna, morta há poucas semanas; a do passado distante — vivido nos arredores da casa chamada Os Cedros e cuja sensualidade foi a experiência mais crucial de sua vida —, perdido irremediavelmente; e a da sensação de inutilidade nascida do decorrer do tempo, da própria vida, com todas as frustrações que, enquanto ele narra, o fazem se antecipar à sua ruína.
De onde Morden está, não se vê qualquer futuro, mas apenas decepção. Sempre que o passado retorna, ele surge, inicialmente, na forma de um enlevo pleno de sensualidade, mas logo depois tudo se corrompe. Não há iterações. O narrador não consegue restaurar o passado, por mais que se esforce. Mesmo Os Cedros parece mudada: alguns cômodos surgem completamente diferentes do que ele lembra e há poucos vestígios capazes de ajudá-lo. Na há madeleines em John Banville. Ao contrário do que ocorre no romance de Proust, não existe tempo reencontrado ou redescoberto em O mar, mas apenas a destruição de tudo que é humano, sabendo, numa convicção ainda mais angustiante, que a natureza — cuja força e encanto conformam a única certeza desse narrador — permanecerá, vibrante, luxuriosa, iluminada. E sempre pronta a desdenhar dos homens, magnífica mas indiferente.
Figuras inusitadas
Se, contudo, insistirmos em comparar o texto de Banville a outras experiências literárias, talvez um estudo acurado possa nos mostrar o diálogo que ele mantém com a própria literatura irlandesa — pensemos, por exemplo, em O mar, o mar, de Íris Murdoch — ou com um de seus poetas preferidos, Wallace Stevens, o Bardo de Hartford, e os dez cantos que compõem o poema The auroras of autumn (As auroras boreais do outono). A fulgurante natureza do canto VI, por exemplo, está desdobrada em todo o livro, assediando o leitor com sua lascívia e aturdindo-o desde a primeira página:
As aves gritavam e mergulhavam do céu, parecendo perturbadas pelo espetáculo daquela imensa bacia cheia de água que inchava como uma bolha de um azul quase chumbo malignamente reluzente.
Essas imagens arrebatadoras se repetem, não num exercício fútil de estilo, mas dilatando, até muito além do suportável, a impassibilidade da natureza:
Um raio de sol desceu de viés sobre a praia, deixando a areia da orla branquíssima, e um pássaro branco, ofuscante contra o pano de fundo da muralha de nuvens, se ergueu no céu com as asas como foices, e, virando-se com um estalido inaudível, mergulhou no dorso do mar feito um “v” bem fechado.
Era um suntuoso, isso mesmo, um suntuoso dia de outono, com todos aqueles cobres e ouros bizantinos sob um céu de Tiepolo, de um azul-esmaltado. O campo estava parado e com uma aparência vítrea, mais parecendo o seu próprio reflexo na superfície calma de um lago. Era o tipo do dia em que, ultimamente, o sol tem me parecido o olho empapuçado do mundo, observando tudo com o maior prazer, enquanto eu fico aqui me contorcendo na minha infelicidade.
Quando a luz foi se tornando mais rala por entre as árvores, e a sombra do prédio em frente começou a baixar sobre o jardim como o alçapão de uma armadilha […].
E há também comparações incomuns, instantâneos de um artista que não teme a busca da imagem mais adequada, da figura precisa para o que ele realmente deseja expressar. Um escritor vacinado contra aquele mal — infelizmente tão comum entre alguns autores contemporâneos — que denomino de narratofobia:
A luminosidade do verão, espessa como mel […].
[…] e nadávamos à noite, quando a água passava por cima dos nossos braços como ondulações de cetim negro.
Um silêncio profundo, onírico, foi se acumulando ao nosso redor, brando e denso, como o lodo.
O céu estava todo nublado e não havia um vento sequer para agitar a superfície do mar em cujas margens as ondas miúdas se quebravam numa linha um tanto apática, fazendo sempre o mesmo movimento, como uma bainha incessantemente dobrada por uma costureira sonolenta.
Para John Banville, “os romancistas são os historiadores não reconhecidos do mundo”. Em O mar, Max Morden é o historiador de si mesmo, devassando sua memória em busca dos deuses que partiram. Não um memorialista frio, mas alguém que vasculha o passado numa incessante procura, certo de não ansiar por juízes do comportamento alheio, seres mitológicos ou, muito menos, atormentados que se flagelam e se deixam abater, mas buscando ardorosamente os deuses que ele nunca cansou de amar.