Quando Odysseus Elytis publicou seu longo poema Axíon Estí (Louvado Seja), em 1959, seu nome começou a popularizar-se na Grécia, alcançando reconhecimento internacional pouco tempo depois, com a versão musicada por Míkis Theodorákis, um espetáculo de canto e orquestra capaz do prodígio de comover multidões. Elytis acreditava ser possível um poeta moderno beber da tradição e, partindo de novas condicionantes, “conseguir erguer mais uma vez um edifício sólido”. Foi assim que, de uma visão da Natureza, da História, das Leis e do Destino surgiu o longo poema de um homem sozinho em um mundo que, apesar do que foi feito dele, ainda é um mundo digno de louvor.
Passado mais de meio século, surge Uma viagem à Índia, de Gonçalo M. Tavares. À primeira vista, surpreende a criação de uma epopéia em pleno século 21. Sem dúvida existe aí uma obra invulgar e portentosa, porém se trata de um portento no âmbito da linguagem. História, Natureza, Destino participam desse longo poema, mas já não promovem uma conversão positiva nem ascendem à dimensão de um canto congraçador, como é o caso do poema de Odysseus Elytis. Nessa epopéia de um único homem à procura do Espírito, toda a viagem se passa em uma jornada do pensamento atravessada por sensações, intuições e, sobretudo, pelo sopro desmistificador da ironia. Dentro do rol das grandes aventuras literárias que pensam a própria linguagem, Uma viagem à Índia se destaca como uma exuberante reflexão sobre questões de poética em um século versado em tecnologia, no individualismo e no aviltamento das relações humanas convertidas em transações comerciais.
Com uma vasta obra que passeia pelos mais diversos gêneros, do teatro ao romance, do ensaio à poesia, Gonçalo M. Tavares é dono de uma vitalidade criadora que particulariza sua voz no campo da metaficção contemporânea, o que se faz notar pela copiosa lista de prêmios nacionais e internacionais que seus livros acumulam, o mais recente deles, o Prêmio de Melhor Livro de Ficção Narrativa, da Sociedade Portuguesa de Autores, concedido a Uma viagem à Índia. Embora circunscrito nos domínios da ficção narrativa, esse poema em dez cantos de Gonçalo se apresenta como o lugar para onde convergem e onde se adensam os temas e caracteres dos personagens literários que desde há muito lhe são caros, mas não apenas isso, senão que neste lugar de convergência dos aspectos fundamentais de sua obra o autor exercita longamente sua ética de admirar o mundo, uma disciplina da atenção que direciona seu olhar e esculpe a matéria deste e de outros poemas anteriores de sua trajetória.
Pelos menos três forças podem ser identificadas na arquitetura dessa epopéia. A primeira delas vem da série O bairro, um segmento da obra de Gonçalo que reúne personagens da literatura e da filosofia ficcionalizados pelo autor. A idéia de escritores que se aproximam por habitarem o mesmo bairro intelectual, como Borges uma vez definiu seu parentesco com o escritor Ernesto Sabato, é evidente na configuração do bairro literário de Gonçalo. Ali habitam inúmeros personagens, entre eles, Sr. Valéry, Sr. Cortázar, Sr. Borges, Sr. Calvino, Sr. Juarroz, Sr. Brecht, Sr. Eliot, Sr. Breton. Os traços definidores da personalidade de cada um deles e do modo como observam o mundo e a si mesmos parecem se valer do esboço da mesma “Quimera da mitologia intelectual” que inspirou Paul Valéry a criar seu Monsieur Teste. Também compõe tais personagens uma atmosfera lúdica e afetiva como a que envolve os cronópios e as famas de Cortázar.
Criatura literária
Em Uma viagem à Índia, aquele que viaja para arejar o seu caminho e para ler nas variações da paisagem diferenças de linguagem, aquele que se move dentro da epopéia de cada dia em meio a elaborações teóricas, pressentimentos e vontades, chama-se Bloom. Esta é a criatura literária que empreende a longa odisséia interior do homem contemporâneo do Ocidente ao Oriente, transpondo, em suas deambulações mentais, fronteiras entre o desejável e a realidade. Em Bloom se concentra e explode em ação a energia que alimenta as especulações dos personagens da série O bairro: os exercícios de atenção do Sr. Calvino, a originalidade dos raciocínios do Sr. Juarroz, os princípios de lógica do Sr. Valéry, as elucubrações do Sr. Eliot em suas conferências sobre poesia.
A fonte dessa energia mental que entretém os habitantes do bairro de Gonçalo e que impele o herói de sua epopéia a se deslocar pelo mundo é uma segunda matemática, “a que se perdeu nos tempos”, como diz o Sr. Henri, a matemática “que deu origem, por caminhos e subcaminhos, à poesia”. Pois é esta secreta inteligência, de uma matemática que pode já ter existido e ter sido subjugada pela força, derrotada em uma batalha arcana entre dois povos, é esta lógica sensível enquanto modo de perceber a realidade e de agir sobre ela que Gonçalo põe em prática na jornada de Bloom. “Se a álgebra é uma religião rigorosa,/ a poesia será uma religião excessiva, religião entre/ a embriaguez e um espaço onde/ as mais belas músicas descansam/ antes de novamente conquistarem o ar.” (Canto II). Com essa embriaguez e um olhar ciente de imprevisibilidades, Bloom sai em busca de “uma alegria espiritual mas que exista”, pois aí está o propósito de sua viagem à Índia: a busca de um sistema poético de pensamento que possa converter-se não somente em lucidez mas também em júbilo, tal como o absinto para o Sr. Henri erige sua “teoria sobre o mundo”.
Bloom é um especialista na “ciência das investigações privadas; a ciência em que um homem se experimenta”. Bloom sabe que “o tempo tornou-se material” e agora “exige atos e experiência”. Por isso Bloom é um homem que decide, um corpo em excitação constante, que se desloca e utiliza sua energia tanto para a guerra como para o amor. A busca pelo Espírito que move esse personagem desassossegado e reflexivo a partir da velha Europa até a Índia das águas sagradas é uma problemática da poética dos novos tempos em que “as palavras exigem apoios místicos mas que estejam no chão como sapatos”; é também uma problemática para a estética de uma época em que “os homens são gênios do bem para o ouro, gênios do mal para a paisagem”; e ainda uma problemática para a língua de um país “que já nem se preocupa se fabrica ou não poetas”; todas elas questões que se colocam como tarefa para o pensamento em um século que descende do progresso tecnológico que viabilizou as grandes fábricas da morte e que portanto já não tolera sutilezas nem palavras delicadas.
O problema do mal
Uma segunda força na elaboração dessa epopéia, que compõe o cenário de peripécias vividas pelo herói, é o que reúne na Tetratologia de Gonçalo os romances Um homem: Klaus Klump, A máquina de Joseph Walser, Jerusalém e Aprender a rezar na era da técnica: o problema do mal. A galeria de assassinos, prostitutas e miseráveis que nesses romances colabora para a criação de uma atmosfera verdadeiramente sombria, em Uma viagem à Índia funciona como uma emanação dos pressentimentos de Bloom, configurações de uma realidade perversa sobre a qual o personagem medita enquanto viaja. Bloom vem, ele mesmo, de um passado violento e em sua viagem espera encontrar, além de sabedoria, esquecimento. Bloom sabe que “nem um segundo separa a educação da barbárie”, que “só não se mata por acasos do caminho” e que “não se enterra a maldade,/ ela é apenas interrompida”.
Lenz, personagem de Aprender a rezar na era da técnica, vê uma maldade subterrânea na natureza, que está crescendo e um dia se tornará o grande inimigo do homem. Bloom sabe que “há uma guerra bem mais forte e bem mais alta,/ porém os generais ainda não perceberam”, e essa guerra será contra a Natureza. O personagem Busbeck, de Jerusalém, empenha-se em construir um gráfico do horror na História, uma espécie de eletrocardiograma da maldade humana. Bloom, por sua vez, procura fazer do sofrimento um sistema e tem sua viagem mapeada em um plano cartesiano de ações, intenções e sentimentos que resultam em um itinerário da melancolia contemporânea. O personagem Klober, de A máquina de Joseph Walser, acredita que “o ódio é a grande marca do Homem”, e que em breve esta será a única razão para que dois corpos se aproximem. Para Bloom, o ódio entre os homens é uma lei da natureza e, se ainda lhe resta uma certeza, é a de que ninguém se aproximará dele para abraçá-lo. Em Um homem: Klaus Klump, o protagonista não sabe se voltará para casa com os dois braços com que saiu. Bloom, por sua vez, sabe que “estamos vivos, levantamos a cabeça: cortam-nos a cabeça”.
Percorrendo este mundo decomposto pela mesquinhez humana e pela crueldade, buscando espaço para o otimismo, dispondo de uma coragem tanto capaz de matar como de salvar e construir, o herói de Uma viagem à Índia parece imbuído da determinação de esquecer não apenas o seu passado, mas “todo este atoleiro para se chegar a ser um homem e não uma máquina de incubar o ódio”, estas que são palavras de Albert Camus dedicadas ao poeta Alexandre Blok. Eis aí a terceira força na epopéia de Gonçalo: a poesia propriamente dita, o amor enquanto sentimento central, a música que vem dos números, uma alegria que não tem preço no mercado das coisas consumíveis, a grande alegria que sustenta uma montanha e que se pode chamar de alma, as mensagens dos sonhos, mais próximas da verdade que da ciência, a crença no espírito: este é o país que o herói de Gonçalo procura.
Energia e ética, poema de uma coletânea do autor já publicada no Brasil em 2005, intitulada 1, serve como síntese da ação poética de Bloom em sua jornada: “qualquer pessoa dar um passo que seja/ em direção ao que não aprecia, para insultar ou derrubar,/ parece-me brutal perda de tempo, uma falha grave/ no órgão de admirar o mundo”. É assim que, pouco antes de chegar à Índia, Bloom decide admirar. Depois de sobreviver à maldade dos homens e da natureza, depois de ter aprendido com o sofrimento, Bloom dirige sua energia para a admiração e a paciência. Porque apesar de o mundo ter perdido o Espírito, Bloom não perdeu o espírito: “O estômago existe, e tem fome./ (…)/ Mas o espírito também existe, e tem fome”. Porque apesar de trazer consigo um inferno, Bloom também traz o indispensável para a alegria. Porque “os milagres recolheram há muito às cavalariças”, no entanto, “não é por ter entrado no século XXI que a alma perdeu a atualidade”.
A procura pela sabedoria de um país sagrado aqui se traduz na investigação de uma potência poética que seja realizável neste novo século, que possa salvar da bestialidade o homem contemporâneo, elevá-lo a um estado de atenção e a uma vontade de edificar, não pela força, mas por uma “claridade súbita”, um discurso mágico enquanto experiência, uma experiência que exceda os domínios do literário. Sucede que, de seu longo périplo, o herói da epopéia de Gonçalo regressa desiludido. A possibilidade de iluminação permanece em estado de linguagem, simbolizada na edição rara do Mahabarata que Bloom carrega em sua mala. A derradeira estação desse itinerário da melancolia contemporânea não é sabedoria nem música, mas tédio.
Curiosamente, o ano de 2003, data em que se passa a narrativa da epopéia, marca também o ano de estréia de Um filme falado, de Manoel de Oliveira, uma espécie de documentário ficcional sobre uma professora de História e sua filha, que partem de Portugal até a Índia, refazendo nesse percurso o mesmo trajeto realizado por Vasco da Gama no século 15. E o que triunfa dessa visitação à memória de antigas civilizações, o que resta, ao final do filme, de toda essa aprendizagem minuciosa do olhar, que se detém com mesma surpresa sobre o mundo de ontem e o mundo de hoje, é a barbárie, a destruição, o terrorismo.
Fica, pois, como tarefa para depois dessa viagem histórica — uma viagem que, nessa epopéia, tal como em Os Lusíadas, invoca o auxílio das ninfas e das musas, sendo portanto uma jornada pela história da linguagem, entre outros pilares (ou ruínas) da civilização —, fica como tarefa, para além da literatura, repensar o que pode um poema quando libera sua energia e fortalece a vontade humana. Afinal, como declarava Odysseus Elytis em seu discurso na entrega do Prêmio Nobel, em 1979, “se a poesia contém uma garantia, e isto nestes tempos sombrios, é precisamente esta: que o nosso destino, apesar de tudo, está nas nossas mãos”.