Numa família de origem judaica, seis parentes arregimentam seus diferentes olhares para contar uma mesma história, em que as dores, os silêncios, os pequenos dramas e outros conflitos e dilemas são repassados numa prosa seca e cortante, que costura memória e sentimento para falar de solidão, afetos e esgarçamento de relações. Essa é a tônica de Amanhã não tem ninguém, segundo romance do carioca Flávio Izhaki, que estreou em 2008 com a novela De cabeça baixa (Guarda-chuva), bem recebida pela crítica.
As diversas gerações do núcleo familiar são mapeadas por um sutil desfiar de novelos íntimos, em que as percepções sobre determinados fatos variam a partir da visão de cada um dos protagonistas. Transitando entre Israel, São Paulo e Rio de Janeiro, as histórias ocorrem em espaços cronológicos, geográficos e psicológicos distintos, porém com um profundo liame existencial, como se infere da própria circularidade estrutural da obra.
A cena inicial do romance invoca a simbologia e a natureza judaicas, quando Patrick, bisneto de Natan, um adolescente ensimesmado, pouco comunicativo, cujos pais se separaram e viciado em videogame e computador, é escolhido para acompanhar o caixão do avô até o cemitério. No percurso, o motorista da Kombi que conduz o féretro inicia um diálogo improdutivo com ele, na tentativa de conhecer as tradições e costumes do seu povo. No entanto, por Patrick ter convivido pouco com seu ancestral, a conversa não resiste ao silêncio e às lacunas, e sob essa perspectiva é que se delineia toda a ação e tensão do livro, na alternância das diversas vozes que se apresentam, no confronto entre passado e presente e na esteira de flashbacks e fluxo de consciência, rememorando situações e vivências.
A narrativa em primeira pessoa na voz de cada um dos membros da família — o menino, sua mãe e seu pai, um tio, o avô e o bisavô — traça, em chave fragmentária, as nuances de vidas cujas re(l)ações se abrem feito um leque de encontros e perdas, desencontros e lutos, em que as lembranças resgatam peculiaridades determinantes em suas vidas.
A ascendência judaica é tema instigante e encontra vasta ressonância na ficção produzida no mundo, e no Brasil ecoa nas obras de alguns dos nossos principais autores, entre os quais Moacyr Scliar e Samuel Rawet, e mais recentemente em Michel Laub, Ronaldo Wrobel, Tatiana Salem Levy, Bernardo Ajzenberg, Leandro Sarmatz, Noemi Jaffe, Jacques Fux e Adriana Armony. Nesse mesmo diapasão sintoniza-se Amanhã não tem ninguém, em que Izhaki constrói uma espécie de Diário da queda de uma família, utilizando em sua densa narrativa os confrontos entre gerações e costumes, explicitando situações de ruptura e tensão, como no caso de Mônica, mãe de Patrick, que pagou alto preço por não ser judia, não sendo aceita pela sogra.
No romance, todos carregam uma angústia, ora afetados por uma carência ou uma precariedade afetiva; ora atravessados por um passivo psicológico, que se traduz em momentos-chave, quando uma experiência aguda funciona como divisor de águas em suas trajetórias. É o caso do filho caçula, Marquinho, que serviu ao exército israelense, flagrou o suicídio de um rapaz no metrô após um flerte amoroso e platônico, presenciou a morte do pai, fulminado por um enfarto, e vive assombrado com a morte de um paciente. Ou ainda, o impasse geracional de Ana e Natan, que, depois de cinco gestações frustradas foram obrigados a adotar Marlene, cujo nome causaria certo desconforto por ser considerado anti-judaico.
Topografia do vazio
Sensível e delicado, Amanhã não tem ninguém empreende uma viagem, com uma mirada impressionista, às razões, à essência, aos fantasmas e aos segredos de uma família cujas vivências e recalques, tão desconfortáveis e corrosivos, foram determinantes para o rumo que tomaram. Nessa sutil topografia sentimental e de forte carga mítica e sensorial, o autor reflete sobre memória, esquecimento e história pessoal, como se cada personagem em busca de sua dor única fosse também ao encontro de outros valores, no sentido de se evitar que a rigidez que contaminou certos relacionamentos e impingiu a consciência de um dilaceramento insularizante seja superada, para que a vida continue e se recoloque nos trilhos, apesar dos paradoxos que a inviabilizaram até ali.
Em seu final inusitado e impactante, o livro sugere uma leitura possível dessas vidas que poderiam ter sido e não foram, a partir do encontro entre avó e neto no cemitério, quando este, sob o influxo do jogo que tanto mobilizara suas forças, abre fronteira à esperança e ao recomeço: “A vida não acaba com uma morte, vó”. E naquele espaço de tristeza, incomunicabilidade, acaba por reverberar a consciência da própria mãe, que em um dos momentos altos do livro, ao refletir sobre tantos vazios e ausências, acicata: “Para onde vai aquilo que sentimos e perdemos?”. Eis a grande inquietação que percorre toda a narrativa de Izhaki.