À procura da linguagem

Em novo romance, Laurent Binet nos apresenta uma narrativa policialesca e filosófica sobre Barthes e suas relações
Laurent Binet, autor de “Quem matou Roland Barthes?”
26/08/2017

É fato: no dia 26 de março de 1980, Roland Barthes faleceu no hospital de la Pitié-Salpêtrière, em Paris, em decorrência de seu atropelamento por um furgão cerca de um mês antes. Uma morte repentina que, além de acabar com a vida do crítico literário e semiólogo francês, também encerrou sua participação vigorosa no cenário intelectual da época. Esse acontecimento poderia ficar por aí, mas o que ocorre no pós-vida, para além do que nos dizem religiões e mitologias, é feito por quem resta. Barthes sofreu um acidente de trânsito, mas não faltou gente que especulasse sobre as relações desse evento com sua vida pregressa. Há até mesmo quem diga que, por seus escritos, pode-se dizer que ele já sabia que estava para morrer. O problema é que, diante dessa perda, muitos ficaram atordoados.

À parte dessas elucubrações, também há as homenagens. Além daquelas oficiais ou mais cerimoniosas, existem as mais inusitadas. Por exemplo, em 2015, pelo centenário de nascimento do escritor, a Hermès, a segunda maior marca de luxo do mundo, lançou um cachecol nomeado Barthes. Com certeza, ao teórico francês essa homenagem seria fonte de um bom ensaio sobre os signos presentes nesse produto da moda, objeto de suas análises em Mitologias (1957) e Sistema da moda (1967). Outra celebração que suscitou curiosidade em 2015 foi o lançamento do premiado Quem matou Roland Barthes?, de Laurent Binet. E por que tanto interesse por essa obra em especial? O título da tradução brasileira e o que disse no parágrafo anterior já nos dão a resposta: ninguém matou Barthes, ao menos não de propósito.

É evidente que o título nos remete ao romance policial, como se fôssemos acompanhar uma investigação que busca o assassino do crítico francês. Como homenagem é no mínimo inusitada, mas não deixa de ser criativa e inovadora, aspecto predominante na produção do autor nascido em 1972 e que, desde o lançamento de HHhH, em 2010, tornou-se premiado e reconhecido em seu país e fora dele. Em seu primeiro romance, Binet se aventurou pela ficção histórica, por um testemunho da atuação da SS, o serviço secreto nazista. Talvez essa seja uma das razões para que também seu mais novo romance seja visto como histórico, como atesta até mesmo a catalogação bibliográfica de sua edição brasileira. A motivação é compreensível, afinal, além de Roland Barthes, lemos muitos nomes do pensamento francês em alta em 1980, algo patente como uso de dados históricos. No entanto, à parte do fato do acidente de trânsito, nada ali é de fato verificável ou pelo menos presente na historiografia ou em memórias pessoais.

Paródia
Talvez Quem matou Roland Barthes? queira justamente nos propor essa reflexão: poderíamos de fato saber o que aquelas pessoas pensavam ou pensariam dos acontecimentos narrados no romance? Nesse sentido, é uma ficção histórica de alta qualidade, renovadora do gênero, mantendo-se no limite tênue entre a paródia, herdada tanto do romance latino-americano quanto da própria ficção francesa, como Frédérick Tristan. A história ali figura, porém é a princípio só a origem de um romance filosófico ou intelectual, como uma história das ideias. Binet não parte do pressuposto que todos conhecem a obra barthesiana; apresenta-a aos poucos para o desenvolvimento do enredo. Realiza isso também para justificar ações de personagens, de modo que o leitor se situe bem na teia de relacionamentos por trás dessa produção acadêmica. Portanto, Michel Foucault no romance não é sua filosofia, mas uma projeção do filósofo e do indivíduo em si, ou melhor, do imaginário que temos dele. Por essas imagens se constrói a sátira: Foucault ironiza a todo tempo Bayard, policial encarregado da investigação, por sua posição na sociedade. Isso também vale para outras personagens, como Philippe Sollers, arrogante demais para pensar nos outros, e Valéry Giscard d’Estaing, o presidente francês à época, figura menosprezada mas ainda poderosa.

A primeira parte do romance, focada na investigação ainda em Paris, transcorre por esse viés satírico, mas mantém, ao mesmo tempo, o registro policialesco, com uma ironia metaliterária. Bayard, o policial, parece estar já cansado de seu trabalho desde o início, em grande parte devido à sua aversão à intelectualidade esquerdista francesa. Além disso, vê-se inapto para lidar com a carga de trabalho, não somente por desconhecer Barthes, mas também por ter dificuldades para se concentrar nessa única empreitada, considerada prioritária pelo governo. Deve descobrir quem planejou a morte do crítico literário e por que os documentos que carregava sumiram no momento do atropelamento. Nesses papéis, estariam ideias talvez perigosas, que, elaboradas a partir da teoria das seis funções da linguagem de Roman Jakobson, proporiam uma sétima função, nova e perigosa (daí o título original, La Septième Fonction du langage).

Humor
Para que consiga verificar se a suspeita de que não tenha sido de fato um acidente é infundada ou não, decide abordar todos os que conheciam ou teriam visto recentemente o falecido, inclusive michês. No entanto, logo sua distância daquele círculo se torna um empecilho, razão pela qual aborda e intima Simon, doutorando em linguística e professor em Vincennes, para ajudá-lo. Este incorpora, no romance, um estereótipo de semiólogo: detecta signos em tudo a seu redor e, com agilidade, decodifica toda uma realidade de modo preciso e surpreendente, um exagero que traz também humor à narrativa, além de ser um meio para apresentar a ciência à qual se dedicou Barthes.

Embora tenha seu lado filosófico, de história das ideias, Quem matou Roland Barthes? não cansa de maneira alguma o leitor com um amontoado de teorias. Elas surgem aos poucos ao longo do romance, de acordo com a necessidade, sempre ligadas às personagens que se pronunciam sobre as relações que circundam a vítima. O espaço da narrativa também muda aos poucos, conforme a investigação demanda o deslocamento para outros lugares, como a Itália e os Estados Unidos, o que agrega o elemento da viagem à criação. Ao longo do livro, o leitor poderá perceber que a trama policial, de Bayard e Simon, se torna secundária diante da sátira e do humor derivados de personagens tão distintas em interação, não se reduzindo às imaginadas dificuldades de comunicação entre o investigador e o professor. Esses embates entre eles e também com intelectuais e até mesmo membros da inteligência do leste europeu nos aproximam também de um contexto político que a França (e não só ela) revive hoje: as incertezas diante dos representantes da direita e da esquerda em época pré-eleitoral, no caso, antes da votação que alçaria François Mitterrand ao poder como primeiro presidente socialista do país.

Finalmente, pode-se dizer que Quem matou Roland Barthes? consolida o percurso literário de Binet, muito distinto de outros autores franceses contemporâneos, atento para sua realidade, sua formação enquanto leitor, o que é confirmado por esse novo romance. Após a morte de Barthes, a França deixou de representar a tendência majoritária na filosofia e nas ciências humanas em nível mundial, mas restam sua história e suas ideias, que são revistas e, na medida certa, satirizadas pelo romancista, de uma geração que cresceu ainda sob a influência dessas personalidades. Como homenagem ao crítico literário em seus 100 anos, essa idade imaginária, projetada por aqueles que o têm como referência, a obra de Binet é um meio eficaz de se evitar a simples cerimônia e prolongar pela literatura a existência de todo um pensamento.

Quem matou Roland Barthes?
Laurent Binet
Trad.: Rosa Freire d’Aguiar
Companhia das Letras
416 págs.
Laurent Binet
Nascido em 1972, em Paris, tem a literatura como seu objetivo desde a graduação em Letras Modernas, formação que o levou trabalhar em escolas e universidades francesas. Seu romance de estreia é HHhH (2010), ganhador do prêmio Goncourt de revelações e traduzido para outros países, como o Brasil. Também escreveu sobre política e sua vida profissional.
Daniel Falkemback

É professor, tradutor e doutorando em Letras na UFPR.

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