O nome de Lygia Fagundes Telles está, inevitavelmente e não sem razão, associado ao dos grandes escritores da literatura brasileira, ao dos famosos “imortais” da ABL. A vasta trajetória que tem percorrido como romancista, contista e militante ativa nos embates teóricos e políticos que envolvem o ofício literário nos faz dirigir um olhar mais que atento ao conjunto de sua obra, que vem ganhando consecutivas reedições, ampliadas e comentadas. Naturalmente, acompanhando o movimento crescente dessa pluralidade ficcional, há também, um rico acervo de estudos a respeito de sua criação. Além da acurada crítica de Fabio Lucas — tido, talvez, como dos mais habilitados leitores especializados na obra de Lygia — deparamo-nos com análises muito valiosas, tais como as de José Paulo Paes e Silviano Santiago, publicadas na edição de março de 1998 dos Cadernos de literatura brasileira, do Instituto Moreira Salles, todo dedicado à autora. Assim, Paes, por exemplo, percebe a grandeza de um percurso literário em que, especialmente os romances Ciranda de pedra (1953), Verão no aquário (1962) e As meninas (1973) se alinhariam como típicos romances de formação.
Guardando as particularidades e as tramas de cada um, é possível, com efeito, perceber que a sucessão de desencontros sofridos pelas protagonistas — respectivamente Virgínia, Raíza e Lorena — apontam para um núcleo de desrazão e absurdo nos assuntos do mundo. Aqui, os traços específicos do bildungsroman estariam concentrados no fato de que suas heroínas precisam enfrentar uma série de conflitos, deixando-se marcar por eles, integrando, em seu caráter, as experiências pelas quais vão passando.
Interessa notar que, originalmente (Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, de Goethe, é de 1795-96), o protagonista desse tipo de romance era sempre um jovem do sexo masculino, uma vez que às mulheres não era possível, à época, a liberdade de movimentos que permitia ao herói o contato com as múltiplas experiências sociais, decisivas no percurso do autoconhecimento.
A dicção discursiva de afirmação do feminino em Lygia, ao eleger, com freqüência, como centros gravitacionais de seus enredos, mulheres, busca de certo modo equilibrar as forças, numa sociedade em que as relações de poder eram mantidas pela imposição do masculino. Sem ser “feminista” no sentido literal do termo, ao tratar das dificuldades e conflitos de uma geração de mulheres que, especialmente a partir da década de 50, precisava lutar por igualdade de direitos em meio às tradições reacionárias machistas, a autora enfrentou com pertinência o tema dos preconceitos que se travavam, então, contra a mulher.
Inseridas, pois, no amplo leque dos chamados romances de formação, há que perceber o quanto as mencionadas obras da autora jogam com duas tendências fundamentais: por um lado, a necessidade de expressar o mundo concreto, por outro, a necessidade de superá-lo. Da tensão entre a realidade e a possibilidade, entre o real presente e um alternativo resulta o caráter particularmente híbrido desse tipo de romance.
Via-crúcis de heroína
Com efeito, em Ciranda de pedra, temos Virgínia, lidando com as desavenças de um mundo familiar, fechado e rígido, em que não consegue ser aceita. O título remete às estátuas dos cinco anões que enfeitam a fonte da mansão do suposto pai da heroína, mansão onde passa a viver após a morte de sua mãe adúltera e o suicídio de seu verdadeiro pai. Ali é tratada com irritada condescendência pela governanta alemã de suas duas meio-irmãs e se sente excluída da roda de amigos delas, a que sonha pertencer. Essa roda é simbolicamente representada pela ciranda dos cinco anões: “a resistência dos dedos de pedra” deles não permite o ingresso de Virgínia.
Diante do conflito doloroso da rejeição, ela acaba criando para si mesma a alternativa de ficar interna em um colégio, inclusive no período de férias. A partir do afastamento — com tudo de aprendizado que a ruptura dos vínculos aparentes possa comportar —, Virgínia adquire condições de voltar à mansão da família, vendo-a, agora, com novos olhos. Nesse processo de autoconhecimento, na viagem que deve fazer no sentido da própria maturação individual, ao final, consegue ler criticamente aquela hipócrita ciranda familiar, a qual não vale a pena querer pertencer.
Depois de cumprida essa trajetória, a via-crúcis de heroína em crise, a ex-menininha de unhas roídas conclui:
O mal maior foi (ela, Virgínia) não estar nunca presente, não ver de perto as coisas que assim de longe se fantasiavam como num sortilégio. Teria visto tudo com simplicidade, sem sofrimento. (…) Os semideuses eram apenas cinco criaturas dolosamente humanas.
Em síntese, Ciranda de pedra aborda uma profusão de temas que vão desde o adultério, a loucura e o homossexualismo feminino até a impotência masculina, a falta de perspectivas profissionais e o trauma da ausência do pai, tudo costurado sobre o pano de fundo da decadência de certa estrutura familiar e do processo de formação de uma personalidade (no caso, a de Virgínia).
Sufoco
De modo análogo, o segundo romance de Lygia, Verão no aquário, também tem por protagonista uma jovem, Raíza, cujos conflitos existenciais estão basicamente centrados no relacionamento perturbado com a mãe, Patrícia. Aqui, a simbologia do verão muito quente, traduzido em termos da opressão exercida pela mãe, associado à estreiteza protetora e artificial do aquário/redoma onde a moça se sente como que confinada, revelam um tipo de aprisionamento do qual Raíza busca se libertar.
Se, no primeiro romance, a situação concreta que é preciso superar é a da rejeição, representada por meio da impenetrabilidade no círculo familiar feito de pedra, aqui a superação precisa se dar contra o sufoco (comparado ao calor escaldante de certos verões) da presença racional da mãe, muito ocupada com as questões do mundo prático e, em contrapartida, a ausência de um pai idealizado, obsessivamente lembrado e associado a um espaço mágico e lúdico.
É assim que a jovem descreve o tipo de mal-estar que se estabelece entre as duas: “Há um germe que se instalou em nós, mas agora resolvi reagir, não quero mais esse vazio, não quero mais esse desespero, quero fortalecer a minha vontade”.
Outra vez, o problema concreto e a necessidade de superação.
Enfim, o retrato da adolescente quebrando as paredes de vidro do pequeno mundo em que se sente obrigada a viver, buscando um mundo alternativo, por meio do autoconhecimento, à procura de uma identidade: “Estou me despedindo do meu aquário, mamãe, estou me preparando para o mar, não percebe?”.
O romance As meninas, de 1973, assim como os dois anteriores, traz à cena três protagonistas tão jovens como Virgínia e Raíza. Os projetos de vida de Lorena, Lia e Ana Clara tipificam os caminhos ou descaminhos com que se defrontava a juventude universitária dos anos 60-70, quando o regime militar se impôs de modo violento e absoluto. Nesse caso, porém, substituem-se os grilhões circunscritos às cirandas familiares pelos amplos conflitos do mundo, datados num tempo fortemente marcado pela repressão.
Os desencontros existenciais que nesse romance se verificam poderiam ser assim resumidos: Lorena se mortifica com uma virgindade que insiste em manter, numa época de total liberação sexual; Lia encarna visceralmente o ideal revolucionário, junto a Miguel, seu amante e companheiro de militância, com quem viaja para a Argélia; Ana Clara, obstinada em enriquecer por meio de sua beleza de modelo profissional — alternativa de superação de uma infância feita só de miséria, violência e degradação —, acaba morrendo por overdose de cocaína.
A superação dos conflitos, aqui, no processo de formação de cada uma delas, será catalizada pela figura central de Lorena. Como bem observa José Paulo Paes:
No desenlace da efabulação de As meninas, a figura de Lorena ganha um relevo que lhe dá redondez ficcional. É ela que garante a Lia os meios de ir ao encontro do amado na Argélia; é ela quem toma as medidas necessárias para tornar menos ignóbil a morte de Ana Clara, evitando um escândalo cuja repercussão iria arruinar as inocentes freiras que lhes davam abrigo. Sua intervenção ativa em situações do mundo mostram que, dentro da delicada concha de ordem, limpeza, requinte e supérfluo em que se compraz em viver, há mais do que aquela “intelectual burguesa podre de chique” a que faz referência Ana Clara num momento de despeito.
Segundo Lukács, é no romance de formação, síntese entre o idealismo abstrato e o romance de desilusão, que a forma adquire sua melhor possibilidade. Daí porque esse tipo de romance possibilite o que ele denomina “experiência compreensiva” ou “reflexão polêmica”.Não parece ser outra a estratégia de Lygia, ao investir magistralmente nos fluxos introspectivos do monólogo interior de seus personagens, numa narrativa que se volta aos estados mentais, ainda que não descuide dos acontecimentos históricos e sociais.
Narrativas de subjetividades, essas três obras, fundamentais no corpus ficcional da autora, elegem o processo, o percurso, a viagem do eu atormentado em seus embates com o mundo e as formas reflexivas da introspecção do narrar como tônica dominante.
Romance outonal
Se Ciranda de pedra, Verão no aquário e As meninas focalizavam a fase juvenil da construção do feminino, o romance As horas nuas (1989) se volta para sua fase outonal. As questões do envelhecimento e da solidão roubam a cena, num processo de desnudamento da atriz Rosa Ambrósio, mulher de meia-idade atormentada pelos efeitos do tempo sobre seu corpo, revelados em forma de memórias, que ela registra num gravador. Enquanto se desnuda diante do leitor — o que justifica o título — e também do gato voyeur Rahul, Rosa tece, ao longo da narrativa, um exame de consciência ou balanço de vida, num ritual de mea culpa bastante recorrente na voz de outros protagonistas da autora.
A inexorabilidade do tempo, contra o qual a atriz tenta lutar em vão, é descrita de modo sagaz pelo gato, que presencia tudo, na cena bizarra em que ela aparece tingindo os pêlos pubianos:
Não sei por que esses bandidos tinham que nascer brancos, resmungou ela. Já estava de luvas quando mergulhou mais uma vez a escova na tintura do copo. Inclinou-se para frente. Abriu as pernas e bem devagar foi passando a tinta nos pêlos do púbis. Com a mão livre, abriu a caixa rosada no tampo de mármore e dela tirou um lenço de papel para limpar o fio de tinta negra que lhe escorria pela coxa, Ô! Meu Pai!…
É o gato quem a observa e narra, num tom de sensual ironia, que, por mais que as luzes daquele dia sejam indício de primavera, para Rosona — cuja imagem madura se reflete nua no espelho — inicia-se o outono:
Aperto os olhos feridos. Quando volto a abri-los, Rosona está posando de estátua diante do espelho coroado, os braços languidamente erguidos para prender os cabelos no alto da cabeça. Está sorrindo para a própria imagem que parece filtrar uma certa luz cálida, Sou o Outono, diria a imagem nua que se imobilizou no instante de perfeição. Não fora o triângulo do púbis todo borrado de tinta negra, travessura de algum moleque obsceno que passou lambrecando as estátuas do parque.
A velhice e tudo que ela comporta é um dos temas recorrentes na obra da autora, que jamais a concebe de modo tranqüilo e natural. Ao contrário, o processo da passagem dos anos e as limitações que isso impõe chegam, no discurso reflexivo e confessional de seus personagens, ao limite do desespero.
É o que se dá no conto Boa noite, Maria, um dos mais fascinantes de A noite escura e mais eu, cuja primeira edição é de 1995. Aqui, a rica senhora Maria Leonor de Bragança, que, devido às fragilizações impostas pela idade busca ser apenas Maria, encontra um homem bem mais jovem, Julius Fuller, num aeroporto, ao voltar de uma viagem.
O enredo vai sendo tecido com a precisão e a maestria de quem sabe que um passo em falso, quando se trata de narrativas curtas como o conto, pode por tudo a perder. Aos poucos, vamos tomando conhecimento de que o que Maria busca — no desespero de seu envelhecimento solitário — é tão somente a presença de um amigo que a ajude a morrer. E o que poderia ser extremamente dramático e sinistro, na narrativa de Lygia, transforma-se num ritual poético de profunda delicadeza nas lides com a morte.
Como acontece em muitas de suas narrativas curtas, o recurso à ambigüidade bem construída dilui o pathos que esse tipo de tema, inevitavelmente, carrega. O que se tem como resultado é a abordagem de uma questão seriíssima, traduzida — pelos modos do narrar — em sublime desfecho.
Os mesmos problemas em relação ao passar dos anos, acenados em As horas nuas, nesse conto são retomados de modo pungente, tocando num dos temas mais polêmicos da atualidade, o da eutanásia assistida, também conhecida como suicídio passivo ou “doce morte”:
Sem saber como, a verdade é que estava só e precisando apenas de alguém que a ajudasse a viver. E a morrer quando chegasse a hora de morrer. Uma morte sem humilhação e sem dor. A morte respeitosa — mas era pedir muito? Precisava de um amigo e não de um assassino, ela concluiu e achou graça. Baixou a cabeça. Tamanho horror pelas doenças aviltantes que deixam a boca torta e o olho vidrado. E a fralda, Ah! Senhor, a fralda não! O amigo tem que amar esse próximo como a si mesmo, se ainda é possível o amor. Permitir que esse próximo amado fique indefinidamente num estado miserável não é cruel? E a compaixão? Seria um simples gesto de compaixão, a morte por compaixão. Vida vegetativa? Mas que vida vegetativa se os vegetais viviam e morriam limpos, sem a baba, sem os cheiros.
Quando Julius decide acompanhá-la, o sinuoso trajeto que os dois cumprem num táxi, do aeroporto até o apartamento dela, na primeira metade do conto, gera, no leitor, uma série de suspeitas em relação àquele estranho aventureiro que poderia, por exemplo, aproximar-se da elegante senhora para explorá-la, roubá-la e até — como bem previsível em narrativas contemporâneas à la Rubem Fonseca —, a sangue frio e com requintes de sádica violência, assassiná-la.
Mas as desconfianças ao redor do comportamento do belo homem de cabelos cor-de-palha e intensos olhos verdes vão se dissipando, na andadura ardilosa de um narrar que se contém a princípio, para afinal atingir o clímax, fechando com o prêmio tão almejado pela protagonista e tão inesperado pelo leitor: ele se revela, de fato, confiável como o bom amigo, que lhe trará a redenção da doce morte.
Recorte justo
Enfrentando, a partir de diversos temas, a contraditória complexidade humana, Lygia, em sua prolífera produção de contos, demonstra excepcional habilidade. Alguns deles, muito comentados, analisados e elogiados pela crítica, reeditados em diferentes antologias ou adaptados para a televisão e o cinema, são já conhecidos do grande público. Vejam-se, a exemplo, o sucesso de Venha ver o pôr do sol, Seminário dos ratos, As formigas, Pomba enamorada (considerado por Saramago uma verdadeira obra-prima), Herbarium, A estrutura da bolha de sabão, As pérolas, Um chá bem forte e três xícaras e A caçada, entre tantos outros. Seja em qualquer dos ângulos da existência sobre a qual a autora incida seu olhar, de fato, ela é capaz de fazer o recorte justo e preciso, exigido pela narrativa que não pode se demorar, que não pode vacilar.
Percebemos nos procedimentos adotados pela autora, nesse caso, aquele alto grau de exigência já anunciado por Edgar Allan Poe ao afirmar que todo conto bem realizado deve surtir um “efeito único”, atingido por um movimento interno de significação, que aproxime parte com parte, além de um ritmo e um tom singulares que só leituras repetidas — se possível, em voz alta — serão capazes de encontrar.
Se pensarmos na construção do sinistro em Venha ver o pôr do sol, esse efeito único, obtido desde o primeiro passo sorrateiro em direção à presa, dá-nos a impressão exata do bote bem armado do animal que, ardiloso e dissimulado, confere liberdade de ação à vítima, apenas para, ao final, desferir o golpe certeiro, com toda a precisão exigida, a fim de que se cumpra seu intento. De saída, desde o primeiro parágrafo, insinua-se o cenário de total abandono daquela tarde:
Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.
Ela é Raquel, a presa que será vítima do bote de Ricardo, seu ex- namorado que, por ciúme, convida-a para um reencontro amigável a um passeio num cemitério (local insuspeito, em que ninguém os veria juntos), acabando por trancá-la e abandoná-la atrás das grades de um jazigo antigo. Ele é o animal que se camufla, camaleão adestrado a adquirir diferentes nuances de pele, em meio ao exuberante silêncio verde dos ciprestes, a cada alteração de claro-escuro, acompanhando os jogos de luz e sombra no gradual entardecer daquele lugar abandonado. Desde o início, fragilizada, acreditando piamente no contar mentiroso daquele que a seduz, Raquel nem de longe desconfia de que acabará sendo vítima de tamanha atrocidade.
Mais do que o precioso recurso à quebra de expectativa, e não só em contos que gravitam em torno de situações sinistras (como As formigas, O jardim selvagem, Dolly, Anão de jardim etc.), o expediente estratégico de que lança mão a contista é o da excisão, melhor dizendo, o do afastamento, de um desvincular entre o plot narrativo, o cerne do que se está por narrar e os modos sinuosos pelos quais essa matéria vai se configurando, num jogo dialético de aproximação/distanciamento.
A excisão, segundo esclarece o escritor argentino Ricardo Piglia, no interessante O laboratório do escritor, é o que justifica o caráter duplo da forma do conto. Para o autor, em suas tentativas de teorizar o gênero, um conto, na verdade, revela sempre duas histórias: uma secreta, oculta; outra explícita.
Essa aparente dissonância — a deslocar Raquel para longe do sinistro que está por vir, numa credulidade ingênua, facilmente capaz de conduzir a presa, que não deixa de ser também o leitor, às malhas finas da armadilha, da qual não conseguirá escapar — é revelada pelo caráter de ambigüidade inerente aos modos de narrar da autora. Ambigüidade que só é alcançada por conta do desvincular entre o que se quer contar (o secreto) e as artimanhas da linguagem tecidas para tanto (o que se explicita).
Depois de tudo bem armado, a presa/leitor sucumbe ao bote preciso:
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.
Inocência perdida
De modo análogo ao anterior, mas numa ambientação totalmente diversa, é que se estrutura o conto Segredo (em A noite escura e mais eu, o livro de contos favorito da autora). A trama se desenrola diante do impasse de uma menina de quase dez anos que precisa entrar num bordel, para pegar uma bola que lá caíra.
No início, o cenário de uma cidade interiorana descreve a tal Rua da Viúva, que era preciso evitar, da mesma forma que se evitavam os leprosos em pequenos bandos e que “mendigavam sacudindo as moedas que faziam blim-blim nas canecas de folha”. Embora as escolhas lexicais reflitam tempos de outrora, em que o preconceito contra as prostitutas era exagerado, o conto não cai no narrar excessivamente datado que poderia restringi-lo a um retrato de época. Ao contrário, sempre pautada pelo princípio do desvincular a história oculta da outra que se explicita, a voz narrativa instaura a tensão entre a menina assustada que atravessa um corredor até chegar ao quintal onde está a bola e a prostituta loira que a conduz.
Nesse ritual de perda de inocências por parte da menina, há um segredo que precisará ser mantido entre as duas: o de que ela não conte a ninguém que esteve lá. A história oculta, apenas sugerida, dá a entender que o pai da criança é um dos clientes daquela mulher, um dos freqüentadores da casa; daí o porquê da necessidade do segredo.
O que se explicita é a situação de timidez, num misto de curiosidade e constrangimento por parte da menina, ao ir tomando contato com aquele universo tão proibido, e com a gentileza da prostituta loira que a ajuda, comovida com a presença que evocaria a de uma filha dela própria, já morta. Mais uma vez, arma-se, senão o bote contra o animal acuado, o momento preciso da surpresa que se intensifica por meio desses ardis do narrar.
Ficção e ficção
Tratando de um dos temas mais instigantes da criação literária, nos 14 contos de Invenções e memória (obra vencedora do Prêmio Jabuti em 2001) Lygia investe na representação das imbricações entre memória e ficção. Em entrevista concedida a Edla van Steen, pergunta: “A invenção fica sendo verdade quando se acredita nela?”. E a resposta que ela mesma nos dá, por meio do que escreve, é que a memória é matéria tão ficcional que se torna impossível tentar estabelecer qualquer fronteira entre as duas instâncias. Em depoimento feito ainda em 1993 na Sorbonne, em Paris, ela esclarece:
Vejo minha vida e obra seguindo trilhos tão paralelos e tão próximos e que podem (ou não) se juntar lá adiante. (…) Mas quando me estendo demais nessas respostas, pulo de um trilho para outro, misturo a realidade com o imaginário e acabo por fazer ficção em cima da ficção…
Num dos contos desse livro, Que se chama solidão, uma menina presencia o cenário da morte de Leocádia — uma de suas pajens de infância —, que, para se livrar da gravidez indesejada, provoca o aborto, não conseguindo se salvar. Importa notar o quanto, nesse caso, a memória (da infância) invade a invenção, até o fantástico desfecho da narrativa: “Chão da infância. Algumas lembranças me parecem fixadas nesse chão movediço, aquelas minhas pajens”. E continua, registrando a voz da mãe, diante do ocorrido:
Enfiou a agulha de tricô tão lá no fundo, meu Deus, meu Deus… — a voz sumiu para voltar mais forte. Grávida de quatro meses e eu sem desconfiar de nada, ela era gordinha, engordou um pouco mais, pensei. Então, Leocádia? Eu perguntei e ainda me reconheceu (…)
Em dezembro tinha quermesse. Minha mãe e tia Laura foram na frente porque eram as barraqueiras, eu iria mais tarde com a Custódia que ficou preparando o peru. Quando passei pelo jasmineiro no quintal (anoitecia), vi o vulto esbranquiçado por entre os galhos. Parei. A cara úmida de Leocádia abriu-se num sorriso, colhia jasmins. A quermesse, vamos? Convidei e ela recuou um pouco, Não posso ir, eu estou morta.
Qualquer tentativa de análise que queira abranger, com detalhes, uma obra do porte da que vem realizando Lygia Fagundes Telles seria vã. Melhor ouvir o que tem a dizer a mocinha que coleta folhas vegetais para o primo botânico que se hospeda por curto tempo na sua casa, no conto Herbarium: “era preciso fazer render o instante em que (o primo) se detinha em mim, ocupá-lo antes de ser posta de lado como as folhas sem interesse, amontoadas no cesto. Então (eu) ramificava perigos, exagerava dificuldades, inventava histórias que encompridavam a mentira”.
Que possamos nós, leitores, tal como o privilegiado primo, continuar demorando prazerosamente nessa ficção, em que o contar mentiroso sabe que a verdade, muitas vezes, é tão banal quanto a folha de uma roseira.