Em se tratando de literatura, toda atenção à leitura é ainda mero detalhe. É o que parece mostrar, na orelha do novo livro de poemas de Paulo Henriques Britto, a editora e tradutora Heloisa Jahn ao propor, em observação minuciosa, que o ritmo das palavras no título deste livro, Formas do nada, anuncia “a pegada combativa de quem não está para contemplações ou devaneios”. Esta observação, por si, localiza os poemas a serem lidos no âmbito de uma desmontagem da imaginação lírica, estratégia de que se tem valido boa parte das poéticas modernas desde meados do século 19, com Charles Baudelaire e Walt Whitman.
Há, no entanto, na poesia contemporânea uma vertente de apropriação das formas clássicas do poema que, mesmo — ou principalmente — diante de uma poética tão clara quanto a de Paulo Henriques Britto, torna complexas as relações dessa poesia com a tradição da modernidade. Assim é que à leitura que Heloisa Jahn faz do título, com ênfase na autonomia rítmica da expressão, pode-se acrescentar mais dois aspectos: a metalinguagem do termo “formas” e a ambigüidade da combinação “do nada”, que, em dados contextos de fala no Brasil, é equivalente a “de repente”. Tem-se, portanto, nessa confluência de leituras, um retrato preciso dos poemas de Formas do nada.
Crise da fala
Desde que surgiu, em 1982, com o volume Liturgia da matéria, a poesia do carioca Paulo Henriques Britto tem se caracterizado por pesquisar o choque entre a utilização de formas e recursos tradicionais da poesia clássica — como sonetos e figuras de rima e ritmo — e a incorporação de uma dicção extremamente coloquial, muito atenta a expressões idiomáticas e recursos de interpelação do interlocutor, de que são exemplos os tercetos do soneto Biographia literaria VIII do novo livro:
Sim. E no entanto essa lenda, essa fábula
sem moral nenhuma, é você. Embora
só um esforço de desmemória, tábula
rasa de si, leve ao que se perdeu,
revele o que resta. Vamos, é agora
ou nunca. Repita comigo: “Eu”.
Note-se, quanto à forma, a falta de correspondência entre as frases e os versos, com diversos enjambements abruptos, e as rimas entre palavras proparoxítonas ou entre termos de classes distintas (como “embora” e “agora”). Note-se ainda o uso expressivo do corte dos versos para realçar expressões idiomáticas (“tábula// rasa”; “é agora/ ou nunca”) ou elaborar contradições (“essa fábula/ sem moral”). Tudo isso parece convergir nesse poema para a contradição maior, porque uma contradição de linguagem, presente na chave de ouro: “Repita comigo: ‘Eu’”.
Contradição porque, justo num poema que encerra uma série devidamente intitulada Biographia literaria — expressão latina que intitula uma importante obra publicada em 1817 pelo poeta inglês S. T. Coleridge —, as distinções entre “eu” e “você”, poeta e leitor, são postas à prova. O jogo está em fazer com que o “eu” se perca no coro do poeta com os leitores, sem que este “eu” se torne “nós”. Trata-se de uma primeira pessoa do singular não por oposição ao plural, mas porque cada leitor, ao ler o poema, repetirá com o poeta um “eu” único.
Isso acontece porque os pronomes são, em qualquer língua, formas vazias que se aplicam, no discurso, a quem quer que assuma seu lugar de fala. Por exemplo, numa conversa entre duas pessoas, cada um dos interlocutores poderá, por sua vez, assumir o lugar da primeira pessoa sempre que assim desejar, utilizando, para isso, o mesmo pronome “eu”. A linguagem institui, portanto, uma crise de identidade ao permitir justamente ao falante assumir o lugar de fala da primeira pessoa.
Assim, nos versos de Biographia literaria VIII, os pronomes “você” e “eu” parecem aplicar-se, de acordo com o último verso, indistintamente a poeta e leitor, de modo que a lenda de que falam os versos a respeito da identidade é, de fato, uma lenda de linguagem. Essa lenda não se preenche com conteúdo mítico, mas, em vez disso, com uma crise de identidade instituída pela própria fala. A poesia de Paulo Henriques Britto é repleta desses modos de dizer que instituem uma crise na fala.
Estado de exceção
A atenção dessa poesia à linguagem coloquial não está associada à incorporação de uma dicção popular. Paulo Henriques parece mais interessado na exploração das marcas de oralidade, ou seja, das construções que são típicas da fala e que, ao serem transcritas, provocam crise e estranhamento. São exemplos nos tercetos mencionados os termos “sim” e “vamos”, que em tal contexto funcionam como estratégias para estabelecer um vínculo de comunicação com o interlocutor. Em soneto do livro anterior, uma chave de ouro coloca a questão: “E se a linguagem for apenas fática?”.
Numa espécie de redução ao absurdo, tudo parece se resumir, na poesia de Paulo Henriques Britto, à diferença e à proximidade entre os lugares de fala do poeta e do leitor. É como se o leitor estivesse prestes a assumir o posto do poeta — daí a multiplicação de convites, anúncios, cumprimentos, cumplicidades dirigidos a você ou tu. Pois mesmo quando não é explícito, o poeta parece tratar de poesia, como nessa estrofe de Tarde:
É um beco sem saída,
mas sempre é melhor que a rua:
mais estreito. Acolhedor.
Vem, entra. A casa é tua.
Assim, a metalinguagem ronda os poemas do novo livro — assim como os dos livros anteriores —, mas agora alguma coisa parece ter se modificado. Desde o primeiro poema de Formas do nada, o problema da metalinguagem se coloca, ao final de um soneto:
Tudo resulta apenas neste dístico:
Ninguém busca a dor, e sim seu oposto,
e todo consolo é metalingüístico.
Essa imagem chama a atenção porque ancora na experiência um procedimento — a metalinguagem — que não raro é considerado, de maneira irônica, como falta de assunto. Se associarmos os aspectos formais e temáticos abordados, podemos dizer que esses poemas propõem-se a estabelecer um estado de exceção da poesia, seja pelo jogo de rimas e ritmos, seja pelo tenso lugar de fala do poeta e seu recurso à metalinguagem.
A diferença que se parece encontrar no novo livro de Paulo Henriques Britto é o tom mais negativo que se imprime aos poemas. Um exemplo claro é Circular, composto por cinco quartetos de versificação regular cujos versos encerram-se sempre com as palavras ou terminações “coisa”, “lugar”, “dizer” e “vez”. Nas duas últimas estrofes, lê-se (note-se o recurso novamente ao “sim”):
Sim. Tanto faz dizer coisa com coisa
ou simplesmente se contradizer.
Melhor calar-se para sempre, em vez
de ficar o tempo todo a alugar
todo mundo, sem sair do lugar,
dizendo sempre, sempre, a mesma coisa
que nunca foi necessário dizer.
Como faz este poema. Talvez.
Há nesses versos uma dicção irônica que não se pode perder de vista, sob pena de se perder a força dos versos. Ecoa aqui — apenas ecoa — a formulação do filósofo Wittgenstein, que propôs que se deve calar sobre aquilo que não se pode dizer. Nesses versos, a questão não é o que se pode dizer, mas a repetição daquilo que pode ser dito. Diferentemente do filósofo, parece haver algum sarcasmo na formulação “melhor calar-se”, pois o próprio poeta não se exime do problema que aponta: “Como faz este poema”. Assim, embora seja a melhor solução, o poeta não se cala, mas não porque tenha algo de original a dizer.
Novamente, a chave do poema parece estar em seu fecho. Aquele “talvez” inserido ao final redimensiona o poema inteiro, pois coloca claramente sob suspeita toda a sua fala, aventando a possibilidade de se dizer algo pelo ato de fazer o poema, e não pelo conteúdo das frases.
A concepção do poema, neste caso, parece estar mais carregada de negatividades do que, por exemplo, num poema emblemático do autor, De vulgari eloquentia, publicado em livro de 2003, Macau: “Há uma saída — falar, falar muito./ São as palavras que suportam o mundo,/ não os ombros.// […] Portanto, meus amigos, eu insisto:/ falem sem parar. Mesmo sem assunto”. O leitor está convocado a falar. A defesa da fala decorre da autonomia das palavras, “que suportam o mundo”, de modo a atualizar aquela anedota contada por Paul Valéry a respeito do poeta Mallarmé: o poema se faz com palavras, não com idéias. De modo a igualmente reler o poema de Drummond Os ombros suportam o mundo: “Teus ombros suportam o mundo/ e ele não pesa mais que a mão de uma criança”.
A poesia de Drummond é um exemplo contundente dessa vertente contemporânea de valorização das formas clássicas que manifesta Paulo Henriques Britto. A experimentação das formas fixas e de temas clássicos presente no livro Claro enigma, publicado em 1951, significou uma reavaliação da obra do poeta mineiro, que, com isso, afirmava a modernidade poética como autônoma às formas modernistas, de que são emblemáticos o verso livre e a linguagem coloquial. Na poesia de Paulo Henriques, está em jogo a maneira de essa concepção de poesia desidentificada como uma forma específica produzir efeitos de leitura.
Trata-se de explorar os efeitos da modernidade poética e encontrar, neles, uma ampliação do poema. Enquanto nos versos de 2003 a fala sem assunto é afirmada em decorrência de as palavras sustentarem o mundo, no poema Circular, de 2012, o convite ao silêncio (“melhor calar-se”) já é possibilidade de dizer. Se toda linguagem é, em alguma medida, fática, então qualquer convite, mesmo que ao silêncio, constitui uma afirmação da potência da linguagem.
Por esses caminhos do avesso, a poesia de Paulo Henriques Britto reafirma-se, modalizando, com alguma negatividade, a anterior, mas sobretudo continuando uma poética de obsessões que persegue, com cada vez mais clareza, a interlocução com um leitor-autor. A poesia faz falar. E é este o campo de experimentação de Paulo Henriques: pôr em tensão poesia e fala, de maneira a produzir efeitos do poema. De maneira, portanto, a produzir poemas que interpelem, com alta negatividade, e façam esquecer a falta de consistência e sustentação de qualquer fala: “é claro, sem alicerces,/ mas ninguém dá pela falta”.