A poesia visceral de Avelino de Araujo

Há muito tempo os recursos visuais são usados por poetas para fazer brotar determinado aspecto semântico em suas obras
01/06/2002

Há muito tempo os recursos visuais são usados por poetas para fazer brotar determinado aspecto semântico em suas obras. O poeta grego Símias de Rodes, aproximadamente 300 a.C., escreveu um poema chamado Technopaegnia, no qual os versos são dispostos de modo a formar uma estrutura oval. O poeta inglês Dylan Thomas, já no século 20, fez experimentos parecidos, dando formas às suas palavras. No Brasil, o pernambucano Vicente do Rego Monteiro, nas décadas de 40 e 50, incorporou recursos visuais aos seus poemas. Em São Paulo, Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos criaram, em meados dos 50, a Poesia Concreta, a mais radical, inteligente e viva movimentação de idéias da poesia brasileira do século 20, que propunha uma poesia verbivocovisual, unindo três dimensões — verbal, vocal e visual — num único corpus. Lembramos, ainda, do nome do poeta alagoano Edgard Braga, poeta visual de extremo requinte plástico que passou por várias dicções, desde o modernismo de 22 até os radicais anos 50 e 60, e ainda os 70 e parte dos 80.

Muito tempo passou. Muitos artistas fizeram trabalhos ligando o visual ao verbal, poucos, porém, conseguiram dar consistência (e consciência) ao seu trabalho, muitos não fizeram senão cópias malfeitas de tudo que veio antes.

Um nome, salve, vem há mais de vinte anos lançando livros em edições independentes com poemas visuais de grande força: Avelino de Araujo.

Abrapalabra (Pixcada, 2001) é o novo livro deste poeta, que vem surpreendo a cada trabalho — veja-se Livro de sonetos, Olho nu, Absurdomudo, entre outros — com uma poesia carregada com um grande senso estético, aguda crítica social e ácido humor, traços, aliás, apontados no lúcido prefácio de Omar Khouri para esta recente coletânea.

Este Abrapalabra reúne poemas visuais compostos entre 1997 e 2000, em que o autor vem apurando sua sensibilidade criativa, repleta de inteligência, na busca de uma marca, agora, sua. É um criador com afinada consciência de linguagem e consegue absorver positivamente toda a tecnologia à sua volta para construir sua ousada obra.

Uma característica marcante da poesia de Avelino é sua maneira de compor, onde cada ícone, acompanhado ou não de palavras, tem autonomia dentro do todo de cada poema, ou seja, para o entendimento, muitas vezes, o alvo a ser focado é múltiplo e cada mínima célula de um trabalho deixa escapar um fragmento de leitura. Esse fragmento, por sua vez, funciona como um verso à maneira literária (como diria o poeta catalão Joan Brossa) e todos os versos-ícone se atomizam para a explosão final dos sentidos.

No poema Curriculum Vitae, um dos melhores do livro, um currículo com a imagem sobreposta de um homem maltrapilho e desanimado, com uma assinatura “a dedo” e, carimbado em vermelho na vertical do lado direito, a palavra “globalizado”. Todos os espaços a serem preenchidos estão em branco — o sujeito não domina nenhum idioma (nem a forma escrita do próprio, pois, entende-se, é analfabeto), nunca trabalhou, não tem pretensão salarial, não tem data, endereço, nome. Não é ninguém, enfim. O sujeito desaparece da vista como desaparecem seus atributos, sua luta, sua dignidade. Os espaços em branco mostram o quão amorfo é o sujeito que, do nada ao lugar nenhum, é despido, em todos os sentidos, de cidadania.

Em Minimal art, um pequeno retângulo dentro da página, com o título do poema no canto superior esquerdo, os dizeres third world no canto inferior direito e a imagem de um homem subnutrido. Nota-se a extrema ironia de Avelino ao conduzir uma proposta estética a um grito de revolta. A presente tensão entre a palavra e o ícone, um fragmento brutal, um prego enferrujado adentrando a pele. O espaço em branco, mais uma vez muito bem usado, mostrando, talvez, o homem dentro do vácuo, ou, do poema de João Cabral, o “homem dentro do pesadelo”.

Editoriall é um poema avassalador. A repetição exaustiva do verso Quinhentos milhões de seres no Terceiro Mundo vivem no LIMITE da sobrevivência vai fechando-se às últimas conseqüências, multiplicando-se, mudando de tom, implodindo-se. A palavra LIMITE, escrita em caixa alta, como uma lâmina afiada rasgando tudo, vai entorpecendo o leitor: não se sabe se de remorso, se de covardia. O verso, embaralhado, transforma-se num ruído, numa erupção vocabular. Num quadrado mínimo ao canto do poema, os seguintes dizeres: No To Third World Debt. Uma criança curvada, esquelética, parece colher algo do chão, uma impactante metáfora, a da colheita do fim, da morte do Terceiro Mundo. A colheita da migalha, que é, destarte, o que sobra desse neoliberalismo predatório que rege o mundo.

Em muitos outros poemas Avelino revela o total controle sobre seu arsenal criativo. Há trabalhos onde o nível é altíssimo, veja-se a furiosa ironia de I.N.R.I ou o humor em tempos de crise de Poema de amor/ Love poem ou ainda o antilirismo de Soneto N. 37.

Após a deglutição do conjunto é que esse belo Abrapalabra toma a forma que, penso, seja a melhor tradução desta fatura: um tijolo. Um tijolo na vidraça dos pedantes, no monitor dos escritores de fim de semana, enfim, na massa gelatinosa e mal cheirosa de boa parte da produção artística nacional, vendida e calhorda.

Abrapalabra é uma ótima amostra da poesia experimental recente, viva e atuante, ácida e universal (poesia da liberdade), e é um livro importantíssimo para o entendimento de uma poesia brasileira jovem e forte, ao contrário do que muitos, nas dobras dos meios, pregam e pensam.

Abracadabra!

NOTA DO EDITOR

O conselho editorial de Rascunho não concorda com a opinião do autor deste artigo, em relação à poesia concreta.

Fabiano Calixto
Rascunho