A poesia está morta. viva a poesia! (2a parte)

Os versos — do livro inédito O Jarro Alto das Montanha — são meus (e pobres, lamento, para quem leu a poesia de Rosales, aí em cima, na epígrafe do mês passado).
01/09/2000

Estilo é o que obriga
o cervo cita
a deitar-se ainda
na relva há muito desaparecida
com o povo livre de passado,
palácios e trabalhos
que o estorvassem e impedissem
de contemplar o animal
magnífico de ímpeto estremecido
pelo sono indeciso
em que está prestes a sonhar
o branco sonho capaz
de apagar a planície.

Os versos — do livro inédito O Jarro Alto das Montanha — são meus (e pobres, lamento, para quem leu a poesia de Rosales, aí em cima, na epígrafe do mês passado).

Mas, talvez só a própria, pessoal definição de poesia e estilo nos satisfaça — a certa altura da vida. Um pouco como os velhos pincéis de barba (de antes da espuma spray), que pareciam acostumados a acariciar — um tanto asperamente, é verdade — a pele cansada de cada rosto, e que não podiam, sem desconforto, ser substituídos pelo pincel da face alheia.

Estilo foi também lição de Baden Powell, num programa da TV Cultura (reprisado no dia 8 de agosto deste ano), em homenagem ao “último dos gigantes da música popular”, conforme definiu Fernando Faro, na apresentação do “MPB Especial”, preto-e-branco, de severa contenção, iluminado a palo seco. Só o rosto e as mãos do compositor (ao violão, em primeiro plano) a conversar com alguém — talvez o próprio Faro — inaudível na sombra.

Fiquei pensando em Baden, na poesia e no Brasil — ainda muito tempo depois de terminar o programa tão ascético quanto o músico zen de Varre-e-Sai, transcendente e raro. E tímido verdadeiro, daqueles que já não vemos, num país cheio de falsos tímidos e caras-de-pau fake. A concentração de Baden, a sua carícia — nervosa e precisa — do instrumento, o som que os microfones captavam com uma intimidade respeitosa, o repertório e a delicadeza, tudo falava de um outro Brasil, da vida num outro planeta de poesia aérea e  poeira da infância, nas ruas quase anônimas de São Cristóvão, Casa Amarela, Santa Felicidade…

Fiquei com inveja (inveja do passado recente), e pensei: se Baden Powell surgisse agora, hoje, neste momento (ele começou se apresentando como violonista, aos 12 anos, no programa de calouros de Ary Barroso), poderia haver espaço para a sua suprema arte de jade, de cervo jacente, magnífica de sutileza?

A forma como tocou e cantou Refém da Solidão valeu por toda uma demonstração do refinamento cita a que um dia já chegou, aqui no trópico feérico, a civilização brasileira.

Dito o que, prossigo com as reflexões de ordem mais rasteira da segunda parte (do primeiro artigo) desta pequena série.

                                                            oooOooo

A poesia não está morta — conforme pensam as editoras e os diretores de redação dos jornais e revistas que extinguem seus espaços tradicionais.

Uma “minoria silenciosa” — tão fiel quanto silenciosa — aprecia poetas, lê a poesia que ainda aparece, publicada nos últimos Cadernos Especiais —muito-especiais ou nas estradas virtuais etc. Reduzida a tais estratégias, precariamente editada e mal divulgada, a poesia “morta” resiste e, em alguns países (a Rússia, por exemplo) permanece o gênero literário mais amado. A “minoria” dos tabelamentos estatísticos talvez seja — quando se extingue um suplemento literário com espaço para poetas — uma massa refugiada no silêncio das madrugadas, das horas perdidas no acesso a sites (ou poéticos ou pornográficos), frente à luz azulada dos monitores, manipulando o mouse, o rato que ri dos editores.

Ele nos leva a cogitar de um número talvez próximo do milhão (no Brasil), entre leitores à moda antiga e “navegadores” dos links de literatura — com destaque para a poesia, boa ou má (geralmente ), não importa. Ora, se a maioria desses sites é produzida por “amadores” (concordo), os que reclamam, os mais refinados e/ou mais “profissionais”, que se lancem à via de subversão dos espaços tradicionais — e dos números —, para apanhar, na rede poética, o público que a mídia impressa despreza e as editoras (por preguiça e mais gravemente), ignoram e desconsideram. E partam em busca dos “nichos” de novos leitores! — com o conteúdo e a competência necessária para fisgá-los na teia da Web sem fronteiras.

Mesmo lidando com dados de 80/90, seria ainda oportuno citar que Mick Imlah, especialista em pesquisas do mercado de leitores do Times, já constatava, no começo da década passada, que algo como 100 mil leitores, na Inglaterra, tinham como interesse prioritária a poesia. Ou seja, apesar do espaço mínimo nos meios de comunicação, da forma precária (e desinteressada) de exposição nas livrarias, a poesia — ressalta Gerardo Mello Mourão — mostrava-se “necessária como o pão de cada dia” para mais de 100 mil ingleses. O mesmo, aqui, para 30 mil brasileiros, pelo menos, e mais a sombra vaga, mais além, de algo como meio milhão de patrícios que, se nunca tiveram a poesia como um “interesse prioritário”, ainda assim se mostram familiarizados, de algum modo, com ela, por influência daquele número, também espantoso, de poetas tupiniquins (mais de 2.000 só no site www.secrel.com.br/jpoesia/poesia.html), cada um com o seu círculo familiar e de influência. Além do que, lembremos, hoje em dia é possível fazer tiragens de cem, de duzentos ou mais exemplares facilmente obtidos nas “gráficas rápidas” — facilidade que vulgariza, mas que também ajuda a propagar versos, a manter a forma poética em circulação maior e mais ativa do que imagina a “vã filosofia” do marketing.

No próximo mês — final da série — a opinião de Joseph Epstein (“a poesia floresce num vácuo”) contra o otimismo poético de Donald Hall.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho