A poesia como testemunho

Eduardo Alves da Costa é um poeta da palavra, generoso, solidário, atento ao mundo
Eduardo Alves da Costa escreveu poemas para seu tempo, sem nunca ter sido panfletário
01/09/2004

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite, eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Esse trecho do poema No caminho, com Maiakóvski, de Eduardo Alves da Costa, percorreu o país e tornou-se conhecido até mesmo internacionalmente, atribuído ao poeta russo. Tudo indica que o equívoco está agora devidamente esclarecido. O poema pertence a Alves da Costa, um dos mais significativos poetas da chamada Geração 60 de poetas de São Paulo. Muitos poemas dele tornaram-se famosos a partir dos anos 60, em São Paulo, uma cidade que ainda não era tão violenta. Era até romântica.

Outro poema marcante do livro O tocador de atabaque, de 1969, era e ainda é O poeta Eduardo leva seu cão raivoso a passear: “Eduardo, louco em férias, poeta disfarçado em burocrata, levanta-se todos os dias com péssimo humor, para ser devorado pelo relógio de ponto”. Outro trecho: “Acredita nos homens, entregaria sua vida por eles, porque é um tolo, um humanista impenitente, um amante das grandes causas, um aprendiz de santo, um sofredor pela miséria alheia, uma vítima do melodramático, um desprotegido contra a chantagem emocional, com uma farpa da cruz atravessada no coração”.

Esse livro revelava tudo que havia por vir e Eduardo Alves da Costa traçava nos primeiros poemas o perfil de um poeta atento ao mundo e à própria poesia que ainda, naquele tempo, não sofria as agressões que hoje sofre por alguns inconseqüentes com espaço garantido nos suplementos culturais. Esse O tocador de atabaques começa com um poema dos mais belos escrito em língua portuguesa: “O amigo não cabe num abraço/ nem a família/ no parco espaço da casa;/ não cabe a nação em seu berço de cal/ e muito menos os deuses/ numa urna de cristal” (Rilkeanas). A exemplo de outros poetas da Geração 60, Eduardo Alves da Costa reuniu toda sua poesia no livro No caminho com Maiakóvski, um documento de uma poesia que nunca fez concessão alguma a nada.

Estão aqui O tocador de atabaque (1962-1969), Salamargo (1970-1982), Poemas quase taoístas (1984-1985) e O canibal vegetariano (1986-1999). Nasceu em Niterói, Rio de Janeiro, mas vive em São Paulo desde criança. (“Perdi o mar, talvez para sempre”). No final de seu livro, Eduardo escreve: “Escrevi pouco, porque desejo, em primeiro lugar, viver. Acho a vida um mistério fascinante e sempre me envolvi em suas tramas. Não estou interessado na fama, na carreira literária e outras baboseiras que levam os incautos a lutar com unhas e dentes por um lugar ao Sol. Acredito no “wu wei” taoísta, o “não fazer” ou ação que não se preocupa com resultados. Isso me tem causado problemas, porque muita gente pensa que a literatura é uma espécie de ‘Fórmula 1’. Vejo escritores passando à frente e desejo, sinceramente, que cheguem ao fim da corrida e aos louros sem fundir o motor”.

Eduardo Alves da Costa é também autor de romances e peças de teatro. Em O canibal vegetariano, Eduardo escreve sobre poesia: “Creio que se possa estabelecer um paralelo entre Poesia e Alquimia”. Recorrendo a Frater Albertus, um alquimista contemporâneo, afirma que “a Poesia é o aumento das vibrações”. Explica: “A Matéria-Prima, cujas vibrações são intensificadas por meio do lavor poético, é a linguagem. E assim como na Alquimia se recomenda que todas as operações, por mais complexas que sejam, se realizem sobre um único elemento, sem qualquer acréscimo, assim também na Poesia nada se deve acrescentar à linguagem. Não se trata, porém, de privilegiar a forma em detrimento do conteúdo e sim de conduzir as operações de maneira que, uma vez encerrada a linguagem no ovo filosofal, ou seja, no âmbito do poema, o referido aumento das vibrações torne essa linguagem ‘carregada de significado até o máximo grau possível’, como recomenda Ezra Pound”.

O poema Tentativa para salvar a poesia, de O tocador de atabaque, parece que foi escrito hoje, tal sua ironia e atualidade em relação às loucuras e equívocos cometidos por alguns facínoras: “A poesia agoniza e eu choro/ com medo de perder a vaga/ de poeta./ Os mais velhos recomendam/ cautela com a emoção,/ repouso,/ caldo de galinha e linguagem à antiga./ Os fatalistas lamentam o cinema/ e chamam ao nosso século/ o das artes visuais”. Alves da Costa sempre se manteve distante dessa corriola que faz e desfaz na literatura brasileira, incluindo o jornalismo. Primeiro, para não adoecer de tédio. Segundo, porque não é de barganhar favores.

Eduardo é um dos poetas que, no início dos anos 60 — quase todos com 20 anos — reuniam-se em torno do editor Massao Ohno, que em 1961 juntou todos na Antologia dos Novíssimos. Um poeta da palavra, generoso, solidário, atento ao mundo. Um poeta que escreveu poemas para seu tempo, sem nunca ter sido panfletário, embora nada se tenha contra a poesia panfletária. Um poeta que parece sempre estar a dizer: “Às vezes, quando/ estou triste e há silêncio/ nos corredores e nas veias,/ vem-me um desejo de voltar/ a Portugal. Nunca lá estive,/ é certo, como também/ é certo meu coração, em dias tais,/ ser um deserto” (Salamargo — Três poemas portugueses). Deixa-se estar nos seus quadros e percorre neles os poemas que pinta em telas enormes. Um poeta da poesia como testemunho de vida, palavra rara na angústia nessa “poesia” que hoje se faz sem nenhum compromisso com nada.

Felizmente, ainda existem poetas como ele. Não são muitos. Mas existem. Estão numa trincheira quase sem saída e esperam amanhecer.

LEIA ENTREVISTA COM EDUARDO ALVES DA COSTA

No caminho com Maiakóvski
Eduardo Alves da Costa
Geração Editorial
288 págs.
Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho